Política

Leia o 1º e o último discursos de Lula na Assembleia-Geral da ONU como presidente

A participação mais recente do petista ocorreu em 2009; ele não compareceu à cerimônia no último ano de seu 2º mandato

Lula na ONU em 2003. Foto: Ricardo Stuckert
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O ex-presidente Lula (PT) participou da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas em 7 oportunidades ao longo de seus dois mandatos no Palácio do Planalto.

O petista, candidato a um terceiro governo, apenas deixou de comparecer à edição de 2010, seu último ano no cargo. Naquela ocasião, o então chanceler Celso Amorim representou o Brasil em Nova York.

Nesta terça-feira 20, Jair Bolsonaro (PL) abriu a Assembleia-Geral com ataques indiretos a Lula e à esquerda e a repetição de clichês da extrema-direita sobre temas como aborto e “ideologia de gênero”.

Logo após o pronunciamento do ex-capitão, candidatos à Presidência acionaram o Tribunal Superior Eleitoral para barrar o uso de imagens da cerimônia na ONU durante a campanha eleitoral bolsonarista.

Leia, abaixo, os discursos de Lula nas Nações Unidas em 2003 – sua primeira edição – e em 2009 – sua última participação:

Pronunciamento de Lula na abertura da 58ª Assembleia-Geral da ONU, em 2003:

“Que minhas primeiras palavras diante deste Parlamento Mundial sejam de confiança na capacidade humana de vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivência no interior das nações e no plano internacional.

Em nome do povo brasileiro, reafirmo nossa crença nas Nações Unidas. Seu papel na promoção da paz e da justiça permanece insubstituível.

Rendo homenagem ao Secretário-Geral, Kofi Annan, por sua liderança na defesa de um mundo irmanado pelo respeito ao direito internacional e a solidariedade entre as nações.

Esta Assembleia se instala sob o impacto do brutal atentado à Missão da ONU em Bagdá que vitimou o Alto Comissário para Direitos Humanos, nosso compatriota Sérgio Vieira de Mello. A reconhecida competência de Sérgio nutria-se das únicas armas em que sempre acreditou: o diálogo, a persuasão, a atenção prioritária aos mais vulneráveis. Exerceu, em nome das Nações Unidas, o humanismo tolerante, pacífico e corajoso que espelha a alma libertária do Brasil. Que o sacrifício de Sérgio e de seus colegas não seja em vão. A melhor forma de honrar sua memória é redobrar a defesa da dignidade humana onde quer que ela esteja ameaçada.

Saúdo fraternalmente o senhor Julian Hunte, que assume a Presidência desta Assembléia em momento especialmente grave na história da ONU. A comunidade internacional está diante de enormes desafios políticos, econômicos e sociais, que exigem esforço acelerado de reforma da Organização, para que nossas decisões e ações coletivas passem a ser de fato respeitadas e eficazes.

Senhoras e Senhores,

Nesses nove meses como presidente do Brasil, tenho dialogado com líderes de todos os continentes. Percebo nos meus interlocutores forte preocupação com a defesa e o fortalecimento do multilateralismo. O aperfeiçoamento do sistema multilateral é a contraparte necessária do convívio democrático no interior das Nações. Toda nação comprometida com a democracia, no plano interno, deve zelar para que, também no plano externo, os processos decisórios sejam transparentes, legítimos, representativos.

As tragédias do Iraque e do Oriente Médio só encontrarão solução num quadro multilateral, em que a ONU tenha um papel central. No Iraque, o clima de insegurança e as tensões crescentes tornam ainda mais complexo o processo de reconstrução nacional. A superação desse impasse somente poderá ser assegurada a partir da liderança da ONU. Não apenas no restabelecimento de condições aceitáveis de segurança, mas também na condução do processo político, com vistas à restauração plena da soberania iraquiana no mais breve prazo.

Não podemos fugir a nossas responsabilidades coletivas. Pode-se talvez vencer uma guerra isoladamente. Mas não se pode construir a paz duradoura sem o concurso de todos.

Senhor presidente,

Dois anos depois, ainda estão vivas em nossa memória as imagens do bárbaro atentado de 11 de setembro. Existe, hoje, louvável disposição de adotar formas mais efetivas de combate ao terrorismo, às armas de destruição em massa, ao crime organizado. Constata-se, no entanto, preocupante tendência de desacreditar a nossa Organização e até mesmo de desinvestir a ONU de sua autoridade política.

Sobre esse ponto não deve haver qualquer ambiguidade. A ONU não foi concebida para remover os escombros dos conflitos que ela não pôde evitar por mais valioso que seja o seu trabalho humanitário. Nossa tarefa central é preservar os povos do flagelo da guerra. Buscar soluções negociadas com base nos princípios da Carta de São Francisco.

Não podemos confiar mais na ação militar do que nas instituições que criamos com a visão da História e a luz da Razão.

A reforma da ONU tornou-se um imperativo, diante do risco de retrocesso no ordenamento político internacional. É preciso que o Conselho de Segurança esteja plenamente equipado para enfrentar crises e lidar com as ameaças à paz. Isso exige que seja dotado de instrumentos eficazes de ação.

É indispensável que as decisões deste Conselho gozem de legitimidade junto à Comunidade de Nações como um todo. Para isso, sua composição em especial no que se refere aos membros permanentes não pode ser a mesma de quando a ONU foi criada há quase 60 anos.

Não podemos ignorar as mudanças que se processaram no mundo, sobretudo a emergência de países em desenvolvimento como atores importantes no cenário internacional muitas vezes exercendo papel crucial na busca de soluções pacíficas e equilibradas para os conflitos.

O Brasil está pronto a dar a sua contribuição. Não para defender uma concepção exclusivista da segurança internacional. Mas para refletir as percepções e os anseios de um continente que hoje se distingue pela convivência harmoniosa e constitui um fator de estabilidade mundial. O apoio que temos recebido, na América do Sul e fora dela, nos estimula a persistir na defesa de um Conselho de Segurança adequado à realidade contemporânea.

É fundamental, igualmente, devolver ao Conselho Econômico e Social o papel que lhe foi atribuído pelos fundadores da Organização. Queremos um ECOSOC capaz de participar ativamente da construção de uma ordem econômica mundial mais justa. Um ECOSOC que, além disso, colabore com o Conselho de Segurança na prevenção de conflitos e nos processos de reconstrução nacional.

A Assembleia-Geral, por sua vez, precisa ser politicamente fortalecida para, sem dissipação de esforços, dedicar-se aos temas prioritários. A Assembleia-Geral tem cumprido papel relevante ao convocar as grandes Conferências e outras reuniões sobre direitos humanos, meio ambiente, população, direitos da mulher, discriminação racial, AIDS, desenvolvimento social.

Mas ela não deve hesitar em assumir suas responsabilidades na administração da paz e segurança internacionais. A ONU já deu mostras de que há alternativas jurídicas e políticas para a paralisia do veto e as ações sem endosso multilateral. A paz, a segurança, o desenvolvimento e a justiça social são indissociáveis.

Senhor presidente,

O Brasil tem se esforçado para praticar com coerência os princípios que defende. O novo relacionamento que estamos estabelecendo com os vizinhos do continente Sul-americano baseia-se no respeito mútuo, na amizade e na cooperação. Estamos indo além das circunstâncias históricas e geográficas que compartilhamos, para criar um inédito sentimento de parentesco e de parceria. Neste contexto, nossa relação com a Argentina é fundamental.

A América do Sul afirma-se, cada vez mais, como região de paz, democracia e desenvolvimento, que pode, inclusive, ser uma nova fronteira de crescimento para a economia mundial há anos estagnada. Além de aprofundar as relações já muito relevantes com nossos tradicionais parceiros da América do Norte e da Europa, buscamos ampliar e diversificar nossa presença internacional.

Nas parcerias com a China e com a Rússia, estamos descobrindo novas complementariedades. Somos, com muito orgulho, o país com a segunda maior população negra do mundo. Em novembro, deverei visitar cinco países da África Austral, para dinamizar nossa cooperação econômica, política, social e cultural. Vamos também realizar um encontro de cúpula entre os países sul-americanos e os Estados que compõem a Liga Árabe. Com a Índia e a África do Sul estabelecemos um foro trilateral, orientado para a concertação política e projetos de interesse comum.

O protecionismo dos países ricos penaliza injustamente os produtores eficientes das nações em desenvolvimento. Além disso, é hoje o maior obstáculo para que o mundo possa ter uma nova época de progresso econômico e social.

O Brasil e seus parceiros do G-22 sustentaram na reunião da OMC em Cancun que esta grave questão pode ser resolvida por meio da negociação pragmática e mutuamente respeitosa, que leve à efetiva abertura dos mercados. Reafirmo nossa disposição de buscar caminhos convergentes, que beneficiem a todos, levando em conta as necessidades dos países em desenvolvimento.

Somos favoráveis ao livre comércio, desde que tenhamos oportunidades iguais de competir. A liberalização deve ocorrer sem que os países sejam privados de sua capacidade de definir políticas nos campos industrial, tecnológico, social e ambiental.

No Brasil, estamos instaurando um novo modelo capaz de conjugar estabilidade econômica e inclusão social. As negociações comerciais não são um fim em si mesmo. Devem servir à promoção do desenvolvimento e à superação da pobreza. O comércio internacional deve ser um instrumento não só de criação, mas de distribuição de riqueza.

Senhor presidente,

Reitero perante esta Assembleia verdadeiramente universal o apelo que dirigi aos Fóruns de Davos e Porto Alegre e à Cúpula Ampliada do G-8, em Evian. Precisamos engajar-nos política e materialmente na única guerra da qual sairemos todos vencedores: a guerra contra a fome e a miséria.

Erradicar a fome no mundo é um imperativo moral e político. E todos sabemos que é factível. Se houver de fato vontade política de realizá-lo. Não me agrada repisar as evidências da barbárie. Prefiro sempre louvar progressos, por modestos que sejam. Mas não há como omitir os números que expõem a chaga terrível da miséria e da fome no mundo.

A fome, hoje, atinge cerca de 1/4 da população mundial incluindo 300 milhões de crianças. Diariamente, 24 mil pessoas são vitimadas por doenças decorrentes da desnutrição. Nada é tão absurdo e inaceitável quanto à persistência da fome em pleno século 21, a idade de ouro da ciência e da tecnologia.

A cada dia a inteligência humana amplia o horizonte do possível, realizando prodigiosas invenções. E, no entanto, a fome continua e, o que é mais grave, se alastra em várias regiões do planeta. Quanto mais a humanidade parece aproximar-se de Deus pela capacidade de criar, mais o renega pela incapacidade de respeitar e proteger suas criaturas. Quanto mais o celebramos ao gerar riquezas, mais o ferimos por não saber, minimamente, reparti-las.

De que vale toda essa genialidade científica e tecnológica, toda a abundância e o luxo que ela é capaz de produzir, se não a utilizamos para garantir o mais sagrado dos direitos: o direito à vida?

Recordo a lúcida advertência de Paulo VI, feita 36 anos atrás, mas de desconcertante atualidade: ‘os povos da fome dirigem-se hoje, de modo dramático, aos povos da opulência’. A fome é uma emergência e como tal deve ser tratada. Sua erradicação é uma tarefa civilizatória, que exige um atalho para o futuro. Vamos agir para acabar com a fome ou imolar nossa credibilidade na omissão?

Não temos mais o direito de dizer que não estávamos em casa quando bateram à nossa porta e pediram solidariedade.

Não temos o direito de dizer aos famintos que já esperaram tanto: passem no próximo século.

O verdadeiro caminho da paz é o combate sem tréguas à fome e à miséria, numa formidável campanha de solidariedade capaz de unir o planeta ao invés de aprofundar as divisões e o ódio que conflagram os povos e semeiam o terror.

Apesar do fracasso dos modelos que privilegiam a geração de riqueza sem reduzir a miséria, a miopia e o egoísmo de muitos ainda persistem. Desde 1º de janeiro, logramos no Brasil avanços significativos em nossa economia. Recuperamos a estabilidade e criamos as condições para um novo ciclo de crescimento sustentado. Continuaremos a trabalhar com vigor para manter o equilíbrio das contas públicas e reduzir a vulnerabilidade externa.

Não mediremos esforços para aumentar as exportações, ampliar a capacidade de poupança, atrair investimentos e voltar a crescer. Mas devemos ser capazes, ao mesmo tempo, de atender as necessidades de alimentação, emprego, educação e saúde de dezenas de milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza. Temos o compromisso de realizar um grande reforma social no país.

A fome é o aspecto mais dramático e urgente de uma situação de desequilíbrio estrutural, cuja correção requer políticas integradas para a promoção da cidadania plena.

Por isso, lancei no Brasil o projeto “Fome Zero”, que visa por meio de um grande movimento de solidariedade e de um programa abrangente envolvendo o governo, a sociedade civil e o setor privado eliminar a fome e suas causas.

O Programa conjuga medidas estruturais e emergenciais e já atende quatro milhões de pessoas que não tinham sequer o direito de comer todos os dias. Nossa meta é que até o final de meu governo nenhum brasileiro passe fome.

Senhor presidente,

As Nações Unidas aprovaram as Metas do Milênio. A FAO possui notável experiência técnica e social. Mas precisamos dar um salto de qualidade no esforço mundial de luta contra a fome. Propus, nesse sentido, a criação de um Fundo Mundial de Combate à Fome e sugeri formas de viabilizá-lo.

Existem outras propostas, algumas já incorporadas a programas das Nações Unidas.O que faltou até agora foi a imprescindível vontade política de todos nós, especialmente daqueles países que mais poderiam contribuir. De nada servem os fundos se ninguém aporta recursos. As Metas do Milênio são louváveis mas, se continuarmos omissos, se o nosso comportamento coletivo não mudar, permanecerão no papel e a frustração será imensa.

É preciso, mais do que nunca, transformar intenção em gesto. É preciso praticar o que pregamos. Com audácia e bom senso. Com ousadia e pés no chão. Inovando no conteúdo e na forma. Adotando métodos e soluções novas, com intensa participação social.

Por isso, submeto à consideração dessa Assembleia a hipótese de criar, no âmbito da própria ONU, um Comitê Mundial de Combate à Fome, integrado por chefes de Estado ou de governo, de todos os continentes, com o fim de unificar propostas e torná-las operativas.

Esperamos motivar contribuições financeiras de países desenvolvidos e em desenvolvimento, de acordo com as possibilidades de cada um, bem como de grandes empresas privadas e organizações não governamentais.

Senhor presidente,

Minha experiência de vida e minha trajetória política ensinaram-me a acreditar acima de tudo na força do diálogo. Nunca me esquecerei da lição insuperável de Ghandi: ‘A violência, quando parece produzir o bem, é um bem temporário; enquanto o mal que faz é permanente’.

O diálogo democrático é o mais eficaz de todos os instrumentos de mudança. A mesma determinação que meus companheiros e eu estamos empregando para tornar a sociedade brasileira mais justa e humana, empregarei na busca de parcerias internacionais com vistas a um desenvolvimento equânime e a um mundo pacífico, tolerante e solidário.

Este século, tão promissor do ponto de vista tecnológico e material, não pode cair em um processo de regressão política e espiritual. Temos a obrigação de construir, sob a liderança fortalecida das Nações Unidas, um ambiente internacional de paz e concórdia.

A verdadeira paz brotará da democracia, do respeito ao direito internacional, do desmantelamento dos arsenais mortíferos e, sobretudo, da erradicação definitiva da fome.

Senhor presidente,

Chefes de Estado e de governo,

Não podemos frustrar tanta esperança. O maior desafio da humanidade e, ao mesmo tempo, o mais belo é justamente este: humanizar-se.

É hora de chamar a paz pelo seu nome próprio: justiça social.

Tenho certeza de que, juntos, saberemos colher a oportunidade histórica da justiça.

Muito obrigado.”

Pronunciamento de Lula na abertura da 64ª Assembleia-Geral da ONU, em 2009:

“Meus cumprimentos ao presidente da Assembleia-Geral, Ali Treki, ao secretário-geral, Ban Ki-moon, e a todos chefes de Estado e delegados presentes.

Senhoras e senhores,

A Assembleia-Geral das Nações Unidas tem sido e deve ser cada vez mais o grande foro de debate sobre os principais problemas que afligem a humanidade.

Quero abordar aqui três questões cruciais, que me parecem interligadas, três ameaças que pairam sobre nosso planeta: a persistência da crise econômica, a ausência de uma governança mundial estável e democrática e os riscos que a mudança climática traz para todos nós.

Senhor Presidente,

Há exatamente um ano, no limiar da crise que se abateu sobre a economia mundial, afirmei, desta tribuna, que seria um grave erro, uma omissão histórica imperdoável, cuidarmos apenas das consequências da crise sem enfrentarmos as suas causas.

Mais do que a crise dos grandes bancos, essa é a crise dos grandes dogmas. O que caiu por terra foi toda uma concepção econômica, política e social tida como inquestionável. O que faliu foi um insensato modelo de pensamento e de ação que subjugou o mundo nas últimas décadas. Foi a doutrina absurda de que os mercados podiam auto-regular-se, dispensando qualquer intervenção do Estado, considerado por muitos um mero estorvo.

Foi a tese da liberdade absoluta para o capital financeiro, sem regras nem transparência, acima dos povos e das instituições. Foi a apologia perversa do Estado mínimo, atrofiado, fragilizado, incapaz de promover o desenvolvimento e de combater a pobreza e as desigualdades; a demonização das políticas sociais, a obsessão de precarizar o trabalho, a mercantilização irresponsável dos serviços públicos. A verdadeira raiz da crise foi o confisco de grande parte da soberania popular e nacional – dos Estados e dos governos democráticos – por circuitos autônomos de riqueza e de poder.

Afirmei que era chegada a hora da política. Disse que governantes – e não tecnocratas arrogantes – deveriam assumir a responsabilidade de enfrentar a desordem mundial. O enfrentamento da crise e a correção de rumo da economia mundial não poderiam ficar apenas a cargo dos de sempre. Os países desenvolvidos – e os organismos multilaterais onde eles eram hegemônicos – foram incapazes de prever a catástrofe que se iniciava e, menos ainda, de preveni-la.

Os efeitos da crise se espalharam por todo o mundo, golpeando inclusive e sobretudo àqueles que há anos vinham reconstruindo suas economias com enormes sacrifícios. Não é justo que o custo da aventura especulativa seja assumido pelos que nada tem a ver com ela: os trabalhadores e as nações pobres ou em desenvolvimento.

Passados doze meses, constatamos que houve alguns progressos mas que persistem muitas indefinições. Ainda não há uma clara disposição para enfrentar, no âmbito multilateral, as graves distorções da economia global. O fato de ter sido evitado o colapso total do sistema parece ter provocado em alguns um perigoso conformismo.

A maioria dos problemas de fundo não foi enfrentada. Há enormes resistências em adotar mecanismos efetivos de regulação dos mercados financeiros. Países ricos resistem em realizar reformas nos organismos multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial. É incompreensível a paralisia da Rodada de Doha, cujo acordo beneficiará sobretudo as nações mais pobres do mundo. Há sinais inquietantes de recaídas protecionistas. Pouco se avançou no combate aos paraísos fiscais.

Mas muitos países não ficaram de braços cruzados. O Brasil – um dos últimos, felizmente, a sentir os efeitos da crise – é hoje um dos primeiros a sair dela. Não fizemos nenhuma mágica. Simplesmente havíamos preservado nosso sistema financeiro do vírus da especulação. Havíamos reduzido nossa vulnerabilidade externa, passando da condição de devedores à de credores internacionais.

Decidimos, junto com outros países, aportar recursos para que o FMI empreste dinheiro aos países mais pobres sem os condicionamentos inaceitáveis do passado. Mas, sobretudo, desenvolvemos antes da crise, e depois que ela eclodiu, políticas anticíclicas.

Aprofundamos nossos programas sociais, especialmente os de transferência de renda. Aumentamos os salários acima da inflação. Estimulamos, por meio de medidas fiscais, o consumo para impedir que se detivesse a roda da economia.

Já saímos da breve recessão. Nossa economia retomou seu ímpeto e anuncia um 2010 promissor. As exportações recuperam seu vigor. O emprego se recompõe de forma extraordinária. O equilíbrio macroeconômico foi preservado sem afetar as conquista populares. O que o Brasil e outros países demonstraram é que também nos momentos de crise precisamos realizar audaciosos programas sociais e de desenvolvimento.

Mas não tenho a ilusão de que poderemos resolver nossos problemas sozinhos, apenas no espaço nacional. A economia mundial é interdependente. Estamos todos obrigados a atuar além de nossas fronteiras. Por isso, é imprescindível refundar a ordem econômica mundial.

Nas reuniões do G-20 e nos muitos encontros que mantive com líderes mundiais tenho insistido sobre a necessidade de irrigar a economia mundial com importantes créditos. Tenho defendido a regulação financeira, a generalização de política anti-cíclicas, o fim do protecionismo, o combate aos paraísos fiscais. Com a mesma determinação, meu país propõe uma autêntica reforma dos organismos financeiros multilaterais.

Os países pobres e em desenvolvimento têm de aumentar sua participação na direção do FMI e do Banco Mundial. Sem isso não haverá efetiva mudança e os riscos de novas e maiores crises serão inevitáveis. Somente organismos mais representativos e democráticos terão condições de enfrentar complexos problemas como os do reordenamento do sistema monetário internacional.

Não é possível que, passados 65 anos, o mundo continue a ser regido pelas mesmas normas e valores dominantes quando da conferência de Bretton Woods.

Não é possível que as Nações Unidas e seu Conselho de Segurança sejam regidos pelos mesmos parâmetros que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.

Vivemos um período de transição no âmbito internacional. Caminhamos em direção ao mundo multilateral. Mas também multipolar, seguindo as experiências de integração regional, como ocorre na América do Sul com a constituição da UNASUL. Esse mundo multipolar não será conflitante com as Nações Unidas. Ao contrário.

Poderá ser um fator de revitalização da ONU. De uma ONU com a autoridade política e moral para solucionar os conflitos do Oriente Médio, garantindo a coexistência de um Estado Palestino com o Estado de Israel; de uma ONU que enfrente o terrorismo sem estigmatizar etnias e religiões, mas atacando suas causas profundas e promovendo o diálogo de civilizações; de uma ONU que assuma a ajuda efetiva a países – como o Haiti – que buscam reconstruir sua economia e seu tecido social depois de haver recuperado a estabilidade política; de uma ONU que se comprometa com o Renascimento africano que hoje assistimos; de uma ONU capaz de adotar políticas eficientes de preservação e ampliação dos Direitos Humanos; de uma ONU que possa avançar no caminho do desarmamento estabelecendo um real equilíbrio entre este e a não-proliferação; de uma ONU que lidere cada vez mais as iniciativas para preservar o ambiente; de uma ONU que, por meio do ECOSOC, incida nas definições sobre o enfrentamento da crise econômica; de uma ONU suficientemente representativa para enfrentar as ameaças à paz mundial, por meio de um Conselho de Segurança renovado, aberto a novos membros permanentes.

Senhor Presidente,

Não somos voluntaristas. Mas sem vontade política não se pode enfrentar e corrigir situações que conspiram contra a paz, o desenvolvimento e a democracia. Sem vontade política persistirão anacronismos como o embargo contra Cuba. Sem vontade política continuarão a proliferar golpes de Estado como o que derrocou o Presidente constitucional de Honduras, Manuel Zelaya, que se encontra, desde segunda-feira, refugiado na embaixada do Brasil em Tegucigalpa. A comunidade internacional exige que Zelaya reassuma imediatamente a Presidência de seu país e deve estar atenta à inviolabilidade da missão diplomática brasileira na capital hondurenha.

Sem vontade política, por fim, crescerão as ameaças hoje representadas pela mudança climática no mundo. Todos os países devem empenhar-se em realizar ações para reverter o aquecimento global.

Preocupa-nos a resistência dos países desenvolvidos em assumir sua parte na resolução das questões referentes à mudança do clima. Eles não podem lançar sobre os ombros dos países pobres em desenvolvimento responsabilidades que lhes são exclusivas.

O Brasil está cumprindo a sua parte. Vamos chegar a Copenhague com alternativas e compromissos precisos. Aprovamos um Plano de Mudanças Climáticas que prevê a redução de 80% do desmatamento da Amazônia até 2020. Diminuiremos em 4,8 bilhões de toneladas a emissão de CO2, o que representa mais do que a soma dos compromissos de todos os países desenvolvidos juntos.

Em 2009, já podemos apresentar o menor desmatamento dos últimos 20 anos. A matriz energética brasileira é das mais limpas do planeta: Quarenta e cinco por cento da energia consumida no país é renovável. No resto do mundo apenas 12% é renovável, enquanto que nos países da OCDE essa proporção não supera 5%. Oitenta por cento de nossa eletricidade provém igualmente de fontes renováveis. Vinte e cinco por cento de etanol está misturado à gasolina que consomem nossos veículos. Mais de 80% dos carros produzidos no país têm motor flex, o que permite a utilização indiscriminada de gasolina ou álcool.

O etanol brasileiro e os demais biocombustíveis são produzidos em condições cada vez mais adequadas, sobretudo a partir do zoneamento agroecológico que acabamos de implantar, mandando para o Congresso Nacional.

Proibimos a cana-de-açúcar e as usinas de álcool em áreas de vegetação nativa. A decisão vale para toda Amazônia e nossos principais biomas.

O plantio da cana-de-açúcar não ocupa mais do que 2% de nossas terras agricultáveis. Distinto de outros biocombustíveis, ele não afeta nossa segurança alimentar nem compromete o equilíbrio ambiental. Empresários, trabalhadores e governo firmaram um importante compromisso para assegurar o trabalho decente nos canaviais brasileiros.

Todas essas preocupações fazem parte da política energética de um país autosuficiente em petróleo e que acaba de descobrir grandes reservas que nos colocarão na vanguarda da produção de combustíveis fósseis. Mas o Brasil não renunciará à agenda ambiental para ser apenas um gigante do petróleo. Queremos consolidar nossa condição de potência mundial da energia verde.

Por outro lado, deve-se exigir dos países desenvolvidos metas de redução de emissões muito mais expressivas do que as atuais, que representam mera fração do que é recomendado pelo Painel Inter-governamental para a Mudança do Clima.

Causa-nos também profunda preocupação a insuficiência dos recursos até agora anunciados para as necessárias inovações tecnológicas que preservarão o ambiente nos países em desenvolvimento.

A resolução desses e outros impasses só ocorre se as ameaças ligadas às mudanças climáticas forem enfrentadas a partir da compreensão de que temos responsabilidades comuns, mas diferenciadas.

Senhor Presidente,

Os temas que estão no centro de nossas preocupações – a crise financeira, a nova governança mundial e a mudança do clima – têm um forte denominador comum. Ele aponta para a necessidade de construir uma nova ordem internacional, sustentável, multilateral, menos assimétrica, livre de hegemonismos e dotada de instituições democráticas. Esse mundo novo é um imperativo político e moral.

Não basta remover os escombros do modelo que fracassou, é preciso completar o parto do futuro. É a única forma de reparar tantas injustiças e de prevenir novas tragédias coletivas.

Obrigado.”

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