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A privatização da Corsan está prestes a ser anulada pelo Tribunal de Contas do Estado

Subavaliada. A empresa de saneamento foi vendida por um valor 75% menor que o estimado em uma avaliação técnica – Imagem: Marcelo Oliveira/Prefeitura de Santa Maria/GOVRS
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Depois de privatizar as companhias estaduais de distribuição de energia elétrica e de gás, a bola da vez do governo gaúcho era a Corsan, Companhia Riograndense de Saneamento. Em uma venda repleta de controvérsias, o governador Eduardo Leite, do PSDB, se desfez da estatal às pressas, em um leilão com oferta única. O Tribunal de Contas do Estado apontou, porém, uma série de irregularidades no certame, a começar pela escandalosa subavaliação da estatal – vendida por um valor 75% menor que o estimado pelo economista André Locatelli, responsável por um estudo encomendado pelo Sindicato dos Técnicos Industriais do Rio Grande do Sul.

No TCE, há maioria formada para invalidar o negócio. O julgamento só não foi concluído porque Ana Cristina Moraes, relatora do processo, entrou de férias e só deve retornar em 8 de setembro, após a conclusão desta reportagem. A conselheira já havia, porém, apresentado o seu voto contra a privatização, e foi acompanhada no mérito por Estilac Xavier. Somente o conselheiro Renato Azeredo atestou a regularidade da venda, consolidando o placar de 2 a 1 pela anulação do leilão realizado em dezembro de 2022, quando o grupo privado Aegea arrematou a Corsan por 4,151 bilhões de reais. A Procuradoria-Geral do Estado deve apresentar um recurso para o caso ser analisado pelo Pleno do Tribunal, integrado por sete conselheiros. Apesar de a venda estar sub judice, a companhia já está sob o controle da Aegea.

Na campanha de 2022, o então candidato à reeleição Eduardo Leite assegurou que a companhia de saneamento não seria privatizada sob a sua gestão. Logo após vencer a batalha das urnas, o tucano apresentou à Assembleia Legislativa a proposta de vender ações da estatal, mantendo o controle de apenas 30% da empresa. Com a carta branca dada pelos parlamentares da base, o governador mudou de ideia novamente e decidiu leiloar todos os ativos da ­Corsan. Para justificar a venda, a administração estatal encomendou dezenas de estudos e análises técnicas. As contratações das empresas de consultoria foram feitas sem licitação e consumiram 40 milhões de reais dos cofres públicos, segundo o TCE e o Ministério Público.

Engodo. Ao vender a estatal, Eduardo Leite descumpriu promessa de campanha – Imagem: Maurício Tonetto/GOVRS

Em meio a suspeitas de irregularidades e conflitos de interesse, o TCE havia liberado o leilão, mas não autorizou a assinatura do contrato de venda até que o processo fosse totalmente esclarecido. A despeito de pareceres contrários do Ministério Público de Contas, o presidente do TCE, Alexandre Postal, derrubou a medida cautelar em 7 de julho e permitiu a celebração do acordo. O governo gaúcho não perdeu tempo. Duas horas após o despacho de Postal concluiu o negócio, repassando o comando da Corsan para a Aegea.

Poucos dias depois, em sessão realizada dia 18 de julho, a relatora Moraes e o conselheiro Xavier votaram pela anulação do certame. O principal argumento da relatora é o preço pelo qual a empresa foi vendida, apenas 1% superior ao valor estipulado no edital. Na mesma ocasião, Azeredo pediu vistas e, em 29 de julho, apresentou seu voto divergente.

O deputado estadual Miguel ­Rossetto, do PT, acusa o governador de “aparelhar politicamente” o Ministério Público para obter o aval para o negócio. “É um dos maiores escândalos da história recente do Rio Grande do Sul”, afirma. O parlamentar destaca que o ex-procurador-geral de Justiça Fabiano Dallazen atuou claramente para resolver as barreiras jurídicas do processo. Dias antes do leilão, pediu exoneração do cargo. Para espanto geral, ele depois assumiu a Diretoria Institucional da Aegea. Ainda segundo Rossetto, ex-parlamentares e antigos funcionários do governo também passaram a trabalhar na empresa, recebendo salários milionários.

Mobilização. Trabalhadores da Corsan tentam alertar a população gaúcha sobre os prejuízos causados pela privatização – Imagem: Sindiágua/RS

Indicado por Leite, o então presidente da Corsan, Roberto Barbuti, era um novato no ramo do saneamento. Caiu de paraquedas na chefia da estatal com a missão de privatizar a companhia. Barbuti é o responsável pela contratação das empresas de consultoria sem licitação. Uma delas, a Alvarez & Marsal, celebrou dois contatos com a Corsan, um em 2020 e outro em 2022. Nesse ínterim, também prestou serviços para a Aegea, em julho de 2021. O deputado petista acredita que a atuação nas duas pontas pode ter resultado no repasse de informações privilegiadas para a compradora.

Os conflitos de interesse não param por aí. O escritório CMT Advogados, que prestou serviços para a Corsan, tem como sócio fundador Rafael Bicca ­Machado, irmão gêmeo de André ­Bicca Machado, um dos diretores da Aegea ­Saneamento. Essas relações incestuosas foram apontadas não apenas por ­Rossetti, mas também pelo Ministério Público.

Na avaliação do parlamentar, a venda da Corsan jogou o Rio Grande do Sul em uma crise institucional gravíssima. “Apesar do voto da relatora e de mais um conselheiro contra a venda, o presidente do TCE, de forma monocrática e autoritária, fez um movimento à força para autorizar o negócio. O Tribunal de Contas abriu mão de sua responsabilidade constitucional e virou um órgão de assessoria do governador Eduardo Leite.”

No TCE, já há maioria formada para anular o leilão realizado no fim do ano passado

Agora, os deputados da oposição tentam emplacar a CPI da Corsan. Das 19 assinaturas necessárias, eles conseguiram até o momento 14 e enfrentam dificuldade para convencer colegas de fora da bancada progressista. “A direita, que disse na campanha ser contrária à privatização, não manifestou apoio à CPI. Será um desafio conseguir as cinco assinaturas que faltam”, avalia Rossetto. “Leite tem interesses políticos na venda. Quer aproveitar a receita para fazer investimentos em obras vistosas, uma vez que pretende concorrer à Presidência da República nas próximas eleições. Mas quem está na mira, agora, é a população gaúcha.”

Os funcionários da Corsan também resistem à venda. Durante o ano de 2022, o Sindiágua promoveu uma série de ações para denunciar os prejuízos causados pela privatização. Segundo o presidente da entidade, Arilson ­Wünsch, o foco da disputa tem sido mais a Justiça, e menos as ruas. “Como os primeiros movimentos de venda começaram em 2021, não tínhamos como fazer grandes mobilizações, devido à pandemia”, explica. De acordo com o dirigente, o sindicato tem sido fundamental para apresentar elementos ao TCE e ao Ministério Público para a anulação do leilão.

A Corsan é responsável pelo fornecimento de água potável e o saneamento básico de 307 municípios. Ao menos 6 milhões de gaúchos são atendidos pela companhia. De acordo com ­Wünsch, a estatal passou por um progressivo processo de sucateamento ao longo dos anos, visando dar ao governador Leite uma desculpa para se desfazer da empresa. A privatização, alerta o sindicalista, deve comprometer o cumprimento das metas do Marco Legal do Saneamento, que prevê a ampliação do esgotamento sanitário para 90% da população. “Ano após ano, a companhia vinha crescendo. Se fossem feitos investimentos, teríamos avançado mais nas metas. Mas, desde o primeiro mandato, Leite boicota esse plano, fez apenas cinco projetos de captação de esgoto em quatro anos.” No governo anterior, do emedebista José Ivo Sartori, a Corsan executou 39 projetos do gênero em um ano.

Relatora. Ana Cristina Moraes espantou-se com o valor do único lance do certame – Imagem: Michael Paz/ALRS

A justificativa de Leite para privatizar a Corsan foi justamente a necessidade de avançar nos compromissos do Marco Legal do Saneamento, aprovado durante o governo de Jair Bolsonaro. Segundo o governador, a empresa não teria condições de fazer os investimentos necessários para universalizar o serviço de esgoto. Wünsch alerta, porém, que a fatura será empurrada para a população gaúcha, uma vez que, a partir de 2027, a ­Aegea poderá repassar aos clientes os custos desses projetos. “Nossa preocupação não é só com o preço da tarifa de água, que com certeza vai aumentar muito. Tememos pela saúde da população que, sem acesso a água de qualidade, pode recorrer a meios alternativos, como abrir poços artesianos de origem duvidosa ou buscar água em arroios e riachos”, alerta o dirigente sindical.

Sob o comando da Aegea, os trabalhadores da Corsan receberam a proposta de trocar a estabilidade conquistada em um acordo coletivo por uma indenização para se desligar da companhia. Wünsch acredita que essa jogada serve apenas para esvaziar a empresa. “No futuro, caso a gente consiga reverter o leilão, o governador vai argumentar que a companhia não tem nem funcionários mais para atender às demandas da população. Será mais uma desculpa para justificar a entrega da companhia para a iniciativa privada.”

A preocupação de Wünsch não é infundada. Algo parecido aconteceu na Companhia de Energia Elétrica, a antiga CEEE, hoje sob o comando da empresa privada Equatorial Energia. Logo após a privatização, houve um programa de demissão voluntária para os antigos funcionários. Os novos foram contratados com salários bem inferiores. Na primeira crise, o estado se viu vítima de uma calamidade pública. Em junho, um ciclone atingiu boa parte do Rio Grande do Sul e alguns municípios chegaram a ficar mais de 15 dias sem energia elétrica. O dirigente sindical acredita que um dos principais fatores para o caos foi a falta de experiência dos recém-chegados, que não tinham repertório para agir diante de uma situação extrema. •

Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.

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