Política
Nos braços do povo
As classes populares prometem votação maciça em Lula e são as grandes responsáveis pela iminente volta do petista ao poder


A brasiliense Eliana Francisca Pereira, negra de 62 anos, mora com a filha na Ceilândia, uma das áreas mais pobres da capital do Brasil. Na sua vizinhança, a fome é um drama. “Vejo as pessoas pegando do lixo para comer.” O que ganha como diarista, um salário mínimo e meio por mês, “escorre pela mão” por causa do “descontrole” dos preços no supermercado, conta ela. Carro e casa são sonhos impossíveis para o povão, prossegue Eliana, que diz ver ao seu redor “descrédito” com o futuro. Quando ela for às urnas em 2 de outubro, será com “esperança”. Seu voto para presidente está decidido há um bom tempo: “Com o Lula, a minha condição financeira era melhor, a condição de vida das pessoas era melhor, dava até para pensar em comprar casa”. Mas ele não é “ladrão”, como repete Jair Bolsonaro? “Todo mundo que entra na política entra para beneficiar alguém, beneficiar a si mesmo, uma categoria… Precisa olhar para o todo e o Lula fez isso”, afirma a diarista, que não terminou o ensino fundamental, estudou até a Sexta Série. “O Bolsonaro só pensa na elite e naquele grupo dele. Ele é desprezível.”
“Desprezível” é como Joaquim Barbosa, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal que mora em Paris, descreve a imagem de Bolsonaro nas grandes democracias do mundo. O algoz do PT no “mensalão” declarou voto em Lula em um vídeo da última semana da campanha. Vários figurões saíram a público em favor do ex-presidente na reta final. Celso de Mello, outro ex-juiz do Supremo, André Lara Resende, economista que participou do Plano Real, Miguel Reale Jr., jurista autor do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, as cantoras Angélica e Xuxa. Esses apoios compunham um esforço do comitê lulista para liquidar a disputa já, sem um mano a mano com Bolsonaro no fim de outubro. O objetivo era convencer indecisos e simpatizantes de Ciro Gomes e Simone Tebet a não esperar para se livrar do capitão. As pesquisas indicam chance real de uma vitória do petista no primeiro turno, e certamente os figurões eram capazes de influenciar eleitores. Mas é graças a pessoas como a doméstica Eliana que Lula está a um passo de voltar ao poder.
Eliana Pereira não tem dúvidas em relação ao voto. “Com Lula, minha condição financeira era melhor” – Imagem: Claudio Reis
Entre os brasileiros com renda domiciliar mensal de até um salário mínimo (1,2 mil reais), 57% têm intenção de votar no ex-presidente e 23%, no atual, conforme uma pesquisa do Ipec, o antigo Ibope, de 26 de setembro. Uma família média brasileira é composta de três indivíduos, daí que a renda acima seria de 400 reais per capita. No eleitorado de um a dois mínimos (2,4 mil) de renda domiciliar, caso de Eliana, o resultado é parecido: 53% a 29%. A pobreza aqui tem cor, herança de três séculos de escravização de africanos. Entre negros e pardos, 55% da população, metade prefere Lula e 28%, Bolsonaro. No eleitorado que cursou até o ensino fundamental, 55% a 26% para o petista. O batalhão formado por analfabetos, por cidadãos com alfabetização precária ou, no máximo, ensino fundamental é de 63 milhões, 40% dos 156 milhões de mulheres e homens aptos a ir às urnas, informa o Tribunal Superior Eleitoral. No Nordeste, símbolo da miséria nacional, 62% planejam votar no petista e 23%, no capitão. A região abriga 42 milhões de eleitores, 27% do total.
Um tempo atrás, o presidente licenciado do sindicato dos trabalhadores da construção civil de São Paulo, Antônio de Sousa Ramalho, ex-deputado estadual pelo PSDB, fez um experimento. Simulou a eleição e colheu o voto dos pedreiros de algumas obras. De uns 400 votantes, mais de 390 optaram por Lula. Esse episódio foi relatado a CartaCapital pelo candidato do PSB a senador por São Paulo, Márcio França, integrante da aliança petista. “Quantos pedreiros, carpinteiros, faxineiros você tem na sua convivência diária? Poucos, e às vezes você nem percebe que eles estão por aí, mas eles votam e eles decidem igual a você. Eles são a ampla maioria e vão decidir a eleição de maneira esmagadora”, diz França. “Essa população tem uma memória remota, e correta, de que no tempo do ex-presidente Lula vivia em condições melhores, em especial na compra de comida e de bens de consumo. Um quilo de picanha aqui em São Paulo custa 110 reais, é impossível o pobre comprar”, completa ele, a apostar: o ex-metalúrgico vence no primeiro turno por uma margem estreita, mas suficiente, de 400 mil, 500 mil votos.
A renda caiu, a inflação fustiga as famílias mais pobres e 33 milhões passam fome, mas Bolsonaro nega a realidade
A cegueira para o que está fora do próprio cercadinho impede o bolsonarismo de enxergar a massa de “pedreiros, carpinteiros, faxineiros” citada por França. Na classe média e nos mais ricos, a adesão ao capitão é maior do que nas populares. São seguidores fanáticos do presidente, os mesmos que foram às ruas no 7 de Setembro. Eis por que a turma repete que, pelo “DataPovo”, o capitão será reeleito de goleada. Tirar conclusão geral a partir de um universo não representativo do todo: um erro. Seria essa a explicação para o negacionismo alimentar do chefe da nação? Na campanha, ele falou duas vezes em um mesmo dia, 26 de agosto, que não há famintos na porta das padarias a pedir pão. No debate da Band, chamou de “demagogia” o número de 33 milhões de brasileiros que passavam fome em 2021, dado divulgado em junho por uma rede de pesquisadores acadêmicos e da sociedade civil, a Penssan. A propósito, o debate da Globo, em 29 de setembro, dia da conclusão desta reportagem, era tido como decisivo sobre o fim da eleição já no primeiro turno.
Fonte: Pesquisa Ipec (ex-Ibope) de 26 de setembro
Além dos 33 milhões de famintos, outros 32 milhões comem menos do que queriam. No atual governo, comer leva uma parte maior da renda. Em dezembro de 2018, véspera de Bolsonaro assumir, uma cesta básica na cidade de São Paulo custava, em média, 471 reais, o equivalente à metade do salário mínimo, de acordo com um acompanhamento periódico do Dieese. Em agosto passado, saía por 798 reais, ou dois terços do piso. O salário mínimo, que deixou de ter ganhos reais com o capitão, tem sido reajustado apenas pela inflação. Para o ano que vem, o governo propôs um piso de 1,3 mil reais no orçamento enviado ao Congresso. Em entrevista à Record em 26 de setembro, o presidente prometeu que o valor será maior. Alguém acreditou?
A contenção do salário mínimo contribui para segurar a renda geral dos trabalhadores. Em julho, o salário médio dos 98 milhões de brasileiros ocupados era de 2.693 reais, conforme o IBGE, o órgão oficial das estatísticas. Valor igual ao de uma década atrás (2.685), o que significa perda do poder de compra. Não é à toa que as principais centrais sindicais se uniram no apoio a Lula e na pregação de que a eleição seja decidida no primeiro turno.
Eleitores de Ciro Gomes e Simone Tebet podem unir-se aos lulistas para derrotar Bolsonaro na primeira etapa de votação – Imagem: Ricardo Stuckert
Bolsonaro nega a fome no País, mas há uma dúvida real: quantos pobres o Brasil tem? A pandemia bagunçou um pouco o que se sabe sobre a renda da população, mas não é só isso. O governo não deu importância ao censo demográfico do IBGE. O último é de 2010. Um novo está em curso desde agosto, mas foi necessária uma ordem do Supremo ao governo, a pedido do Maranhão. Conhecer a realidade ajuda a construir políticas públicas, eis o motivo da ação maranhense. O ministro da Economia, Paulo Guedes, era contra o censo. Acha que custa caro demais (serão gastos 2,2 bilhões de reais) para não dar em nada relevante. Guedes, recorde-se, é aquele que no início de 2020 dizia que o dólar não podia ser barato, pois até domésticas iam para a Disney.
A incerteza sobre o tamanho das classes de baixa renda reflete-se nas pesquisas de intenção de voto. Os institutos entrevistam quantidades diferentes de pessoas desse segmento, daí seus resultados serem divergentes. No Ipec e Datafolha, cerca de metade da amostra é de brasileiros com renda domiciliar de até dois salários mínimos (2,4 mil reais). Nos dois levantamentos, a vantagem de Lula sobre Bolsonaro é maior (de 14 a 17 pontos). Idem suas chances de vencer no primeiro turno. Nas pesquisas Ipespe, PoderData e BTG/FSB, há um número menor de entrevistas na mesma faixa de renda (na casa dos 45%). Nelas é menor a folga do ex-presidente sobre o atual (10 pontos).
Um dos levantamentos com menos pobres ouvidos, o Genial/Quaest, tem dados específicos sobre a preferência dos recebedores do Auxílio Brasil, o velho Bolsa Família. Às vésperas do início da campanha, Bolsonaro tentou, digamos, conquistar a boa vontade desse público, cerca de 18 milhões de pessoas, das quais 15 milhões são mulheres. Ampliou o benefício de 400 para 600 reais. O novo valor começou a ser pago em 9 de agosto. Adiantou algo para o presidente? Nada. Em 3 de agosto, uma semana antes do início do pagamento, Lula tinha 36% de votos espontâneos entre os recebedores do auxílio e Bolsonaro, 23%. No cenário estimulado, dava 52% a 29% para o petista. Em 28 de setembro, a dianteira do líder tinha crescido: 47% a 22% no voto espontâneo e 57% a 26%, no estimulado.
“Essa discussão mudará no Brasil depois desta eleição. Passamos 18 anos, desde a criação do Bolsa Família, ouvindo que a população mais pobre votava em Lula, no PT e na Dilma (Rousseff) porque tinha sido comprada. Agora vemos que não é isso”, diz a economista Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. “A premissa de que o Bolsa Família comprou o povo caiu. Era uma ‘informação’ preconceituosa, equivocada, que parte do princípio de que o pobre é venal e se vende por meia dúzia de moedas. A imprensa hegemônica também vai ter de reconhecer isso.” Para Campello, o povão votará maciçamente em Lula pela memória. “E não foi só o consumo, até na esquerda dizem isso, foi o conjunto da obra que alterou o padrão de vida dessas pessoas.” As cisternas do Nordeste continuam de pé, o programa Luz para Todos espalhou energia elétrica aos rincões (com a privatização da Eletrobras, seria possível fazer isso hoje?), a criação de 18 universidades federais, o ProUni e o Fies abriram o ensino superior a estudantes carentes.
Não confie nos seus olhos. Os famélicos que você encontra em cada esquina não existem, garante Bolsonaro – Imagem: Carl de Souza/AFP
O contraste com o atual governo é para lá de desfavorável a Bolsonaro. Alguns exemplos: o capitão encontrou a educação básica com uma verba federal de 7,5 bilhões de reais em 2019. Valor igual ao deste ano, ou seja, uma perda em termos reais, considerada a inflação. Para o ano que vem, a proposta do governo é ainda menor, de 5,2 bilhões. A quantia federal repassada para ajudar na merenda nas escolas estaduais e municipais está congelada desde 2017, tempos de Michel Temer. O Congresso aprovou este ano uma correção do valor, mas Bolsonaro vetou. A consequência é uma merenda de pior qualidade para crianças e jovens que já experimentam restrições alimentares em casa, em razão do estado geral do País. Em setembro, alunos de uma escola pública de Brasília denunciaram que um professor carimba o braço deles para controlar quem já comeu merenda e impedir repetição. O professor é Saimon Freitas Cajado Lima, graduado em Estudos Sociais e Geografia. Trata-se de um militante bolsonarista e anti-Lula nas redes sociais.
O capitão fez pouco caso da atualização do Censo e parece ter subestimado o peso da população de baixa renda
Outro exemplo de contraste: o programa Farmácia Popular, de venda de remédios a preços mais baratos, foi criado no governo Lula. São cerca de 35 mil drogarias desse tipo. Quando o capitão assumiu, o programa tinha 2,5 bilhões de reais, o mesmo valor deste ano, outra perda em termos reais. Para 2023, a proposta corta a grana para menos da metade, 1 bilhão.
Não surpreende que o povão esteja pronto para dar o troco e “cortar” Bolsonaro do poder a partir do ano que vem e levar Lula de volta ao posto. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.
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