Política

Janela de oportunidade para o impeachment de Bolsonaro está fechando, diz jurista

Autor de ‘Como remover um presidente’ afirma que deixar Bolsonaro livre do processo significa riscos sérios e anunciados às Eleições 2022

Manifestação em Brasília contra o presidente Jair Bolsonaro Foto: Sergio Lima/AFP
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Quando o advogado e professor da USP Rafael Mafei decidiu escrever um livro sobre a história do impeachment, o Brasil tinha acabado de viver mais um capítulo desta história. Derrubada após um processo que teve como pivô uma contestável alegação de “pedaladas fiscais”, Dilma Rousseff (PT), em 2015, se tornara a segunda presidente a deixar o cargo menos de 30 anos de redemocratização.

Rafael Mafei, advogado e professor da USP.
Foto: Divulgação/USP

Seu livro Como remover um presidente: teoria, história e prática do impeachment no Brasil (Ed. Zahar) foi publicado seis anos depois, em junho de 2021. Àquela altura, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), mantinha engavetadas 115 denúncias de irregularidades cometidas pelo presidente Jair Bolsonaro.  E não há qualquer previsão de avaliá-las

Na Câmara, o sucesso de um processo para destituir o presidente é essencialmente política: qualquer pedido só avançará se Lira assim o quiser. Para Mafei, o líder da Casa detêm um “poder autocrata e cesarista”, e está é uma das características mais marcantes do impeachment à brasileira. 

As diferenças e semelhanças nos processos de deposição de dois presidentes anteriores esbarram agora em uma a incógnita. Jair Bolsonaro — um tipo único de líder que não evita cometer crimes de responsabilidade, como explica Mafei, será apeado do poder?

Nas, ruas Manifestações da oposição  começam a alimentar o apoio popular à pauta, um ponto visto por muitos como fundamental para o declínio de um presidente como Bolsonaro, cuja popularidade já está em queda.

Mas é uma Comissão Parlamentar de Inquérito que deve revelar fatos que podem, assim como no caso de Collor, sacramentar a derrota do ex-capitão. Embora a CPI da Covid não traga “novidades” relativas a crimes cometidos por Bolsonaro — ao menos até aqui –,  ela ajuda a canalizar a quantidade de infrações à honra e o tamanho do cargo que ele ocupa, argumenta o jurista. 

Durante a pandemia, o crime contra a saúde pública foi o mais gritante entre todas as atitudes do presidente da República. E não somente: Mafei ressalta que não há dúvidas da quantidade de crimes de responsabilidade que o Bolsonaro cometeu e que lhe tirariam acertadamente do cargo. Mas, para ele, essa “janela de oportunidade” está perto de fechar, e ter o presidente concorrendo à reeleição pode significar o enfraquecimento ainda maior da legitimidade democrática do voto. 

Em entrevista a CartaCapital, Rafael Mafei analisa também o papel do vice-presidente Hamilton Mourão neste momento, que, em mais de uma ocasião, demonstrou-se incomodado com seu isolamento em decisões do Planalto, e como a oposição deve olhar para demais estratos de deputados para avaliar quantos votos pode ter para avançar na pressão pela abertura, ao menos da gaveta, de Arthur Lira. 

Confira a seguir.

CartaCapital: Entre toda a história da lei do impeachment no mundo e no Brasil, você identificou alguma peculiaridade brasileira que se mostra importante para entender o momento de agora?

Rafael Mafei: O que eu acho distintivo do caso brasileiro é, primeiro, a fragmentação política no Brasil, que é muito grande. Para que você consiga construir uma super maioria de dois terços da Câmara dos Deputados, precisa colocar muita gente na mesa para conversar e ter todas essas pessoas pensando no impeachment como o seu plano A. O pessoal precisa parar e pensar: ‘Olha, eu como liderança política estarei melhor se apostar na pauta do impeachment do que, por exemplo, se deixar o Bolsonaro sangrar até 2022’.

Uma segunda característica do Brasil é esse esse poder quase autocrático, cesarista do presidente da Câmara dos Deputados. Eles têm o direito de ignorar uma centena de denúncias feitas contra o presidente sem nenhum tipo de constrangimento jurídico. A Lei do Impeachment, de 1950, previa que o presidente [da Câmara] recebesse as denúncias e as encaminhasse para comissão especial. A comissão poderia arquivar por razões políticas, se fosse o caso, porque a dinâmica do impeachment é muito política na Câmara. 

Esse poder de fingir que não recebeu anula o direito de denunciar que a Constituição deu aos cidadãos. De nada adianta eu ter um direito de apontar uma ilegalidade a uma autoridade competente para recebê-la se essa autoridade não é obrigada a responder a minha denúncia. 

CC: Analisando os impactos que um impeachment deixa no País, você acredita que a queda de Dilma Rousseff deixou alguma “ferida” no País que seja relevante de observar hoje?

Rafael Mafei: Não tenho base para afirmar que o impeachment de Dilma resultou na eleição de Bolsonaro, nem para dizer que Bolsonaro não teria sido eleito se o impeachment de 2016 não tivesse ocorrido. Mas é seguro dizer que existe uma semelhança dos contextos que contribuíram para a ocorrência de ambos os fenômenos.

Do ponto de vista político, o impeachment de Dilma explica-se principalmente pela reação de uma fração importante do Congresso ao avanço da Lava Jato. Esse foi o fator determinante para algumas das lideranças políticas que trabalharam por sua queda, especialmente do PMDB, que estavam na mira direta da operação. Eles se convenceram de que estariam melhor posicionados para reagir politicamente à operação na presidência de Michel Temer, ele próprio um dos alvos da operação, do que na presidência de Dilma Rousseff. Dilma nunca deu qualquer aceno de que usaria os poderes do seu cargo para protegê-los. Ao contrário: no segundo semestre de 2015, quando o impeachment começou a marchar de vez na Câmara, Dilma reconduziu Rodrigo Janot à Procuradoria-Geral da República.

Essa onda lavajatista, que mesclava a ambição de investigar e punir corrupção política, que é um problema real e precisa ser mesmo enfrentado, com uma visão messiânica de salvação da política por meio do processo penal, foi a mesma onda que Jair Bolsonaro soube surfar em sua campanha de 2018. Bolsonaro abraçou o lavajatismo e foi abraçado por ele, primeiro pelo antipetismo, ainda na fase da campanha, e depois por uma simbólica união de lideranças e de propósitos, por meio do convite aceito por Sérgio Moro para integrar o seu governo.

CC: Jair Bolsonaro não parece ter uma estratégia de enfrentamento do impeachment, já que, por diversas vezes, ele se colocou de forma avessa ao que seu cargo demanda. O que acha disso?

Rafael Mafei: Eu não acho que o Bolsonaro seja um presidente que não tenta ser resguardado da ameaça do impeachment. Ele sabe que comete crimes de responsabilidade, comete quase que orgulhosamente, mas a maneira como ele escolheu se proteger impeachment é, de um lado, construindo um escudo político que impeça que o processo avance na Câmara, e do outro criando situações sociais que são pouco convidativas ao tipo de processo que precisa acontecer para o impeachment amadurecer. 

Essa tática de criar ruídos no debate público a todo tempo, renovando condutas absurdas, uma na sequência da outra, faz com que o crime de responsabilidade de hoje desvie a atenção daquele de ontem. Isso dificulta a organização de uma acusação de impeachment. A melhor maneira de você conseguir fazer isso é selecionando alguns crimes, ignorando outros e falando ‘esses aqui são os mais graves, são aqueles que realmente fundamentam o impeachment’, aqueles nos quais a gente tem como convencer a opinião pública de que este comportamento do presidente é criminoso, é indigno e é profundamente danoso às instituições aos direitos das pessoas. E esse contexto, para mim, é o contexto da pandemia. Por isso, acho que a CPI tem esse mérito, embora não traga necessariamente novidades.

Quando a gente viu, por exemplo, o impeachment do Collor, ele era fritado na CPI que apurou os crimes de PC Farias e em reportagens de veículos importantes, de grande impacto, que exploravam a minúcia dos relacionamentos de Collor com aquele sujeito, um criminoso quase caricato, um vilão corrupto de sessão da tarde. Isso foi sendo curtido de maneira relativamente lenta, por três, quatro meses, desde a primeira denúncia do Pedro Collor, até que amadurecesse. No caso da Dilma, a gente passou seis meses discutindo orçamento público, pedalada fiscal e meta orçamentária. Em um espaço de seis meses no governo Bolsonaro, a quantidade de condutas aviltantes aos padrões do direito e da civilidade, política e da decência humana é muito grande. 

CC: Ainda há tempo hábil para que um impeachment contra Bolsonaro avance? 

Rafael Mafei: O impeachment do Collor durou em torno de três meses, e demorou mais porque o Collor praticou todo tipo de chicana retardatária que podia. Com a Dilma, demorou um pouco mais de seis meses porque também houve intervenção do STF nas barbaridades que o Eduardo Cunha [ex-presidente da Câmara] praticava, tentando interferir no rito para fazer com que as coisas caminhassem de acordo com seus interesses.

No caso do Bolsonaro, como os crimes de responsabilidade são indiscutíveis, pelo menos do ponto de vista jurídico teria como andar rapidamente. Também não haveria nenhuma dúvida regimental, o Supremo, com Collor e Dilma, deixou muito claro quais são as regras do jogo. É uma questão puramente política nessa altura. Também não haveria nenhuma dúvida regimental e sobre o fundamento jurídico. Todo mundo sabe que é uma questão política e de contar votos, mas a janela de oportunidade está se fechando.

O principal objetivo na condução da pandemia foi diminuir os danos políticos a Bolsonaro, e não diminuir os danos à saúde do povo brasileiro. Se isso não configurar um crime de responsabilidade, nada mais configura. Não é possível que alguém consiga fazer algo pior do que na pior pandemia da geração dolosamente retardar a compra de vacinas, que são sabidamente e há muito tempo a única maneira de conter uma pandemia. Eu não consigo imaginar algo pior que um presidente possa fazer usando os poderes do seu cargo.

O ponto do impeachment é todo esse: refrear que uma pessoa use os poderes do seu cargo para atingir um interesse político, pessoal, familiar com essa perversidade e vilania que agrida as pessoas e as instituições, e nesse caso, a vida dos brasileiros.

Manifestações contra Bolsonaro se espalharam pelo país em 19 de junho. Foto: Paulo Pinto/AFP

CC: Como você vê o empenho da oposição pelo impeachment? 

Rafael Mafei: Bolsonaro está de antemão, com um ano de antecedência, avisando que fará tudo que está ao seu alcance para tumultuar o andamento das eleições se ele vir a possibilidade de ser derrotado. Isso cria para ele um estímulo sem igual para sabotar as eleições da maneira que puder. Ele sabe que toda essa proteção jurídica que tem para continuar praticando crimes, todo o interesse de seus filhos que hoje estão muito bem protegidos, tudo isso desaparece no dia que ele deixar de ser presidente. O custo para ele deixar de ser presidente é muito alto, e ele já deixou muito claro que não é por nenhum tipo de apreço à democracia que vai pagar esse custo. Se ele puder usar todos os poderes e sua plataforma política, vai usá-lo para sabotar as eleições.

A partir do momento que você não tem eleição limpa e confiável, não pode pertencer ao “clube das democracias” do mundo. Estamos criando um cenário no qual o estímulo para que isso aconteça é enorme. Isso entra na conta de quanto o impeachment é uma emergência democrática para o Brasil e como ele precisa começar a caminhar o quanto antes para evitar que isso aconteça.

As pessoas saíram às ruas e deram uma manifestação muito importante de sua força e da força que tem essa pauta do impeachment. O que eu acho que falta é conseguir fazer com que essas essas alianças de esquerda consigam construir uma articulação com partidos não ideologicamente de esquerda. O impeachment não tem como acontecer se você não tiver partidos de médio porte e de grande porte fora deste arco. Precisa ser construído junto a lideranças diversas, porque esses partidos também têm os seus cálculos políticos.

CC: O vice-presidente Hamilton Mourão tem dado declarações descontentes relacionadas a sua exclusão das decisões do governo. Isso é um sinal de que ele pode acenar como um “presidente possível”?

Rafael Mafei: O Mourão tem dado sinais de distanciamento, e está excluído não só pelo Bolsonaro, mas por todo mundo. As pessoas que vão promover o impeachment precisam conseguir enxergar no futuro governante uma posição melhor [para elas] do que a de hoje no governo.

Nos outros casos, o Michel Temer [vice de Dilma] e o Itamar Franco [vice de Collor] fizeram movimentos públicos de discretamente definirem como eram seus estilos para tentar desenhar um horizonte do que seriam seus governos, assim, os partidos dos quais o impeachment dependia podiam ter o mínimo de segurança. O Mourão não vai muito além de mostrar que ele está excluído pelo Bolsonaro. Ele não parece ser uma pessoa que tem nem o trânsito político, nem a confiança. Então, a capacidade de rabiscar esse cenário alternativo com esses partidos mais resistentes ao impeachment é eles passarem a enxergar maneiras de apostar no governo Mourão.

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