Política

O kit Lira

Livre de um processo por corrupção, emparedado por outro escândalo, o presidente da Câmara tenta sair das cordas

Não é comigo? Apesar do envolvimento de assessores, aliados e até do pai, o deputado nega qualquer responsabilidade no esquema – Imagem: Marcelo Camargo/ABR
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Por ora, o deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, não responderá pelo crime de corrupção. Na terça-feira 6, o Supremo Tribunal Federal voltou atrás em um julgamento iniciado em 2019 e arquivou um processo contra o alagoano. Pesou na decisão a mudança de posição da Procuradoria-Geral da República, autora de uma acusação feita em 2018 a Lira baseada na apreensão de 106 mil reais com um assessor do parlamentar em um aeroporto. O dinheiro seria parte de um suborno, alegava o Ministério Público. Há dois meses, a Procuradoria desistiu do caso. Dias depois, Lira dizia a um jornal que, a depender dele, Augusto Aras seria “renovado no cargo” de procurador-geral. A acusação tinha partido da antecessora de Aras no cargo, Raquel Dodge. O mandato do atual “xerife” vence em setembro e seu substituto será escolhido pelo presidente Lula.

Apesar da boa notícia, Lira não pode dormir tranquilo. As investigações da Polícia Federal sobre fraudes de ao menos 8 milhões de reais na compra de kits de robótica para escolas públicas de Alagoas alcançam gente próxima ao deputado, a começar por Luciano Ferreira Cavalcante, velho colaborador, e seu pai, Benedito de Lira. Murilo Sérgio Juca Nogueira Jr., que trabalhou na campanha do presidente da Câmara no ano passado, é outro personagem. A família Catunda, de empresários e políticos bem relacionados com Lira, também desponta em cena.

Subterrâneo. O motorista de Cavalcante recolhia dinheiro, segundo a PF – Imagem: Redes sociais

Mais: segundo a Controladoria-Geral da União, a verba desviada em Alagoas saiu do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, órgão do Ministério da Educação, e havia sido incluída no caixa do FNDE, entre 2019 e 2022, “notadamente por meio de emendas parlamentares”. Essas emendas são recursos inseridos por deputados e senadores no orçamento federal. Lira providenciou emendas para kits de robótica em sua terra natal. Em 2021, destinou 32 milhões de ­reais, conforme o jornal O Estado de S. Paulo. Do total, 5,8 milhões foram enviados a Canapi, cidade alagoana de 17 mil habitantes. A Operação Hefesto, levada adiante em 1o de junho pela PF e a CGU, constatou que no município houve superfaturamento na aquisição de kits de robótica. O prefeito, Vinícius Filho, integra o partido do parlamentar, o PP.

A legenda assumiu o controle do FNDE em 2020, segundo ano de Jair Bolsonaro no poder. Ao negociar o apoio do “Centrão”, bloco na Câmara liderado à época por Lira, Bolsonaro botou à frente do fundo o então chefe de gabinete do senador Ciro Nogueira, do Piauí. Nogueira era e continua a ser presidente do PP. Seu auxiliar no comando do FNDE, Marcelo Lopes da Ponte, trabalha desde março no gabinete de outro senador da agremiação, Laércio Oliveira, de Pernambuco, um dos quatro estados em que houve busca e apreensão em 1o de junho (os outros foram Alagoas, São Paulo e Distrito Federal). O fundo possui orçamento gordo: entre 2020 e 2022, dispunha de 86 milhões de reais. São mais 53 bilhões neste ano.

De acordo com a CGU, a engrenagem criminosa funcionava assim: licitações municipais realizadas para adquirir kits de robótica enviados a escolas alagoanas eram fraudadas. O ganhador em geral era uma mesma empresa, a Megalic. Os valores definidos na concorrência estavam muito acima do preço real dos equipamentos. As quantidades compradas também eram superiores às necessidades das escolas – e vários equipamentos ficaram encaixotados. Os lucros obtidos pelo esquema eram repartidos por meio de “um meticuloso e intrincado esquema de lavagem de capitais, utilizando-se de diversas pessoas físicas e jurídicas, de diferentes estados da Federação, visando ocultar os verdadeiros destinatários dos valores e bens obtidos irregularmente”. Cerca de 40 pessoas físicas e jurídicas investigadas tiveram os sigilos bancário e fiscal quebrados pela Justiça Federal.

Afrodisíaco. Além de pilhas de reais, os policiais encontraram neste cofre genéricos de Viagra – Imagem: PF

Um dos “destinatários” do dinheiro era Cavalcante, homem da confiança de Lira. Falta saber se os recursos serviam apenas para uso próprio do auxiliar ou se chegaram ao chefe. Em 17 de maio passado, a PF flagrou o motorista de Cavalcante em um encontro suspeito na garagem de um hotel em Brasília. Wanderson Ribeiro Josino de Jesus estava em um carro preto quando, às 16h24, um homem entrou no veículo com uma sacola, na qual havia dinheiro em espécie, conforme os policiais. Quando o homem saiu do carro, um minuto depois, a sacola parecia vazia. Naquele dia, Cavalcante estava hospedado no mesmo hotel do encontro na garagem.

Lira demitiu Cavalcante da liderança do PP na Câmara um dia após a batida policial de 1o de junho. O degolado havia sido secretário parlamentar do pai do alagoano, Benedito de Lira, entre 2003 e 2010. À época, Benedito era deputado federal, cargo para o qual o filho foi eleito pela primeira vez em 2010. Em algum momento depois de trabalhar com Benedito, Cavalcante migrou para a liderança da legenda. O que não o impediu de dirigir em Alagoas outra sigla, o União Brasil. Comando exercido para colocar o partido a serviço de Lira, deputado alagoano mais votado em 2022. O segundo foi um candidato do UB, Alfredo Gaspar, ex-procurador-geral de Alagoas que tinha apurado no passado um esquema de corrupção na Assembleia Legislativa e conseguira a condenação de Lira em duas instâncias judiciais. O presidente da Câmara disputou as eleições de 2018 e 2022 graças a uma liminar do Superior Tribunal de Justiça, que suspendeu sua condição de “ficha suja”.

Mesmo em outro partido, Cavalcante deixou um automóvel à disposição da campanha de Lira em 2022, uma picape Amarok, conforme a prestação de contas do deputado à Justiça Eleitoral. Lira declarou na papelada que o empréstimo do veículo equivaleu a uma doação de 4 mil reais. Na campanha, ele usou emprestada outra picape (uma Hilux, igualmente estimada como doação de 4 mil) pertencente a mais um alvo da investigação sobre kits de robótica: o policial civil e empresário Murilo Sérgio Nogueira Jr. Em janeiro passado, a PF flagrou a Hilux a transportar dinheiro oriundo do esquema com kits de robótica, de acordo com a Folha de S.Paulo. No cofre de um escritório de Nogueira Jr. em Alagoas, os policiais encontraram cerca de 4 milhões de reais em espécie. Antes da batida, a Justiça Federal havia bloqueado 8 milhões em contas bancárias e imóveis dos investigados, equivalente ao valor desviado, pelas contas da CGU até o momento.

Em meio às denúncias, Lira parece buscar trégua na relação com Lula

Além das quebras de sigilo bancário e fiscal, das buscas em diversos endereços e do sequestro de bens, a Justiça havia decretado duas prisões temporárias. Os atingidos foram Pedro Magno Salomão Dias e Juliana Cristina Batista Salomão Dias, jovem casal dono de várias empresas em Brasília. A dupla já foi solta. Dias é o homem da sacola que, em maio, encontrara na garagem de um hotel o motorista do antigo colaborador de Lira. O casal parece ser peça-chave no “meticuloso e intrincado esquema de lavagem de capitais” que a engrenagem criminosa em Alagoas montou, nas palavras da CGU, com “diversas pessoas físicas e jurídicas de diferentes estados da Federação, visando ocultar os verdadeiros destinatários dos valores e bens obtidos irregularmente”. A PF tem imagens de câmeras de segurança de agências bancárias, nas quais o casal aparece a sacar dinheiro, e sempre em quantias fracionadas, maneira de evitar que os bancos informassem as operações às autoridades.

Os recursos do esquema chegavam às empresas do casal por intermédio da ­Megalic, firma vencedora de quase todas as licitações fraudadas em Alagoas.­ Sediada em Maceió, ela não fabrica os equipamentos, é apenas intermediária na venda. Seus donos são Edmundo ­Leite Catunda Jr. e Roberta Lins Costa Melo. Catunda Jr., de 45 anos, é de uma família de políticos próxima a Lira. O pai, ­Edmundo, de 65 anos, também é empresário. Pai e filho concorreram ao cargo de vereador em Maceió em 2012. João ­Catunda, de 27 anos, é filho de Júnior e vereador na cidade desde 2020. Integra a bancada de apoio ao prefeito João ­Henrique Caldas, do PL, um aliado de Lira. João ­Catunda elegeu-se pelo PSD, mas trocou de partido e, no ano passado, concorreu a ­deputado federal pelo PP de Lira.

Entorno. Nogueira trabalhou na campanha de Lira – Imagem: Redes sociais

Resumo da ópera: Lira assinava emenda parlamentar destinada ao pagamento de kits de robótica para escolas alagoanas. As licitações municipais eram viciadas e beneficiavam um fornecedor, a Megalic. A empresa repassava parte do dinheiro da venda a intermediários, inclusive em Brasília, aonde a bufunfa chegava, entre outros, a um homem da confiança do presidente da Câmara. Não é de se estranhar que, logo após a batida policial de 1o de junho, Lira tenha falado com o ministro da Justiça, Flávio Dino (por telefone e pessoalmente), e com o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues (por telefone), embora diga em público não ter nenhuma relação com as falcatruas. Curioso: a bandalheira acontecia pertinho do poderoso presidente da Câmara e ele não sabia de nada? Aliás, todos os implicados na investigação se declaram inocentes.

Da eleição de 2018 para a de 2022, o patrimônio informado por Lira à Justiça Eleitoral cresceu, de 1,7 milhão para 5,9 milhões de reais. Até o momento, ele não é, porém, alvo direto da investigação sobre os kits de robótica. Se fosse, o inquérito teria de correr no STF, por conta do foro privilegiado. De qualquer forma, é um pano de fundo embaraçoso para o deputado e foi nessa condição que ele se encontrou na segunda-feira 5, pela quarta vez no ano, com o presidente Lula, a fim de discutir a relação entre o Congresso e o governo. Embora aparentemente manso, Lira tem força para atrapalhar o petista. O presidente queria conversar no mesmo dia com alguns líderes partidários e não conseguiu, o deputado levou-os para São Paulo. O alagoano disputa com Lula corações e mentes dos parlamentares. Luta por influência. Quanto menor ela for, maiores serão seus problemas no Congresso. E na Justiça. •

Publicado na edição n° 1263 de CartaCapital, em 14 de junho de 2023.

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