Política
Olha a banana!
A privatização da Corsan está prestes a ser anulada pelo Tribunal de Contas do Estado
Depois de privatizar as companhias estaduais de distribuição de energia elétrica e de gás, a bola da vez do governo gaúcho era a Corsan, Companhia Riograndense de Saneamento. Em uma venda repleta de controvérsias, o governador Eduardo Leite, do PSDB, se desfez da estatal às pressas, em um leilão com oferta única. O Tribunal de Contas do Estado apontou, porém, uma série de irregularidades no certame, a começar pela escandalosa subavaliação da estatal – vendida por um valor 75% menor que o estimado pelo economista André Locatelli, responsável por um estudo encomendado pelo Sindicato dos Técnicos Industriais do Rio Grande do Sul.
No TCE, há maioria formada para invalidar o negócio. O julgamento só não foi concluído porque Ana Cristina Moraes, relatora do processo, entrou de férias e só deve retornar em 8 de setembro, após a conclusão desta reportagem. A conselheira já havia, porém, apresentado o seu voto contra a privatização, e foi acompanhada no mérito por Estilac Xavier. Somente o conselheiro Renato Azeredo atestou a regularidade da venda, consolidando o placar de 2 a 1 pela anulação do leilão realizado em dezembro de 2022, quando o grupo privado Aegea arrematou a Corsan por 4,151 bilhões de reais. A Procuradoria-Geral do Estado deve apresentar um recurso para o caso ser analisado pelo Pleno do Tribunal, integrado por sete conselheiros. Apesar de a venda estar sub judice, a companhia já está sob o controle da Aegea.
Na campanha de 2022, o então candidato à reeleição Eduardo Leite assegurou que a companhia de saneamento não seria privatizada sob a sua gestão. Logo após vencer a batalha das urnas, o tucano apresentou à Assembleia Legislativa a proposta de vender ações da estatal, mantendo o controle de apenas 30% da empresa. Com a carta branca dada pelos parlamentares da base, o governador mudou de ideia novamente e decidiu leiloar todos os ativos da Corsan. Para justificar a venda, a administração estatal encomendou dezenas de estudos e análises técnicas. As contratações das empresas de consultoria foram feitas sem licitação e consumiram 40 milhões de reais dos cofres públicos, segundo o TCE e o Ministério Público.
Engodo. Ao vender a estatal, Eduardo Leite descumpriu promessa de campanha – Imagem: Maurício Tonetto/GOVRS
Em meio a suspeitas de irregularidades e conflitos de interesse, o TCE havia liberado o leilão, mas não autorizou a assinatura do contrato de venda até que o processo fosse totalmente esclarecido. A despeito de pareceres contrários do Ministério Público de Contas, o presidente do TCE, Alexandre Postal, derrubou a medida cautelar em 7 de julho e permitiu a celebração do acordo. O governo gaúcho não perdeu tempo. Duas horas após o despacho de Postal concluiu o negócio, repassando o comando da Corsan para a Aegea.
Poucos dias depois, em sessão realizada dia 18 de julho, a relatora Moraes e o conselheiro Xavier votaram pela anulação do certame. O principal argumento da relatora é o preço pelo qual a empresa foi vendida, apenas 1% superior ao valor estipulado no edital. Na mesma ocasião, Azeredo pediu vistas e, em 29 de julho, apresentou seu voto divergente.
O deputado estadual Miguel Rossetto, do PT, acusa o governador de “aparelhar politicamente” o Ministério Público para obter o aval para o negócio. “É um dos maiores escândalos da história recente do Rio Grande do Sul”, afirma. O parlamentar destaca que o ex-procurador-geral de Justiça Fabiano Dallazen atuou claramente para resolver as barreiras jurídicas do processo. Dias antes do leilão, pediu exoneração do cargo. Para espanto geral, ele depois assumiu a Diretoria Institucional da Aegea. Ainda segundo Rossetto, ex-parlamentares e antigos funcionários do governo também passaram a trabalhar na empresa, recebendo salários milionários.
Mobilização. Trabalhadores da Corsan tentam alertar a população gaúcha sobre os prejuízos causados pela privatização – Imagem: Sindiágua/RS
Indicado por Leite, o então presidente da Corsan, Roberto Barbuti, era um novato no ramo do saneamento. Caiu de paraquedas na chefia da estatal com a missão de privatizar a companhia. Barbuti é o responsável pela contratação das empresas de consultoria sem licitação. Uma delas, a Alvarez & Marsal, celebrou dois contatos com a Corsan, um em 2020 e outro em 2022. Nesse ínterim, também prestou serviços para a Aegea, em julho de 2021. O deputado petista acredita que a atuação nas duas pontas pode ter resultado no repasse de informações privilegiadas para a compradora.
Os conflitos de interesse não param por aí. O escritório CMT Advogados, que prestou serviços para a Corsan, tem como sócio fundador Rafael Bicca Machado, irmão gêmeo de André Bicca Machado, um dos diretores da Aegea Saneamento. Essas relações incestuosas foram apontadas não apenas por Rossetti, mas também pelo Ministério Público.
Na avaliação do parlamentar, a venda da Corsan jogou o Rio Grande do Sul em uma crise institucional gravíssima. “Apesar do voto da relatora e de mais um conselheiro contra a venda, o presidente do TCE, de forma monocrática e autoritária, fez um movimento à força para autorizar o negócio. O Tribunal de Contas abriu mão de sua responsabilidade constitucional e virou um órgão de assessoria do governador Eduardo Leite.”
No TCE, já há maioria formada para anular o leilão realizado no fim do ano passado
Agora, os deputados da oposição tentam emplacar a CPI da Corsan. Das 19 assinaturas necessárias, eles conseguiram até o momento 14 e enfrentam dificuldade para convencer colegas de fora da bancada progressista. “A direita, que disse na campanha ser contrária à privatização, não manifestou apoio à CPI. Será um desafio conseguir as cinco assinaturas que faltam”, avalia Rossetto. “Leite tem interesses políticos na venda. Quer aproveitar a receita para fazer investimentos em obras vistosas, uma vez que pretende concorrer à Presidência da República nas próximas eleições. Mas quem está na mira, agora, é a população gaúcha.”
Os funcionários da Corsan também resistem à venda. Durante o ano de 2022, o Sindiágua promoveu uma série de ações para denunciar os prejuízos causados pela privatização. Segundo o presidente da entidade, Arilson Wünsch, o foco da disputa tem sido mais a Justiça, e menos as ruas. “Como os primeiros movimentos de venda começaram em 2021, não tínhamos como fazer grandes mobilizações, devido à pandemia”, explica. De acordo com o dirigente, o sindicato tem sido fundamental para apresentar elementos ao TCE e ao Ministério Público para a anulação do leilão.
A Corsan é responsável pelo fornecimento de água potável e o saneamento básico de 307 municípios. Ao menos 6 milhões de gaúchos são atendidos pela companhia. De acordo com Wünsch, a estatal passou por um progressivo processo de sucateamento ao longo dos anos, visando dar ao governador Leite uma desculpa para se desfazer da empresa. A privatização, alerta o sindicalista, deve comprometer o cumprimento das metas do Marco Legal do Saneamento, que prevê a ampliação do esgotamento sanitário para 90% da população. “Ano após ano, a companhia vinha crescendo. Se fossem feitos investimentos, teríamos avançado mais nas metas. Mas, desde o primeiro mandato, Leite boicota esse plano, fez apenas cinco projetos de captação de esgoto em quatro anos.” No governo anterior, do emedebista José Ivo Sartori, a Corsan executou 39 projetos do gênero em um ano.
Relatora. Ana Cristina Moraes espantou-se com o valor do único lance do certame – Imagem: Michael Paz/ALRS
A justificativa de Leite para privatizar a Corsan foi justamente a necessidade de avançar nos compromissos do Marco Legal do Saneamento, aprovado durante o governo de Jair Bolsonaro. Segundo o governador, a empresa não teria condições de fazer os investimentos necessários para universalizar o serviço de esgoto. Wünsch alerta, porém, que a fatura será empurrada para a população gaúcha, uma vez que, a partir de 2027, a Aegea poderá repassar aos clientes os custos desses projetos. “Nossa preocupação não é só com o preço da tarifa de água, que com certeza vai aumentar muito. Tememos pela saúde da população que, sem acesso a água de qualidade, pode recorrer a meios alternativos, como abrir poços artesianos de origem duvidosa ou buscar água em arroios e riachos”, alerta o dirigente sindical.
Sob o comando da Aegea, os trabalhadores da Corsan receberam a proposta de trocar a estabilidade conquistada em um acordo coletivo por uma indenização para se desligar da companhia. Wünsch acredita que essa jogada serve apenas para esvaziar a empresa. “No futuro, caso a gente consiga reverter o leilão, o governador vai argumentar que a companhia não tem nem funcionários mais para atender às demandas da população. Será mais uma desculpa para justificar a entrega da companhia para a iniciativa privada.”
A preocupação de Wünsch não é infundada. Algo parecido aconteceu na Companhia de Energia Elétrica, a antiga CEEE, hoje sob o comando da empresa privada Equatorial Energia. Logo após a privatização, houve um programa de demissão voluntária para os antigos funcionários. Os novos foram contratados com salários bem inferiores. Na primeira crise, o estado se viu vítima de uma calamidade pública. Em junho, um ciclone atingiu boa parte do Rio Grande do Sul e alguns municípios chegaram a ficar mais de 15 dias sem energia elétrica. O dirigente sindical acredita que um dos principais fatores para o caos foi a falta de experiência dos recém-chegados, que não tinham repertório para agir diante de uma situação extrema. •
Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.
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