Política

O dia seguinte

Evitar a reeleição de Bolsonaro é o menor dos problemas. Decisivas serão as escolhas a partir de 1° de janeiro

Quando ele se for, restarão os entulhos - Imagem: Isac Nóbrega/PR
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As primeiras folhas de acácia deitam na rua estreita e o sol invade a sala por um ângulo obtuso. Delicadamente, o marrom pede licença ao verde exuberante, que ainda não se deu conta da mudança de estação, enquanto o vento abranda o calor e espalha a melancolia. Das janelas dos prédios art déco, amarelos, verdes e vermelhos, eu e alguns aposentados observamos, com silenciosa cumplicidade, a vida preencher as calçadas do Bairro Azul, enclave peculiar nas Avenidas Novas de Lisboa, “instalação” na arquitetura clássica da cidade. O Bairro Azul foi um presente do ditador António de Oliveira Salazar aos homens e mulheres de bem, erguido na primeira metade do século passado como uma fortaleza inexpugnável em defesa da tradição: Deus, pátria e família. A morte poupou Salazar do desgosto. Não restam vestígios da glória imperial, católica e colonial nas três vielas que formam o pequeno reduto. Chineses e indianos disputam o comércio local, entregadores paquistaneses e brasileiros circulam freneticamente entre os carros e pedestres. Às sextas-feiras, muçulmanos peregrinam até a mesquita e transformam a região em uma pequena Meca. Nem as aves são as mesmas. Periquitos fugitivos chegam em bandos, animados, fanfarrões num bloco de carnaval, para desespero de pombos e gaivotas. Há outros deuses, outras pátrias, outras famílias.

Penso no Brasil. A fortaleza que divide senhores e escravos é a única obra bem-acabada em 500 anos de história. Resiste ao tempo, inabalável. Não só. Renova-se a cada estação. Cada golpe contra a civilização, cada flerte com a barbárie, cada barreira ao mínimo avanço é a argamassa que rejunta os tijolos do atraso, em favor de uma minoria. Convém, portanto, celebrar uma eventual derrota de Bolsonaro no primeiro turno sem perder essa perspectiva. Um terço dos brasileiros, no mínimo, preferiria dar um segundo mandato ao presidente inepto e vulgar que manchou a imagem do Brasil no exterior, fez da vergonha alheia produto de exportação, atrapalhou o combate à pandemia, destruiu as estruturas do Estado e consagrou o modo miliciano de governar. Outros tantos, oportunistas, pularam do barco por divergências meramente “estéticas” e vão continuar em busca de um representante à altura, alguém que não se lambuze com pão e leite condensado e tenha pendor pelo trabalho, para executar o mesmíssimo programa – de preferência, sem o amadorismo do capitão e do Posto Ipiranga.

O capitão é só o bode na sala. Quem, depois, será chamado à responsabilidade?

Remover Bolsonaro da cadeira de presidente é o primeiro passo sem o qual nada mais será possível. Ele é o bode na sala. Todo e qualquer voto contra o capitão é um voto em favor do Brasil. Será, no entanto, o mais simples dos atos e executá-lo não passa de uma correção de rota tardia. Nos últimos seis anos, as instituições falharam, miseravelmente. O Brasil falhou como projeto de nação. Impedir a reeleição é um simples gesto de contrição, um pedido de desculpas a nós mesmos e, em especial, a quem mais sofreu, não o brado retumbante de um povo heroico. Decisivas serão as escolhas a partir de 1° de janeiro. Os 33 milhões de famintos, os desempregados, os moradores de rua e os quase 700 mil mortos pela pandemia pagaram a conta do golpe contra Dilma Rousseff, da celebração do lava-jatismo, da Ponte para o Futuro de Michel Temer e da selvageria bolsonarista. Quem será chamado à responsabilidade daqui em diante? Como lidaremos com os corresponsáveis pelo estado de coisas? Bastará o pescoço de Bolsonaro para expiar as nossas culpas?

Lula, indicam as pesquisas, vencerá as eleições. Se não neste domingo, daqui a quatro semanas, salvo uma aventura golpista cada vez mais improvável. Se a fortuna favorecer o País, um mandato mal será suficiente para reconstruir os mecanismos de intervenção pública. Se os tempos forem difíceis, o risco de frustração aumentará exponencialmente. O bolsonarismo, ou no que vier a se transformar esse movimento, ficará à espreita. Os oportunistas de agora e de sempre, “democratas” de ocasião, estarão redimidos e autorizados a repetir seus pecados. Dará trabalho varrer os entulhos dos novos tempos (garimpeiros e madeireiros ilegais, clubes de tiro, militares arrivistas, mascates e quitandeiros). Não é uma ­disputa que se ganha no gogó. Ainda que se trate de um governo de transição, como acena o ex-presidente, será preciso nova abordagem para evitar a mesma armadilha na próxima esquina. O que será feito para impedir que a tragédia se repita como farsa, ou vice-versa? Aprender com o passado não faz parte da nossa índole, convenhamos. Esquecer, deixar para lá, é a escolha predileta. Melhor seguir em frente sem olhar para trás, diz o senso comum. No dia seguinte, glutões, tentamos roubar o queijo da ratoeira.

Talvez seja uma questão de clima e a primeira brisa de outono em Portugal não me deixe perceber que a primavera no Brasil prenuncia boas-novas, que este erro, ao menos este, grosseiro, de eleger uma figura tão deplorável, não voltará a acontecer. Talvez uma semente tenha brotado onde menos se espera. Ou talvez seja uma questão de tempo, areia a escapar entre os dedos. Um dia, sem que se perceba, contra todas as previsões, à revelia das nossas escolhas, a fortaleza ruirá e o País será outro, pronto a cumprir um destino diferente, como o Bairro Azul que não mais pertence às viúvas de Salazar. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.

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