Justiça
Lula e o monstro
O presidente tem uma oportunidade histórica de conter os desmandos do Ministério Público


Morto em 2 de julho, o mineiro Sepúlveda Pertence levou para o túmulo um feito do qual não se orgulhava. “Criei um monstro”, dizia sobre o Ministério Público Federal. Pertence foi procurador-geral da República de 1985 a 1989, escolhido pelo então presidente José Sarney. Seu período como “xerife”, única autoridade com poder legal para processar o presidente da República, ministros e parlamentares por crime comum, coincidiu com a Assembleia Constituinte que desenharia o Brasil pós-ditadura. No tempo dos generais, o MPF era usado para perseguir os “inimigos do regime”. A corporação criada pela Constituição de 1988 se propôs a proteger os cidadãos e seus direitos, e Pertence foi uma das vozes mais influentes na construção do projeto. Certas prerrogativas de procuradores e promotores foram igualadas àquelas dos juízes, entre elas o veto à remoção de um posto contra a vontade, à redução salarial ou à demissão imotivada.
Os superpoderes dos procuradores contribuíram para a Operação Lava Jato causar o estrago visto nos últimos anos: um ex-presidente preso injustamente, uma presidenta honesta tirada do cargo na marra, um capitão do Exército demente eleito chefe da nação, empreiteiras quebradas, milhares de empregos dizimados. Até setembro, Lula, o ex-presidente injustiçado que deu a volta por cima, terá o direito – e o dever – de indicar o novo procurador-geral, chefe do MPF. É uma oportunidade para rediscutir o papel do Ministério Público, quem sabe de redimir o “monstro”. É, também, uma das decisões mais importantes do ano, diante das possíveis consequências para Jair Bolsonaro, o capitão demente, e para Arthur Lira, o coronel à frente da Câmara dos Deputados. Neste momento, estão no páreo o “conservador raiz” Paulo Gustavo Gonet Branco, atual vice-procurador-geral eleitoral, o progressista Antonio Carlos Bigonha, um dos 70 subprocuradores-gerais, e, pasmem, Augusto Aras, nomeado em 2019 por Bolsonaro, cujo mandato está perto do fim.
Como na escolha do STF, Lula fecha-se em copas – Imagem: Marcelo Camargo/ABR
Lula parece decidido a escolher de forma solitária, com base em suas convicções e cálculos políticos, como na indicação de Cristiano Zanin ao Supremo Tribunal Federal. Um colaborador próximo diz não ter visto o presidente fazer reunião para discutir a nomeação para a Procuradoria, como também não ocorreu no caso de Zanin. Outro colaborador comenta: será a primeira vez que o petista designará alguém da própria cabeça. Nos mandatos anteriores, Lula havia seguido quatro vezes a lista tríplice eleita pela categoria e indicado o mais votado pelos pares. Agora há uma certeza, ele deverá ignorar a lista. Motivo: a Lava Jato. “O Ministério Público Federal tem de saber que eu não vou escolher (da lista) por irresponsabilidade da força-tarefa do Paraná, que foi moleque”, declarou em março. Dias antes, havia dito que o “critério será pessoal, de muita meditação”.
Um subprocurador-geral aposentado, intérprete de Lula e do jogo do poder em Brasília, aposta em Gonet, por “pragmatismo”. Seria uma deferência a dois ministros do STF, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. E, de quebra, uma forma de o petista ficar mais livre para indicar o próximo integrante da Corte (pois teria contemplado quem, no STF, aprecia o exercício da influência). Rosa Weber, atual presidente do STF, aposenta-se em outubro.
O petista vai indicar o sucessor de Augusto Aras, que faz lobby para permanecer no cargo, apesar do péssimo histórico
O carioca Gonet é cria de Mendes e do último procurador-geral da ditadura, Inocêncio Martires Coelho, antecessor de Sepúlveda. Ele, Mendes e Coelho fundaram nos anos 1990 o Instituto Brasiliense de Direito Público, o IDP, e escreveram um livro referencial no meio jurídico, o Curso de Direito Constitucional. Gonet trabalhou na banca de Coelho e teve Mendes como orientador de doutorado. É amigo de Ives Gandra Martins Filho, o juiz Opus Dei do Tribunal Superior do Trabalho. A reforma trabalhista de Michel Temer, que Lula prometeu revisar durante a campanha, nasceu no IDP em 2016, um ano antes de Gonet deixar o instituto. O atual ministro da Justiça, Flávio Dino, foi acolhido pelo instituto a certa altura da vida e se dá bem com Mendes, razões para apoiar Gonet nos bastidores. Uma indicação que daria poder demais ao magistrado. Lula, diz um ministro, “confia” nele e em Moraes. Mas vale lembrar: no fim de junho, disse numa entrevista que a democracia é “relativa”, ao ser questionado sobre a Venezuela, e três dias depois Mendes tuitou que “o conceito de democracia não é relativo”.
Gonet tentou ser o “xerife” de Bolsonaro, no lugar de Aras. Em agosto de 2019, foi levado ao então presidente pela deputada Bia Kicis, que depois da reunião definiu Gonet, em um tuíte, como “conservador raiz” e afirmou ter o candidato apoio da ala mais conservadora da corporação. O procurador é contra o aborto, contra a decisão do Supremo de equiparar homofobia a racismo e simpático ao “marco temporal”, limitador da demarcação de terras indígenas. Como representante do Ministério Público na Comissão de Mortos e Desaparecidos criada em 1995 no governo Fernando Henrique Cardoso, votou contra (e foi derrotado) a responsabilização do Estado pelo assassinato do capitão do Exército Carlos Lamarca por agentes da ditadura em 1971.
A Lava Jato manchou a imagem do Ministério Público – Imagem: Rovena Rosa/ABR
Durante o mandato de Aras, Gonet foi diretor da Escola Superior do MP e é, desde julho de 2021, vice-procurador-geral eleitoral. No julgamento do Tribunal Superior Eleitoral que condenou Bolsonaro a oito anos fora da eleição, foi a favor da degola. A propósito, no fim do ano passado, pediu ao TSE para condenar a campanha presidencial do PT de 2018 a ressarcir o Erário em 8,5 milhões de reais, por irregularidades. O processo de Bolsonaro no TSE serviu para Gonet ganhar pontos com Moraes, presidente da Corte. No Supremo, Moraes conduz, em dobradinha com a Polícia Federal, inquéritos criminais que atingem Bolsonaro direta ou indiretamente. De nada adiantaria a PF concluí-los, pois uma acusação à Justiça dependeria do procurador-geral, e Aras não investe contra o capitão. Eis por que a escolha de seu sucessor tem implicações para o ex-presidente.
Aras tenta seguir no cargo. Está “desesperado”, conforme uma fonte que o conhece e acompanha a sucessão. Em 9 de julho, o PGR explicitou a pretensão. Compartilhou no Twitter um texto jornalístico que o saudava pela “disposição para enfrentar e desestruturar as bases do lavajatismo”. Seu “trunfo” no desejo de recondução é esse: ter sido o coveiro da Lava Jato. Aras tentou ser recebido por Lula, segundo fontes do Palácio do Planalto, mas o presidente não topou. A mesma fonte que vê “desespero” no atual chefe do Ministério Público diz que Lula já mandou um recado ao pretendente Aras para dissipar suas ilusões. Segundo esse interlocutor, o presidente não tem condições de comprar tal briga com as bases petistas. Por isso, o “xerife” tem um plano B para a própria sucessão: o subprocurador-geral Carlos Frederico Santos, chefe do grupo de trabalho sobre os atos golpistas de 8 de janeiro em Brasília.
Gonet fundou o IDP ao lado de Gilmar Mendes, seu orientador no doutorado e parceiro em um livro. Sua agenda se contrapõe à pauta progressista – Imagem: Arquivo/TSE e Marina Ramos/Ag. Câmara
Talvez para limpar a barra e mostrar que pode investir contra o governo Bolsonaro, em 9 de junho Aras recorreu ao Supremo com um pedido sigiloso para ressuscitar uma apuração contra Fábio Wajngarten, ex-ministro da Comunicação Social do capitão. Wajngarten foi um dos acusados no relatório da CPI da Covid, de 2021, mas a imputação não deu em nada, pois a Justiça Federal de primeira instância engavetou o caso. O pedido da PGR caiu com Gilmar Mendes, que em 30 de junho deu sinal verde à reabertura do caso. De acordo com o autor do relatório da CPI, o senador Renan Calheiros, “Aras não tem condições mínimas de seguir” no cargo. “Além de parcial, blindando Bolsonaro e amigos, perseguiu adversários e foi a mudez mais fatal na pandemia e no golpismo. A inação contribuiu para muitas mortes”, tuitou o senador. Registre-se: cabe ao Senado aprovar o procurador-geral.
Para tentar convencer Lula, Aras aposta em vozes próximas do presidente, como os ministros Rui Costa, da Casa Civil, e Jorge Messias, da Advocacia-Geral da União, e o líder do governo no Senado, Jaques Wagner. Os petistas Costa e Wagner compõem a ala baiana do governo e têm relações cordiais com Aras. O “xerife” é de Salvador e, antes de se entregar ao “bolsonarismo”, foi advogado eleitoral do PT no estado. A dupla de ministros, segundo interlocutores de ambos, acredita que Aras não criaria problemas para o governo, em caso de recondução. Na segunda-feira 10, Wagner comentou publicamente se sentir “obrigado” a reconhecer que Aras “prestou um serviço importante para o Brasil”, o fim do “uso do ativismo judicial para caçar pessoas e reputações”, ou seja, o fim da Lava Jato.
Disputam a vaga Paulo Gonet, indicado de Gilmar Mendes, e Antonio Carlos Bigonha, preferido do campo progressista
O procurador-geral conta com outro cabo eleitoral, Arthur Lira. O deputado alagoano precisa de um “xerife” amigo. Nos últimos tempos, a Procuradoria tomou decisões que o socorreram em rolos perante a Justiça e a polícia. A pedido de um parlamentar aliado de Lira, Aras chamou para si a investigação de fraudes na compra, com verba pública, de kits de robótica para escolas de Alagoas. Investigação, aliás, que Mendes mandou brecar, por requisição de Lira, após a dupla voltar de um convescote de figurões brasileiros em Lisboa, promovido no fim de junho pelo IDP. “Esse evento (lisboeta) é extremamente simbólico das estruturas jurídicas e políticas na República brasileira. É um ranço do antigo regime”, diz o sociólogo Ricardo da Costa Oliveira, professor da Universidade Federal do Paraná e estudioso da genealogia dos poderes brasileiros e suas teias nepotistas.
A Procuradoria já havia saído em socorro de Lira em abril, ao desistir de uma acusação de corrupção de 2018, motivo para o Supremo ser obrigado a arquivar o processo, apesar de haver votos suficientes para tornar réu o deputado. Quem assinou a desistência foi a vice de Aras, Lindôra Araújo. Em setembro de 2020, Araújo, bolsonarista de carteirinha, havia abandonado outra acusação de corrupção contra o parlamentar, feita por ela mesma três meses antes. Consta que o recuo ocorreu após a procuradora ter sido chamada por Bolsonaro ao Planalto e ouvido um esculacho que a fez deixar a reunião aos prantos. “Por mim, (Aras) é renovado no cargo”, disse Lira ao jornal O Globo em 30 de abril. Em 20 de junho, o deputado comandou a aprovação, a toque de caixa, de uma lei proposta pelo PGR que cria uma festa no Ministério Público, ao permitir a livre nomeação, sem concurso, para 560 cargos.
Bigonha é o candidato progressista, defensor de boas causas e crítico histórico da Lava Jato – Imagem: Cléia Viana/Ag. Câmara
Aras foi progressista no passado. Na sua casa em Brasília, em 2013, o então presidente do PT, Rui Falcão, conheceu Rodrigo Janot, escolhido procurador-geral naquele ano por Dilma Rousseff. Janot deu guarida à Lava Jato, surgida em 2014. O tempora, o mores. Agora, o único candidato “progressista” no páreo é Bigonha. O mineiro é defensor de causas indígenas e ambientais. Conta com a simpatia de José Genoino, ex-presidente do PT, de Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça de Dilma, e do conterrâneo Josué Gomes da Silva, presidente da Fiesp (ambos nasceram em Ubá). É crítico antigo e contumaz da Lava Jato. Em 2019, pediu “desculpas” ao Supremo, durante uma sessão da Corte, por ataques de colegas lavajatistas ao tribunal. É alguém disposto a atuar em linha com a agenda social de Lula, diferentemente de Gonet. “O procurador-geral precisa respeitar a soberania popular, não pode ir contra o programa de governo eleito nas urnas”, anotou em um artigo publicado por esta revista. Bigonha encontrou-se uma vez com Lula, quando expôs suas posições. O encontro deu-se na casa do advogado Roberto Teixeira, sogro de Zanin, antes de o petista ser condenado por Sergio Moro.
Um subprocurador aposentado vê falta de motivação na categoria em parte das funções sociais do Ministério Público assumida nos últimos anos por defensores públicos. À frente da Associação Nacional dos Procuradores da República, a ANPR, Ubiratan Cazetta enxerga a corporação num momento de baixa. Segundo ele, há “desânimo” geral resultante de quatro fatores. O lavajatismo, a gestão Aras, que não respaldou a ação de procuradores em temas sensíveis a Bolsonaro, como ambientais e indígenas, a perda de poder aquisitivo, de 60% desde 2005, nas contas da ANPR, e a escassez de concursos para a carreira, graças ao finado teto de gastos.
Por razões distintas, os ministros Flávio Dino e Rui Costa e o chefe da AGU, Jorge Messias, apoiam a nomeação de Gonet. Resta saber se Lula está disposto a ceder tamanho poder a Mendes – Imagem: Daniel Estevão/AGU, Marcelo Camargo/ABR e Antonio Augusto/PGR
Por causa dos dois últimos fatores, o MPF, casa de cerca de 1,1 mil procuradores, é hoje um órgão “envelhecido” e pouco atrativo a jovens talentos, embora o salário seja polpudo: um subprocurador embolsa 39 mil reais, um procurador atuante na primeira instância, 35 mil. Desde 2015, houve apenas três concursos, para um total de cerca de 110 vagas – os vencedores da última seleção tomarão posse dia 31. Na década de 1990, ocorreu um salto de 300 procuradores para perto de mil. Atualmente, o perfil médio do servidor é o de um homem branco na faixa dos 50 anos. Pesquisa do início do mês do Conselho Nacional do Ministério Público, órgão fiscalizador, apontou que, dos 13 mil integrantes do MP, incluídos aí os estaduais, há 40% de mulheres e só 15% de negros.
Apesar da posição de Lula contra a lista tríplice, Cazetta espera entregar-lhe o documento com o nome dos indicados pela categoria. A votação organizada pela ANPR ocorreu em 21 de junho. Em primeiro lugar ficou a carioca Luiza Frischeisen. Em segundo, o paulista Mario Bonsaglia. Em terceiro, o cearense José Adonis Callou de Araújo Sá. Em maior ou menor grau, o trio de subprocuradores tem o lavajatismo nas veias. Auxiliares de Lula sinalizaram a Cazetta que o presidente o receberá. O procurador pretende usar dois argumentos em defesa da lista como método de escolha: a “transparência” e o “modelo que se quer para o MPF”. Para ele, o Lula de hoje, ao contrário daquele de 2003, não conhece nem tem relação com procuradores, está à mercê de sugestões alheias, cujas motivações são “opacas”.
Os procuradores estão desmotivados, dizem representantes da categoria. O lavajatismo é uma das causas
Primeiro escolhido por Lula em 2003, Claudio Fonteles é favorável à lista e apoia Frischeisen, considerada por ele boa criminalista e anti-Aras. Acredita, porém, que o debate sobre o novo “xerife” não toca em questões mais profundas. Não se discute “o modelo que se quer para o MPF”. Ressalte-se que a escolha de procurador-geral no Brasil não segue um padrão mundial, pois o Ministério Público daqui é poderoso, tem um desenho, aquele da Constituição de 1988, incomum no resto do planeta. Não à toa, é o mais caro do mundo. O PGR controla um orçamento de 8 bilhões de reais por ano. “O Ministério Público é a voz da sociedade brasileira contra o arbítrio do Estado, não é parte do Estado”, diz Fonteles.
Na Alemanha, o MP é um órgão do governo. O ministro da Justiça indica o “xerife”, o Senado aprova, e o presidente nomeia. Não há mandato, o procurador-geral pode ser demitido. Nos Estados Unidos, também não há MP como órgão à parte. O procurador-geral é, na prática, o ministro da Justiça. O presidente designa e o Senado aprova. Quem botou pode tirar. Já houve quem tenha colocado no cargo o próprio irmão, caso de John Kennedy. A Itália é caso único na União Europeia. O procurador-geral é nomeado por um conselho, o Superior do Judiciário, formado por promotores eleitos pela categoria e por indicados do Parlamento.
Luiza Frischeisen encabeça a lista tríplice da categoria, mas tem chances mínimas – Imagem: Gil Ferreira/CNJ
Fonteles defende a ampliação de dois para três anos do mandato do procurador-geral, sem recondução. Propõe ainda uma quarentena longa para o chefe do Ministério Público após o fim de sua gestão – este só poderia ocupar cargos na corporação. As medidas, teoriza, visam “acabar com a barganha de usar o cargo como trampolim para o Supremo e para dar independência ao procurador-geral em relação ao presidente”. Aras foi dócil com Bolsonaro na esperança de ser indicado ao STF. Idem Geraldo Brindeiro, antecessor de Fonteles, nos oito anos do governo Fernando Henrique. Não por coincidência, Brindeiro ficou conhecido como “engavetador-geral da República”, epíteto extensivo a Aras.
Desta vez, a escolha será de Lula. •
Publicado na edição n° 1268 de CartaCapital, em 19 de julho de 2023.
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