Justiça

cadastre-se e leia

Nas masmorras de Goiás

Relatório do CNJ indica a existência de “tortura endêmica” nos cárceres do estado

Nas masmorras de Goiás
Nas masmorras de Goiás
Mão de ferro. Nascimento, diretor-geral da Administração Penitenciária, é investigado por tortura – Imagem: DGAP/GOVGO e Luiz Silveira/CNJ
Apoie Siga-nos no

“O sistema prisional em ­Goiás é o inferno na terra”, diz, na condição de anonimato, uma integrante da Associação das Famílias e Amigos de Pessoas Privadas de Liberdade de Goiás. O terror transpõe os muros dos presídios e chega às famílias. “Quem denuncia os maus tratos tem seu parente castigado.” Segundo o mais recente relato, um preso ficou cinco dias de castigo, sem direito a banho de sol e com a comida jogada no chão. O índice de suicídio cresce. A alimentação é precária. Presos perderam até 20 quilos. A água é racionada e a violência corre solta. Chega-se ao cúmulo, dizem os parentes, de internos se alimentarem de papel e casca de banana para “forrar o estômago”.

De acordo com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais de dezembro de 2021, a população carcerária goiana era de quase 27 mil detentos, crescimento de 113% em uma década. Destes, 30% estão presos sem condenação definitiva. No fim de maio último, uma comissão do Conselho Nacional de Justiça visitou 19 cadeias do estado para checar, entre outras, as denúncias de “violações supostamente patrocinadas por agentes estatais”, ou seja, tortura. “A situação é preocupante e ganha contornos de gravidade”, afirmou Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, juiz auxiliar da Presidência do CNJ e coordenador do Departamento de Fiscalização e Monitoramento do Sistema Carcerário. Falta água e energia e a ventilação nas celas não é adequada, aponta o relatório.

O descaso, dizem os familiares e organizações de direitos humanos, piorou no governo de Ronaldo Caiado. “O governador age contra quem defende os Direitos Humanos. Ele não se omite, ao contrário, age para que nada aconteça”, acusa a advogada Mayra Balan, assessora jurídica da Pastoral Carcerária. Em janeiro, a pastoral encaminhou um documento a diversas instituições no qual aponta graves violações cometidas pela Unidade Prisional Especial de Planaltina e solicita a adoção, “com urgência, de medidas investigatórias e inibitórias cabíveis”. O documento lastreou a inspeção do CNJ. Em 22 de março, uma decisão do desembargador Leandro Crispim, corregedor-geral da Justiça, arquivou, no entanto, o pedido. Crispim baseou sua decisão no relato de um colega, Alano Cardoso e Castro, juiz da Vara de Execução Penal da Comarca de Formosa, segundo quem a “unidade prisional em questão dispõe da melhor estrutura física, pessoal e de assistência médica, odontológica e psicológica”.

Embora todos os apontamentos sejam importantes, diz o relatório do CNJ, as evidências mais contundentes na inspeção dizem respeito à prática “sistematizada e normalizada de maus tratos”, que incluem o uso de balas de borracha, eletrochoques e salas destinadas à prática de tortura em grande parte dos estabelecimentos prisionais. “Fatos percebidos e constatados autorizam o Conselho Nacional de Justiça a apontar para um possível cenário de tortura endêmica nos estabelecimentos prisionais inspecionados. (…) Tal procedimento foi percebido não como disciplina, mas como um método de governo através do medo e ameaças nas unidades prisionais e fora delas”.

O governador Caiado “age contra quem defende os direitos humanos”, diz Mayra Balan, da Pastoral Carcerária

O diretor-geral de Administração Penitenciária de Goiás, Josimar Pires Nicolau do Nascimento, é investigado pelo Ministério Público por acusações de tortura e violência nos presídios de Formosa, Valparaíso e Aparecida, em Goiânia. Reportagem publicada pelo El ­País, em março de 2021, relatava a crueldade com que o atual diretor tratava os internos. Em áudio de uma reunião interna, quando ocupava a função de coordenador da 1ª Regional Prisional de Goiás, Nascimento descreve com sadismo os métodos adotados. “Pisei, pisei, pisei. Dei murro na cara e peguei 95 celulares. Se eu tivesse beijado a boca deles, eles não tinham entregado, ou tinham?”, pergunta aos interlocutores. Em outro trecho, faz ameaça a quem denuncia as violações. “Tem gente indo lá no preso e mandando denunciar. Troca tiro comigo meu irmão. Eu sou candidato a matar um agente do sistema. Já falei isso muitas vezes. Isso só vai parar o dia que um for lá e der 30 tiros na cara do outro. Porque o cara vai lá e faz essa patifaria de denunciar o próprio colega.” Não bastasse, deu um recado aos detentos: “Se alguém quiser me filmar, é simples, se quiser me f* é simples. Na hora que eu descer nas alas pode filmar. Eu vou chutar o preso”.

Em janeiro do ano passado, 141 entidades de Defesa dos Direitos Humanos pediram a demissão de Nascimento. Segundo a carta conjunta, as denúncias de tortura e violência nos presídios tem aumentado nos últimos anos, por isso ­Goiás ocupa o terceiro lugar no ranking com mais relatos de maus tratos no sistema. Apesar de tudo, o diretor mantém-se firme no cargo com o beneplácito e apoio de Caiado, responsável pela administração de 88 estabelecimentos prisionais. Em evento recente, após a visita dos juízes, o governador elogiou a atuação do subordinado. “Você está de parabéns, ­Josimar. Continue com o mesmo ritmo que vem levando as nossas penitenciárias.”

A Secretaria de Comunicação e a Diretoria-Geral de Administração Penitenciá­ria, em nota conjunta, informaram que o relatório do CNJ não é uma “denúncia, mas levantamentos baseados em uma única visita”. Que as acusações a Nascimento foram apuradas e “arquivadas por falta de elementos mínimos de materialidade e autoria de qualquer ilícito”. E que “qualquer tipo de tortura é indefensável e o governador Ronaldo Caiado apoia e adota medidas com respeito legal aos detentos”. O Ministério Público estadual confirmou a instauração de inquérito para apurar as acusações contra o servidor e disse que o processo se encontra em fase de tramitação. Nascimento não se manifestou. •

Publicado na edição n° 1265 de CartaCapital, em 28 de junho de 2023.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo