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Infância protegida

O governo Lula embala um programa de combate à exploração sexual para substituir os delírios de Damares Alves

Devaneios. Para prevenir os abusos, a ex-ministra propôs a instalação de uma fábrica de calcinhas. Uma paupérrima comunidade reivindica o posto de “Veneza Brasileira” – Imagem: Willian Meira/MMFDH
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“Posso te contar as histórias, mas não vou revelar os nomes, porque a situação aqui é muito delicada”, alerta Nilzete Conceição, coordenadora da Pastoral da Criança de São Sebastião da Boa Vista, um dos 16 municípios da Ilha de Marajó, maior arquipélago do planeta, localizado no Pará. A região de paisagem paradisíaca poderia destacar-se pelo ecoturismo e pela cultura local riquíssima, mas há décadas figura no noticiário associado à exploração sexual de crianças e adolescentes. “A realidade é cruel, mas os horrores que Damares Alves falou sobre as nossas crianças deixou a comunidade revoltada. Precisamos de políticas públicas sérias, não de circo midiático.”

Ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e hoje senadora, Damares usou a triste realidade de Marajó para aterrorizar o eleitorado na campanha de 2022. Em um evento com evangélicos, chegou a dizer que crianças da ilha têm “os dentes arrancados” para facilitar a prática do sexo oral, costume combatido pelo governo Bolsonaro, mas que poderia voltar a ocorrer, caso o capitão perdesse as eleições. Não há registros da gravíssima denúncia em inquéritos policiais nem nos relatórios produzidos por duas CPIs da Pedofilia, uma no Senado e outra na Assembleia Legislativa do Pará, ambas realizadas em 2010. Eram fake news. Depois, a parlamentar admitiu que ouviu esse relato de populares “nas ruas”, e não teve o cuidado de verificar a informação antes de passá-la adiante. Por mero achismo, ela também concluiu que os recorrentes casos de estupro de vulneráveis são motivados pelo fato de as crianças “não usarem calcinha” e propôs, como solução, a instalação de uma fábrica de roupas íntimas.

“Cadê a fábrica de calcinhas?”, questiona Conceição em tom de deboche. A religiosa assegura que o programa “Abrace o Marajó”, propagandeado pela então ministra, nunca chegou ao município de pouco mais de 27 mil habitantes, que sofre com a falta de delegacia especializada, de hospitais equipados para fazer exames sexológicos e de estrutura adequada para o Conselho Tutelar. “As crianças ficam muito soltas. As famílias são desestruturadas e a pobreza é imensa”, lamenta. Por lá, é comum ver adolescentes grávidas, que acabam ficando sob os cuidados da avó, as principais chefes de família na região. “Mas a avó precisa sair para trabalhar e deixa a criança sozinha, ou sob os cuidados de alguma outra mais velha. Isso contribui muito para o cenário de abuso.”

Não por acaso, moradores do arquipélago ficaram empolgados com o anúncio de que o governo Lula pretende substituir os devaneios de Damares Alves por uma política pública séria. Lançado pelo novo ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, o programa “Cidadania Marajó” começou a ser implementado no último dia 18. A secretária-executiva da pasta, Rita Oliveira, explica que, de largada, foi instalada uma ouvidoria itinerante, circulando por todos os municípios, para o programa ser construído em sintonia com as necessidades apontadas pela população.

Há tempos, moradores do arquipélago cobram uma política pública séria para proteger as crianças e adolescentes

“A partir disso, vamos começar a levar os primeiros serviços e fazer entregas robustas de equipamentos necessários”, promete a secretária. Segundo ela, já está prevista a entrega de lanchas, barcos e carros de tração 4 x 4; além de equipamentos para os centros de escuta protegida, a instalação de Centros de Referência de Direitos Humanos e elaboração de campanhas de comunicação em rádio e tevê. Essas primeiras ações devem ser desenvolvidas com recursos do ministério e do governo do Pará, mas a ideia é ampliar e buscar parcerias também com o setor privado.

Uma comitiva do governo federal identificou que a região também tem sofrido com conflitos fundiários e a expansão irregular do agronegócio. “Com base no que temos até aqui, vamos fazer um diagnóstico intersetorial, portanto, a ideia é abarcar também outros ministérios, como o do Trabalho, o da Fazenda, do Desenvolvimento Social e da Indústria e Comércio, para que possamos pensar num desenvolvimento socioeconômico sustentável, capaz de dialogar com as especificidades do território”, explica Oliveira.

O reforço prometido pela União é bem-vindo. O conselheiro tutelar Dilson de Souza chegou a abrigar vítimas de abuso sexual em sua própria casa, porque o município não tem estrutura para receber menores que não podem voltar a morar com a família depois de denunciar a violência. “Quase todos os dias eu recebo denúncia de estupro de vulnerável, e grande parte acontece no ambiente doméstico.”

Uma das referências na luta em defesa das crianças e adolescentes é a coordenadora da Comissão Justiça e Paz da CNBB no Pará, Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, conhecida na região como Irmã Henriqueta. Há mais de 20 anos ela denuncia a exploração sexual que acontece no arquipélago e avalia que o grave quadro se sustenta em “três pilares”: impunidade, pobreza extrema e abandono social e familiar. Dois dos municípios da Ilha figuram entre as dez cidades com o menor IDH do Brasil, Melgaço e Chavez. “Para combater a violência, de fato, é necessária uma presença forte e constante do Poder Público, não iniciativas isoladas.”.

Também presidente do Instituto de Direitos Humanos Dom José Luís ­Azcona, Irmã Henriqueta participou de reuniões com a comitiva do Ministério dos Direitos Humanos para a implementação do novo programa de proteção. “Achei a escuta acolhedora. Não tem como aplicar uma iniciativa aqui de cima para baixo, é preciso ouvir as demandas da comunidade, acho que este é um bom começo.”

A orla dos municípios ribeirinhos é povoada de crianças que saem de casa para tentar voltar com algum sustento. As comidas saborosas e coloridas típicas da região não estão na mesa dos pequenos marajoaras pobres que se alimentam basicamente de açaí, mortadela frita e farinha, quando tem. Diante da dieta escassa, qualquer doce, chocolate ou presente brilha aos olhos. É assim que os aliciadores agem para atrair as crianças.

“Outro dia, as crianças estavam brincando ali fora e vi um senhor de idade oferecendo bombom a elas. De repente, ele pegou uma no colo e tentou beijar na boca. Corri e tirei elas de lá”, conta Kátia Rodrigues, mãe adotiva de uma menina de 6 anos e de outra jovem de 19, que engravidou após sofrer uma série de abusos. “Já se passaram anos e o trauma continua. Mas estamos tentando reescrever a história das nossas filhas com muito amor.” •

Publicado na edição n° 1261 de CartaCapital, em 31 de maio de 2023.

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