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O governo gaúcho pretende transferir a administração de presídios para a iniciativa privada

Martelo batido. Nada escapa à sanha privatista do tucano Eduardo Leite – Imagem: Luiz Silveira/CNJ e Gustavo Mansur/GOVRS
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Depois de privatizar as companhias estaduais de energia elétrica, de gás, de abastecimento de água e sanea­mento, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, do ­PSDB, pretende entregar à iniciativa privada a administração dos presídios gaúchos. Na sexta-feira 6, será aberto o edital para construção de uma penitenciária em Erechim, no Noroeste do estado, por meio de uma Parceria Público-Privada. Em um terreno de 10,4 hectares, serão erguidos dois módulos, com 26 mil metros quadrados cada um, para abrigar até 1,2 mil detentos. A obra tem custo estimado em 150 milhões de reais e contará com financiamento a juros camaradas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. A empresa que investir no complexo prisional explorará a concessão por 30 anos.

Em um país com a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas de EUA e China, a privatização dos presídios é um tema controverso, e um grupo de 87 organizações da sociedade civil, entre elas o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a Associação Juízas e Juízes pela Democracia, a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, já se manifestaram contra a iniciativa. “Os contratos firmados com a iniciativa privada parecem querer favorecer o encarceramento em massa, com a aposição de cláusulas contratuais que exigem taxas mínimas de lotação das unidades prisionais, aliadas à remuneração da empresa por pessoa encarcerada, com a submissão dos corpos negros a trabalhos forçados e aumento das margens de lucro com a precarização ainda maior do sistema prisional”, alerta o documento, encaminhado ao BNDES e aos ministérios da Fazenda, da Justiça e Segurança Pública e do Planejamento.

Os contratos costumam exigir taxas mínimas de lotação das penitenciárias, alertam entidades

Outro agravante é a questão da assistência jurídica. Com a privatização, as concessionárias ficarão responsáveis pela contratação de defensores para os internos sem condições financeiras de pagar por serviços advocatícios. Trata-se de uma ofensa à Constituição, a prever que a função compete à Defensoria Pública. Essa medida, observa a defensora gaúcha Cíntia Luzzatto, do Núcleo de Defesa em Execução Penal, tem enorme potencial para gerar conflitos de interesse. “Como o advogado contratado pelo presídio vai atuar na defesa da pessoa reclusa quando ela denunciar violação de direitos perpetrados pela própria empresa?”

Vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a Pastoral Carcerária também se uniu ao coro dos críticos. “A mercantilização da liberdade de pessoas fulmina o princípio da dignidade humana, reduzindo-a a um mero objeto. Daí a preocupação dessa empreitada que conta, inclusive, com a parceria do governo federal”, alerta. Outra conse­quência, acrescenta a entidade católica, seria a atuação de grupos privados no Congresso, que passariam a pressionar parlamentares para a aprovação de medidas criminais mais duras e com penas mais longas, o que resultaria no crescimento exponencial da população prisional. Com isso, a população pobre, negra e periférica estaria ainda mais vulnerável ao encarceramento em massa, com o intuito de alargar as margens de lucro das empresas.

Nos EUA, empresários do setor criaram um poderoso lobby pela manutenção das políticas voltadas ao encarceramento, com claro viés racista. Assim como ocorre no Brasil, as prisões norte-americanas possuem uma quantidade desproporcional de pessoas negras. Não por acaso, em 2021, o presidente Joe Biden prometeu reformar o sistema prisional, com a progressiva eliminação das unidades operadas por empresas privadas.

Modelo. Os projetos deveriam levar em conta o resultado da execução penal, diz Rolim – Imagem: Arquivo/Fronteiras do Pensamento

Entregar a gestão dos presídios nas mãos da iniciativa privada não tem surtido efeito para evitar a superlotação e o controle pelas facções criminosas. A Pastoral Carcerária cita o exemplo do privatizado Complexo Penitenciário Anísio Jobim, onde mais de uma centena de presos morreram em violentas rebeliões entre 2017 e 2019. Até hoje, as famílias das vítimas não receberam qualquer tipo de reparação, nem do Estado nem das empresas. Na avaliação de peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, a gestão terceirizada do Compaj “facilitou os episódios de violência”, uma vez que não se preocupou em oferecer assistência social, jurídica, educacional e de saúde aos apenados – um papel do Estado.

Os escândalos de corrupção envolvendo serviços terceirizados nos presídios fazem parte do cotidiano brasileiro há décadas. No Rio de Janeiro, o empresário Jair Coelho detinha o monopólio dos contratos de fornecimento de alimentação para os presídios fluminenses desde 1988, com despesas superfaturadas. Os recursos foram desviados para outros negócios do “rei das quentinhas”, como boates, academias e carros importados. Em 2022, uma fornecedora de refeições para as penitenciárias de Goiás também foi alvo de denúncias. Segundo o Ministério Público, os valores superfaturados beiravam os 30 milhões de reais. As investigações revelaram, ainda, que a proprietária da empresa era esposa do motorista do então diretor-geral de Administração Penitenciária e possuía informações privilegiadas.

Em 2021, Biden prometeu retomar a gestão pública do sistema prisional nos Estados Unidos

Não bastasse, o valor pago pelo Estado chega a dobrar nas unidades privatizadas. No Compaj manauara, cada preso custava, em média, 4,9 mil reais por mês em 2017. À época, o governo paulista pagava em torno de 2 mil reais por detento nas penitenciárias públicas. Em Tocantins, segundo relatório do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, os dois estabelecimentos prisionais privados tiveram um custo de 4,2 mil ­reais por preso em 2021. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, nos presídios mantidos pelo governo o custo médio mensal é 1,8 mil reais.

O ex-deputado federal Marcos Rolim, jornalista e pós-doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, avalia que as políticas prisionais deveriam levar em conta os resultados obtidos na execução da pena. Nos EUA, observa, o modelo adotado gerou um “mercado de encarceramento”, no qual a maior quantidade de presos e o alongamento das penas geravam um lucro cada vez maior às concessionárias. Já a Inglaterra optou por um modelo de privatização bem mais racional: “Se os presos estudam e trabalham, se há atenção à saúde e projetos efetivos de ressocialização, as empresas recebem valores adicionais”.

Em resposta a CartaCapital, o secretário estadual de Parcerias e Concessões, Pedro Capeluppi, fez questão de afirmar que “não se trata de privatização, e sim de uma concessão administrativa”. Questionado sobre a forma de remuneração, Capeluppi informou que “o concessionário será remunerado de acordo com a disponibilidade dos serviços e indicadores de desempenho apurados”. Esses indicadores, acrescenta, serão medidos “pela qualidade da infraestrutura e por meio de pesquisas de satisfação”. •

Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mercadoria viva’

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