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O joio e o trigo

Para se livrar da chantagem dos “tubarões da Bíblia”, Lula busca estreitar laços com igrejas menores, fora da zona de influência bolsonarista

O presidente sabe que não pode esperar nada de figuras como Silas Malafaia e Edir Macedo, que deram apoio entusiasmado ao governo Bolsonaro. Por isso, ele aposta em parcerias com setores progressistas do mundo evangélico – ou mesmo conservadores, desde haja disposição para o diálogo – Imagem: Ricardo Stuckert/PR, IURD e Mauro Pimentel/AFP
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Derivado do latim, o termo prebenda era de uso corrente em quase toda a Europa nos primórdios da Idade Média. Em seu significado original, tinha caráter religioso e servia para designar a ajuda em dinheiro, vestimentas, moradia ou mantimentos que as comunidades cristãs davam aos padres e sacerdotes para que estes tivessem o conforto material necessário para realizar missas e cultos e “semear a palavra de Deus”. Isso, claro, antes de a Igreja Católica tornar-se riquíssima e hegemonizar politicamente o continente europeu. Ainda no século XVI, com a Reforma Protestante de Martinho Lutero e João Calvino, o termo ganhou ares pejorativos, pois prebenda passou também a designar os pecaminosos ganhos financeiros de alguns altos membros do clero por seus “serviços prestados ao Vaticano”.

Muitos séculos depois, no Brasil de 2024, onde alguns setores da política e da sociedade parecem ter queda por discussões medievais, a palavra prebenda, desconhecida para a maioria da população, ressurgiu. Ela está na raiz da mais recente crise entre o governo Lula e lideranças evangélicas, deflagrada depois que a Receita Federal decidiu suspender um ato publicado pelo governo Bolsonaro que isentava de Imposto de Renda e contribuições previdenciárias os repasses feitos pelas igrejas aos pastores.

A bancada evangélica cobra a manutenção de isenção fiscal sobre os repasses feitos a pastores

Líderes da Frente Parlamentar Evangélica, o deputado federal Silas Câmara, do Republicanos, e o senador Carlos Viana, do Podemos, procuraram Fernando Haddad para pedir que o governo reconsiderasse a suspensão. O ministro da Fazenda retrucou que a decisão foi técnica e atendeu a uma recomendação do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União. No encontro, que contou ainda com a participação do deputado Marcelo Crivella, do Republicanos, autor de uma Proposta de Emenda Constitucional que amplia a isenção de impostos para igrejas, Haddad comprometeu-se a dar continuidade às discussões sobre o tema, com o auxílio do próprio TCU e também da Advocacia-Geral da União. “Não foi uma revogação nem uma convalidação, foi uma suspensão. Vamos entender o que a lei diz e vamos cumprir a lei”, despistou o ministro.

Do ponto de vista político, a ideia do governo é ouvir as queixas dos peixes graúdos da Bancada da Bíblia, mas também as ideias e reivindicações surgidas nas pequenas agremiações e meios evangélicos progressistas. Num país como o Brasil, onde uma elite de pastores ligados às mais poderosas denominações desfila em carros importados de 1 milhão de reais ou exibe joias e roupas de grife enquanto outros milhares de pastores ralam nas pequenas igrejas da periferia, o entrevero possibilitou a volta da necessária discussão sobre o uso muitas vezes irregular do recurso da prebenda. E pode também colocar água no moinho de uma nova estratégia do governo em relação aos evangélicos, parcela da sociedade na qual Lula e sua gestão ainda sofrem reprovação de 38%, segundo recente pesquisa Datafolha.

Haddad prometeu criar um grupo de trabalho para avaliar isenção tributária de religiosos – Imagem: Gustavo Raniere/MF

Essa estratégia passa por isolar os setores evangélicos mais claramente alinhados ao bolsonarismo e ao mesmo tempo­ envolver os setores progressistas – ou mesmo conservadores, porém dispostos ao diálogo – nas ações sociais do governo. Começou a ser desenhada ainda na campanha eleitoral e na equipe de transição, mas ganhou contornos mais nítidos no fim de novembro, quando o Ministério do Desenvolvimento Social anunciou parcerias com 27 agremiações religiosas para atuação em dois programas governamentais de combate à desigualdade social: o Pacto pela Redução da Pobreza e o Plano Brasil Sem Fome. As igrejas deverão auxiliar o MDS na identificação de pessoas em condições de vulnerabilidade e posterior inscrição no Cadastro Único, condição prévia para a entrada em programas como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida.

O governo pretende estender a parceria com os evangélicos nos próximos meses e estabelecer convênios para que entidades beneficentes ligadas às igrejas tenham ajuda financeira para a construção de cozinhas populares, bibliotecas comunitárias e centros de atendimento social, entre outras iniciativas. Notadamente, as parcerias e os convênios excluem a participação de grandes denominações que deram apoio entusiasmado ao governo Bolsonaro, como a Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, a Assembleia de Deus Vitória em Cristo, de Silas Malafaia, a Sara Nossa Terra, de Robson Rodovalho, e a Renascer, de Estevam e Sônia Hernandes. “Não há ninguém relevante. Só ­pessoas desconhecidas e pequenas igrejas que não representam nada”, desdenha o deputado federal Sóstenes Cavalcante, do PL, ligado a Malafaia.

Imagem: Geraldo Magela/Ag. Senado, Pedro França/Ag. Senado, Isac Nóbrega/PR e Ricardo Stuckert/PR

“A orientação é trabalhar com quem quer trabalhar”, diz o ministro ­Wellington Dias, acrescentando que as parcerias são abertas a todas as igrejas, “independentemente de sua denominação ou linha religiosa”. O MDS ressalta que correntes evangélicas tradicionais como as igrejas Batista e Presbiteriana aderiram à parceria. “Há uma relação muito além da ­disputa política e eleitoral, que é a luta pela redução da fome e da pobreza”, justifica Dias. O próximo passo da aproximação do governo com os evangélicos será um evento nacional com a presença de Lula e vários ministros, ainda sem data marcada, mas que deve acontecer no primeiro trimestre. Segundo o pastor Cesário Silva, dirigente do Movimento dos Evangélicos Progressistas, a ideia é reunir lideranças de denominações evangélicas de todas as estirpes: “O presidente quer dialogar com todos, como fez nos mandatos anteriores. Não vamos fazer só com progressistas, será um evento geral”.

As críticas à condução do processo de escolha das igrejas pelo governo, entretanto, partem também de evangélicos progressistas. “É necessário aproximar, mas é também necessário entender de quem a gente está se aproximando. Não sabemos quais foram os critérios adotados para se chegar aos escolhidos, isso não foi construído com os grupos evangélicos que estão ao lado do governo desde o processo eleitoral”, observa Nilza Valéria Zacarias, coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. Não é que o MDS não esteja procurando os evangélicos que deveria, acrescenta a jornalista, “mas deveria buscar mais as pessoas que se mostraram comprometidas com o projeto deste governo desde o golpe contra Dilma e a prisão de Lula”. Valéria diz que “é preciso reconhecer os aliados”, e lamenta o tiro no escuro: “Não sabemos quais são os grupos escolhidos pelo MDS e quem eles representam, nem tampouco o trabalho que cada um vai fazer. Não temos clareza sobre esse movimento que o governo está fazendo”.

O governo federal anunciou parcerias com 27 agremiações religiosas em dois programas sociais

Quanto à estratégia de aproximação do governo em si, Valéria opina que “é preciso tentar conciliar e trazer todas as igrejas”. Ela não chega a se incomodar, porém, com a exclusão das grandes agremiações evangélicas ideologicamente ligadas ao bolsonarismo. “Há um grupo formado por denominações que não é possível trazer, representadas por essas lideranças histriônicas já muito manjadas e que se comprometeram completamente com o pior governo da história do Brasil.” Se essas lideranças não querem participar, o governo não deve fazer muito esforço para trazê-las: “Algumas deixaram muito claro quem são na pandemia, quando não conseguiram nem sequer apoiar medidas para manter membros de suas igrejas vivos”.

Valéria é favorável à suspensão da isenção fiscal sobre as prebendas e afirma que “pastor não tem de ter tratamento fiscal diferente de nenhuma outra categoria laboral”, mas avalia como “muito ruim” o timing do governo para anunciar a medida: “Houve falta de diálogo com diversos setores para abordar a questão. Aí, esses líderes histriônicos reagem publicamente e vai acabar parecendo que todos os evangélicos estão chiando”. Os Macedos e Malafaias do setor, enfatiza, não representam a maior parte dos evangélicos brasileiros “que estão dentro de suas pequenas igrejas”. Para Valéria, “é preciso fortalecer a comunicação do governo com essa base”.

Valadão veste Gucci e Costa desfila com uma Mercedes EQS de mais de 1 milhão de reais

Uma comunicação mais estruturada com os ministérios e o próprio Palácio do Planalto, avalia a coordenadora da Frente, pode trazer os ajustes necessários à questão das prebendas. “O radar das medidas anunciadas pelo governo não alcança a maior parte dos pastores brasileiros. É preciso ter uma estrutura legalizada e a maioria dos pastores não tem isso. Estamos falando de algo que diz respeito somente a um grupo muito pequeno. O governo precisa ganhar o pastor que está na base e recebe, na média, um ou dois salários mínimos da igreja, a partir da contribuição voluntária dos fiéis.”

Deputado federal pelo PSOL, o pastor Henrique Vieira afirma que a decisão de Bolsonaro de isentar de impostos os repasses das igrejas aos pastores foi parte da retribuição pelo apoio político dado pelas grandes conglomerações religiosas ao seu governo. O parlamentar diz que a medida se tornou um mecanismo para que algumas denominações, ao caracterizarem os pagamentos aos pastores como prebendas, e não como salários, “relativizassem a cobrança de dívidas previdenciárias milionárias”. Vieira ressalta o desafio “ético, social e trabalhista” embutido na discussão: “Embora exista uma elite pastoral milionária, que esbanja prosperidade à custa de empreendimentos baseados na fé, a imensa maioria dos que trabalham em espaços religiosos é pobre, periférica e preta”.

Mencionado pelo deputado, o abismo de classes que separa os pastores brasileiros pôde ser medido, por exemplo, com a divulgação no X (antigo Twitter) do vídeo que mostra o pastor José Wellington Bezerra da Costa, presidente de uma das seções da Assembleia de Deus, ao volante de uma Mercedes EQS avaliada em 1,3 milhão de reais. O registro viralizou na internet após ter sido publicado no começo do ano pela filha do pastor, a deputada Marta Costa, do PSD. Em outro flagrante de muito sucesso nas redes, o pastor André Valadão, líder da Igreja Batista da Lagoinha, foi clicado em uma loja de altíssimo luxo da Louis Vuitton na cidade norte-americana de Las Vegas, onde foi assistir a um Grande Prêmio de Fórmula 1. Na foto, Valadão aparece trajado com um casaco da Gucci avaliado em 15 mil reais. “Dízimo bem empregado”, ironiza um comentário à postagem.

Enquanto a elite evangélica ostenta riqueza, a maioria dos pastores ganha pouco, até dois salários mínimos

No embalo da crítica à ostentação, o perfil Outfit do Templo já conquistou mais de 70 mil seguidores no Instagram. A página revela, por exemplo, quanto ­custam itens de vestuário usados pelos pastores mais prósperos, como um relógio suíço da marca Patek Philippe pertencente ao líder da Igreja Universal, Edir ­Macedo, e avaliado em 400 mil reais. Ou outro relógio suíço, da marca Rolex, avaliado em 196 mil reais e exibido no pulso de André Valadão. Já o pastor Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, é mais modesto e costuma comandar seus cultos com um relógio de 50 mil reais, embora as dívidas acumuladas da agremiação que fundou após rachar com a Iurd se aproximem de 1 milhão de reais.

Tanta opulência talvez explique a choradeira de alguns pastores com o fim da isenção fiscal sobre as prebendas. Logo após a assinatura do ato pelo secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, a Frente Parlamentar Evangélica divulgou uma nota na qual afirma serem “muito claros os ataques que continuamente vêm sendo feitos ao segmento cristão através das instituições governamentais” e que “atacar o segmento cristão como um todo não é uma atitude condizente com um governo que prega a pacificação”. Os auditores da Receita, no entanto, entenderam que o recurso da prebenda era utilizado por muitas igrejas “para distribuir valores de remuneração direta sem o devido recolhimento de contribuição previdenciária”. Uma fonte do Ministério da Fazenda confirma que Haddad “não abre mão de disciplinar a questão”.

Segundo o TCU, desde que Bolsonaro decidiu isentar as prebendas, em agosto de 2022, às vésperas do início da campanha eleitoral, o mimo às igrejas fez com que a União deixasse de arrecadar 300 milhões de reais até o fim do ano passado. O benefício foi o último concedido pelo ex-presidente ao setor, após medidas que ao longo do seu governo garantiram isenção de ICMS por 15 anos para as igrejas na aquisição de produtos e pagamento de serviços como contas de luz e gás ou que perdoaram uma dívida de 1,4 bilhão de reais referente à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), imposto da União que era cobrado das agremiações religiosas. O início da série de benefícios fiscais às igrejas remonta à Constituição de 1988 e atravessou diversos governos (ver infográfico à pág. 13). No ano passado, no bojo da reforma tributária, o governo Lula expandiu a isenção para as associações e entidades filantrópicas ligadas às igrejas.

Nas periferias, os líderes religiosos são negros e pobres, pondera o pastor Henrique Vieira – Imagem: Alberto César Araújo/Amazônia Real

Mas as benesses parecem nunca ser suficientes. “Se o governo discute a tributação das prebendas pastorais, algumas agremiações se posicionam como se fosse uma perseguição religiosa, optando pela narrativa mais extrema, desproporcional, intimidadora e sensacionalista possível”, observa o pastor Henrique Vieira. Diante desse cenário, e apesar dos “pequenos avanços com o setor mais razoável e republicano” dos evangélicos, emenda o deputado, o governo recua em diversos pontos para não melindrar os setores bolsonaristas. “Muitas vezes o governo age de maneiras que, em tese, beneficiariam esse campo e seus interesses de grupo. Mas nem isso é suficiente para que alguns pastores baixem a guarda da guerra cultural e mudem a postura em relação aos diálogos democráticos.”

A próxima rodada do embate entre o governo e a Frente Parlamentar Evangélica deverá acontecer na primeira semana de fevereiro. Caberá ao ministro da AGU, Jorge Messias, que é evangélico da Igreja Batista e tem bom trânsito no setor, discutir as propostas fiscais do grupo e tentar estabelecer pontos de convergência com a Bancada da Bíblia, majoritariamente bolsonarista. Para se ter uma ideia, o governo passado contou, em média, com 80% dos votos dos deputados da bancada em matérias de seu interesse. No governo Lula, essa adesão é de apenas 14,8%.

“Tenho testemunhado as incontáveis tentativas do governo e mesmo de parlamentares do campo democrático e progressista de estabelecerem diálogos produtivos com a representação evangélica no Congresso. São inúmeras as tentativas de buscar aproximações e consensos que sejam frutíferos para o Brasil”, diz Vieira. “No entanto, em uma negociação política, você precisa considerar a disposição e a abertura de ambas as partes envolvidas. Infelizmente, em muitos momentos, a representação evangélica se apresenta de forma reacionária, melindrosa e ressentida.” •

Publicado na edição n° 1295 de CartaCapital, em 31 de janeiro de e interesses.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O joio e o trigo’

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