Política
“Não é não”, amém?
Protocolo que protege mulheres de assédio é sancionado com a exclusão dos templos religiosos


No apagar das luzes de 2023, o presidente Lula sancionou a lei do protocolo “Não É Não”. Inspirado em iniciativas internacionais, o texto estabelece uma série de medidas para dar mais segurança às mulheres em espaços públicos com ampla circulação de pessoas, a exemplo de casas noturnas, bares e restaurantes, além de eventos culturais e esportivos. É inegável o avanço na luta contra o assédio e a violência sexual, males que assolam o cotidiano das brasileiras, mas o diabo mora nos detalhes. O texto foi aprovado pelo Congresso com um dispositivo que isenta cultos e atividades de natureza religiosa de adotarem a medida protetiva. De fato, o protocolo não foi pensado para ser aplicado em templos religiosos, mas causa espanto a reação da bancada cristã. Por que a exceção à regra nesses ambientes?
O dispositivo que isenta os templos religiosos de proteger as mulheres foi alvo de críticas de muitas vozes do movimento feminista e também no meio jurídico. “Quer dizer que, nas igrejas, o ‘não’ pode ser ‘sim’, quem sabe um ‘talvez’? Qual a lógica?”, indaga, sem disfarçar indignação, o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. Após buscar respostas entre ministros, deputados e senadores, ele garante que ficou “mal impressionado” com a reação. “Como é que se aprova uma lei importante como essa, que poderia ser um marco, e cria-se um dispositivo para afastar sua aplicação em ambientes religiosos? Sabe-se que em muitas igrejas, inclusive nos seminários católicos, existem abusos. O próprio papa Francisco tem se pronunciado sobre isso. Sinceramente, não consegui entender.”
De fato, não faltam denúncias de assédio e abuso sexual em ambientes religiosos. Somente nos últimos meses de 2023, diversos pastores de diferentes denominações foram presos por crimes sexuais. O caso do líder religioso Vanderlei Antônio de Oliveira, da Assembleia de Deus Ministério Bola de Fogo, em Anápolis, interior de Goiás, chamou atenção depois que nove vítimas, entre mulheres e homens, o denunciaram à polícia. Ele dizia “incorporar um anjo”, cuja “campanha” para abençoar os fiéis envolvia “favores sexuais”. O pastor e a esposa dele, considerada cúmplice, se entregaram à Justiça e foram presos em setembro passado.
Apesar de o texto focar em bares e shows, a bancada evangélica fez questão de afastar a lei das igrejas
Para a antropóloga Débora Diniz, o dispositivo que exclui as igrejas da aplicação do protocolo de proteção demonstra a força da bancada evangélica e como a política no Brasil ainda está atrelada à chantagem e troca de favores. “É preocupante a fragilidade do Estado brasileiro, com essa imposição das vontades de líderes religiosos”, alerta. “Se o nome disso é concessão política, pouco me interessa. É violação à laicidade”, completa. A especialista reforça que “não é não” em qualquer lugar, sob qualquer domínio, inclusive o da fé. Já a ex-deputada federal Manuela D’ávila, do PCdoB, usou as redes sociais para criticar a exceção e disse ser urgente que “mulheres feministas se organizem eleitoral e politicamente”.
Autora do Projeto de Lei, a deputada federal Maria do Rosário, do PT, celebrou a sanção e disse tratar-se de um passo importante para a proteção das mulheres. Segundo a parlamentar, o dispositivo relativo às igrejas foi uma exigência da bancada evangélica para a aprovação da matéria, que só foi possível depois de “muito diálogo com todos os setores da sociedade”.
O parágrafo que garante a exclusão dos templos religiosos foi incluído pela deputada Renata Abreu, do Podemos. Segundo Rosário, o projeto nunca teve como alvo as instituições religiosas, uma vez que o foco é estabelecer um protocolo de proteção sobretudo nos espaços onde mulheres podem ficar mais vulneráveis, devido ao consumo de bebidas alcoólicas. “Esses lugares precisam estar prontos para atender uma mulher quando ela se sentir importunada, independentemente de qualquer coisa. Hoje, é muito comum uma mulher ter sua palavra deslegitimada por estar bêbada, e isso não pode ser naturalizado”, explicou à TV Câmara.
Alívio. O objetivo é criar um ambiente seguro para as mulheres se divertirem em paz – Imagem: iStockphoto
O projeto, acrescenta Rosário, foi inspirado na iniciativa No Callem, implantada em Barcelona, na Espanha, e pode ser considerado até mais avançado que a concepção original, pois trabalha com a prevenção do assédio, não apenas com a reparação do crime consumado. “Conversamos muito com os sindicatos dos trabalhadores de bares, restaurantes e casas noturnas, e também com os sindicatos patronais. Todos concordaram que a existência de um protocolo de atendimento é fundamental para acolher as vítimas e garantir que as mulheres possam se divertir com a certeza de que não serão importunadas.” A lei entra em vigor 180 dias após a sanção, ocorrida em 28 de dezembro. A partir de então, esses ambientes ficam obrigados a promover treinamentos para seus funcionários e ter pelo menos um trabalhador apto a lidar com episódios de assédio e abuso.
O protocolo torna os espaços responsáveis pela segurança das mulheres. Se uma mulher pedir ajuda a um garçom e não for prontamente atendida, o lugar estará violando a lei. “As mulheres têm o direito de sair e se divertir sem ser importunadas”, destaca a deputada. A iniciativa também trabalha com a lógica do incentivo, não apenas da punição. Os estabelecimentos comerciais que cumprirem as medidas vão receber um selo de “ambiente seguro para mulheres”. Eles deverão, porém, oferecer amparo imediato às vítimas, protegê-las dos agressores e, se for o caso, acionar a polícia, além de colaborar com as investigações oferecendo imagens de câmeras de segurança e facilitando o contato com testemunhas. “A gente quer mudar a cultura do País”, emenda Rosário.
A coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, Nilza Valéria Zacarias, celebrou a aprovação do protocolo, mas chamou o dispositivo relativo às igrejas de “anomalia”. “É um artigo que não precisava existir, inclusive porque a lei nem mirava nas igrejas. Parece uma manobra da bancada evangélica para se proteger, mas do que, exatamente, não ficou claro”, pondera. Evangélica há mais de 25 anos e membro ativo na comunidade cristã, a jornalista afirma que, sim, existem muitos abusos nesses ambientes, mas trata-se de um “crime de outra ordem”. “O assédio em uma Igreja não acontece igual ao dos bares. Normalmente, o abusador constrói uma relação de confiança com a vítima, essa é uma característica comum em quase todas as denúncias”, explica. O ideal seria, portanto, a criação de um protocolo específico para os ambientes religiosos, acredita. “A linguagem e a abordagem precisam ser diferentes. Sem dúvida, essa lei é um avanço e abre caminho para o debate sobre novos protocolos para outros lugares, não só igrejas, mas também universidades e escolas, por exemplo.”
O projeto foi inspirado na iniciativa No Callem, de Barcelona
O caso mencionado no início do texto, do pastor da Assembleia de Deus Ministério Bola de Fogo, corrobora a avaliação de Zacarias. As vítimas afirmam à Justiça que frequentavam a igreja há anos. Ele usou dessa confiança para cometer os abusos. Segundo os relatos, os crimes aconteciam num “quarto de orações”, e sempre sob a justificativa de se tratar de um “ritual divino”, uma vez que o pastor estaria “possuído por um anjo”. “Perceba que existe uma narrativa totalmente diferente do que é o assédio em outros ambientes. Não é um abuso que acontece durante as duas horas de culto, é algo que se passa nos bastidores”, observa.
A lei é resultado de uma longa batalha do movimento feminista, que há alguns anos emplacou a campanha “Não É Não” para denunciar os assédios sofridos por mulheres durante o Carnaval e nas festas de rua. Quem frequenta bares, baladas e festas regadas a bebida alcoólica sabe que os abusadores se sentem confortáveis nesses ambientes. As abordagens violentas são comuns: homens que se sentem no direito de passar a mão no corpo da mulher sem consentimento, de puxar o cabelo, e tornam-se agressivos ao receber um “não” como resposta. “Existe um estereótipo sobre a mulher, a maquiagem que ela usa, a roupa, o fato de ela ter bebido, de estar alterada, e isso não podemos tolerar. Com esse protocolo de proteção a gente tira da vítima o peso do abuso”, explica Rosário.
Antes mesmo da aprovação do protocolo, muitos bares e casas noturnas já tinham seus mecanismos próprios para evitar assédios. É comum em banheiros femininos desses locais o anúncio de um “drinque secreto”. Ou seja, se a mulher se sente ameaçada durante um encontro, ela pode pedir um determinado drinque ao garçom, que entende se tratar de uma senha para pedir ajuda. A partir de então, o estabelecimento assume para si o controle da situação e ajuda a vítima a se livrar do assediador. Agora, medidas como essa serão ampliadas e padronizadas em todo o território nacional.
Estado laico? Rosário diz que foi preciso fazer concessões. Diniz critica a ingerência de grupos religiosos em políticas públicas – Imagem: PT na Câmara e Carlos Moura/STF
Foi graças a um protocolo de segurança como esse que o jogador Daniel Alves foi imputado pela Justiça espanhola depois da denúncia de estupro em uma boate em Barcelona. Ele está preso há mais de um ano e esse episódio impulsionou a aprovação da lei no Brasil, porque ficou clara a eficácia da medida, uma vez que ao pedir ajuda a vítima foi imediatamente atendida pelo estabelecimento. A casa noturna também colaborou com a investigação, ao fornecer as imagens registradas por câmeras de segurança.
Segundo Rosário, uma pesquisa obtida pelo governo durante os estudos para a elaboração da lei demonstra que as mulheres não se sentem seguras em ambientes de lazer e diversão. Mais de 53% das entrevistadas afirmaram não frequentar esses lugares para evitar constrangimentos e 66% relataram já ter sofrido algum tipo de importunação ou violência. Entre as mulheres que trabalham nesses locais, o porcentual sobe para 78%. •
Publicado na edição n° 1292 de CartaCapital, em 10 de janeiro de 2024.
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