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Ida de Amorim à Rússia e à Ucrânia reforçou nossas convicções, diz chanceler brasileiro

Em entrevista a CartaCapital, Mauro Vieira fala também sobre os ‘ruídos’ com os EUA e a relação pós-Bolsonaro com a América Latina

O chanceler Mauro Vieira. Foto: Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
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O governo Lula acredita na possibilidade de formar um grupo de países para intermediar as negociações pela paz na Ucrânia, mas Kiev e Moscou precisam demonstrar “flexibilidade”, porque “já passou da hora de falarmos na paz”. A avaliação é do ministro de Relações Exteriores, Mauro Vieira, em entrevista a CartaCapital.

Segundo ele, a posição do governo é de que o primeiro passo seria a “cessação de hostilidades”, mas “as partes” ainda precisam ser convencidas a optar por essa saída.

Interlocutor para assuntos internacionais mais importante do governo, o ex-chanceler Celso Amorim esteve na Ucrânia e na Rússia entre abril e maio. As viagens, diz Vieira, acabaram por reforçar as convicções de Lula sobre o conflito.

Na terça-feira 16, o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, afirmou que  Putin e Zelensky aceitaram receber um grupo de autoridades africanas para discutir um possível plano de paz.

A retórica e a prática de medidas hostis contra os vizinhos são a antidiplomacia, e o governo Lula faz diplomacia

Logo após receber Amorim, no entanto, Zelensky declarou que o “único plano” capaz de interromper a guerra é “a fórmula ucraniana”.

A CartaCapital, Mauro Vieira também falou sobre a reaproximação com a América Latina, os “ruídos” no diálogo entre Lula e Joe Biden e a confiança de que o Brasil conquistará uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das ONU.

Vieira embarcou nesta quarta com Lula rumo ao Japão, onde participarão, como convidados, da cúpula do G7.

Confira a seguir.

CartaCapital: Amorim foi à Rússia e à Ucrânia. As viagens tiveram algum impacto na forma como o Brasil analisa a guerra? 

Mauro Vieira: As missões são muito importantes para o esforço em favor do diálogo que o governo Lula defende desde a posse, em janeiro. E também para a compreensão do atual estágio do conflito. Para isso, é muito importante ouvir as partes, como estamos fazendo.

Temos procurado dialogar não somente com a Ucrânia e a Rússia, mas também com os demais atores da comunidade internacional – tanto os que se aliaram a uma das partes quanto aqueles que não se engajaram no conflito. É isso que estamos procurando fazer, com boa receptividade de todos em relação à posição brasileira e à importância de o País participar do debate em busca de soluções para o conflito.

CC: Como o Brasil define, hoje, sua posição?

MV: Esse contato direto com as partes e com a realidade do conflito serve para reforçar nossa convicção de que já passou da hora de falarmos na paz. Essa tem sido a posição do presidente Lula, de que é preciso buscar esse caminho com determinação, de que é preciso dar um primeiro passo, com uma cessação de hostilidades que abra algum espaço para o diálogo.

Sabemos que não é fácil, que esse esforço diplomático levará tempo e que as partes ainda precisam ser convencidas a optarem por esse caminho, mas é preciso perseverar. É um esforço de convencimento, e uma boa parte da comunidade internacional dialoga com o Brasil a esse respeito, o que é encorajador.

CC: O governo acredita, de fato, na chance de prosperar a formação de um grupo de países para intermediar a paz?

MV: As conversas em curso têm esse objetivo, mas é preciso ser flexível e ouvir os demais países sobre possíveis formatos. O restabelecimento da paz naquela região requer um esforço coletivo, e o formato será desenhado ao longo do processo. Os processos de paz funcionam assim. Por isso, a flexibilidade é fundamental, ao lado de ouvidos atentos para os argumentos e para as sensibilidades das partes ao longo do caminho.

O engajamento das partes é essencial para o êxito de qualquer processo negociador. Agora mesmo os países africanos anunciaram que estão organizando uma missão para conversar com as partes sobre a paz. É um passo importante na direção que nós consideramos a mais correta, que é a de um diálogo construtivo, a da busca de soluções, no formato que for mais eficaz e que respeite a vontade das partes.

Não podemos depender de uma arquitetura institucional como a atual do Conselho de Segurança, que reflete a ordem de 1945, e não a de 2023

CC: Após a viagem de Lula aos EUA, a gestão Biden fez críticas ao governo brasileiro. Qual é o status da relação com a Casa Branca?

MV: Depois da viagem do presidente Lula a Washington, houve um importante trabalho de seguimento dos dois países, com bons resultados em várias áreas, entre elas a de comércio e a de meio ambiente.

Nesta semana mesmo, a secretária-geral do Itamaraty, Maria Laura da Rocha, esteve em Washington para reunião com a embaixadora Wendy Sherman, vice-secretária de Estado dos Estados Unidos. Ou seja, o status da relação é muito positivo, sobretudo após a visita do presidente Lula a Washington. Conseguimos relançar a relação no nível prioritário que ela merece, depois de um período de afastamento no governo anterior.

Isso não significa, no entanto, que vamos estar de acordo em tudo. Divergências são naturais entre países grandes e soberanos, como é o caso de Brasil e Estados Unidos, e é preciso acostumar-se a isso, encarar com naturalidade o fato de que países aliados nem sempre coincidem.

CC: Lula também foi à China. Qual é a importância de Pequim para a agenda internacional do governo?

MV: Os números da missão empresarial brasileira que foi à China e a ampla variedade de acordos assinados durante a visita presidencial falam por si e demonstram a profundidade dos laços entre os dois países.

Os dados mais conhecidos são os de comércio e de investimentos, que registraram um crescimento impressionante nos últimos anos. O volume das trocas comerciais quadruplicou desde 2009, quando a China passou a ser o principal parceiro comercial do Brasil: é um número que impressiona, foram 150 bilhões de dólares em trocas comerciais no ano passado, com superávit expressivo para o Brasil.

Havia uma grande vontade de que o Brasil voltasse a ocupar o seu lugar, e isso está sendo feito

Além disso, as exportações brasileiras para a China em 2022 foram superiores à soma das nossas exportações para os Estados Unidos e para a União Europeia somados. É preciso parar para pensar nesse dado, que é muito revelador das mudanças nas relações econômicas no mundo e também das oportunidades abertas para o agronegócio brasileiro nos mercados chinês e asiático em geral.

Mas a relação vai muito além da dimensão econômica: por exemplo, somos parceiros, desde a década de 1980, em um programa de lançamento de satélites de monitoramento que agora entra na sua sexta geração, como resultado de um dos acordos assinados pelos presidentes Lula e Xi Jinping em Pequim.

A atual importância da relação, para ambos os países, é evidente, mas ainda há um grande potencial de crescimento a ser explorado, em várias áreas. E o relançamento do diálogo com Pequim contribui para aproveitarmos ainda mais esse potencial.

CC: Qual é a importância de o Brasil voltar a participar do G7? Causa preocupação o tom a ser adotado no documento sobre segurança alimentar ao tratar da guerra na Ucrânia?

MV: O Brasil foi convidado a participar das reuniões do G20 no período entre 2003 e 2009 e volta a ser convidado para a edição deste ano. Em todas elas, o Brasil teve como representante o presidente Lula, o que seguramente não é mera coincidência.

Essa sequência de convites reflete o prestígio internacional do presidente e demonstra o acerto da ênfase brasileira na diplomacia presidencial como meio para promover os interesses do Brasil no mundo. O presidente fez questão de que a nossa participação neste ano contemplasse uma ampliação do diálogo do G20 com o G7, tendo presente o fato de que o Brasil presidirá o G20 no ano que vem – e que a agenda global passa, em boa medida, pelo trabalho de coordenação de ambos os grupos.

Documentos da reunião estão no momento em negociação, e não me cabe comentar. A posição brasileira sobre o conflito, da condenação à Rússia pela invasão e conclamação ao diálogo, está expressa em manifestações oficiais e em resolução da Assembleia-Geral da ONU, que contou com o voto brasileiro. Essa é a nossa linha, conhecida por todos.

CC: Lula tem dado grande importância às viagens internacionais, após o isolamento do País nos últimos anos. Qual é o balanço dos primeiros meses?

MV: A agenda intensa de viagens internacionais foi e continua a ser uma necessidade, diante do isolamento do Brasil provocado pela antidiplomacia do governo anterior. O passivo em matéria de relações com o mundo era muito grande, e prova disso foi que a primeira encomenda que recebi do presidente Lula, ainda na transição, quando ele me escolheu para o cargo, foi a de que era necessário e urgente reconstruir pontes com o mundo, a começar pelos nossos vizinhos na América do Sul, pelos grandes polos do poder mundial – Estados Unidos, China e Europa – e pela África.

Boa parte desse trabalho inicial já foi feita, e precisava contar com o apoio da diplomacia presidencial – as viagens têm esse papel fundamental. Graças a elas, o Brasil já relançou as relações bilaterais com nossos mais tradicionais parceiros, voltou a ativar o Fundo Amazônia, que recebeu novas adesões dos Estados Unidos e do Reino Unido, e agora volta aos grandes debates em foros como o G7 e o G20. Este é o lugar do Brasil no mundo, nos principais foros de debates e em estreita coordenação com nossos parceiros na região e na comunidade internacional, o que requer atenção do presidente Lula à agenda externa.

Desde a posse, o presidente já manteve reuniões de trabalho com chefes de Estado e de governo de 22 países, número que crescerá ainda mais com a participação no G7. Além de acompanhá-lo em quase todos esses encontros, eu mesmo mantive outras 85 reuniões com chanceleres, chefes de Estado ou governo, dirigentes de organismos internacionais e autoridades ministeriais desde que assumi o cargo.

O que esses números e as conversas revelam é que havia uma grande vontade da comunidade internacional de que o Brasil voltasse a ocupar o seu lugar, e isso está sendo feito. Dia desses, ao reencontrar o chanceler de um país europeu em um evento fora do Brasil, ele me recebeu com um sorriso e com a seguinte frase, que é reveladora: “como é bom poder voltar a falar com o Brasil”. Esse é o sentimento predominante, de satisfação pela volta do Brasil ao mundo, mas isso gera também uma demanda pela participação brasileira nos mais diversos foros e eventos.

CC: Lula se articulou a fim de buscar ajuda para a Argentina, que vive um drama. Qual é a importância, para o Brasil, de encontrar soluções que atenuem essa crise?

MV: O comércio internacional depende de meios de financiamento e, dada a magnitude do volume de comércio que temos com a Argentina, é preciso buscar esses meios. O presidente Lula e as demais autoridades do governo também têm se empenhado em realizar gestões junto a líderes mundiais e a organismos financeiros multilaterais, para que avaliem com prioridade os pleitos da Argentina.

Em momentos de crise, no passado, o Brasil já contou com o apoio desses organismos e também de países amigos, é importante não nos esquecermos disso. E é importante lembrar também que crises em países vizinhos afetam diretamente os interesses da economia brasileira, e também o processo de integração regional, nos seus mais variados âmbitos.

Essa é a nossa visão, e continuaremos empenhados em apoiar os esforços da Argentina para superar este momento de dificuldades.

CC: Um desafio do governo Lula é retomar os laços com a América Latina, alvo constante da retórica do governo Bolsonaro. Como tem sido essa tarefa?

MV: Em cinco meses, pudemos avançar muito. Um dos primeiros atos do novo governo foi o retorno do Brasil à CELAC. A região vai dar um novo passo no sentido de normalizar o diálogo político já no dia 30, quando sediaremos, em Brasília, uma reunião de presidentes da América do Sul. Vai ser a primeira oportunidade, em muito tempo, para que os líderes conversem sobre os desafios enfrentados pela América do Sul e para que recomponham o diálogo político entre todos nós.

Outro desafio regional importante, o da Amazônia, vai ser tratado em agosto, em nova reunião presidencial, desta vez a dos presidentes dos oito países que integram a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica. Os resultados serão levados pelos países amazônicos à comunidade internacional, tanto no debate geral da Assembleia-Geral da ONU, em setembro, quanto na Conferência das Partes da ONU sobre a Mudança Climática, a COP 28, que acontecerá  entre o final de novembro e o início de dezembro.

A retórica e a prática de medidas hostis contra os vizinhos são a antidiplomacia, e o governo Lula, fiel às tradições do Itamaraty, faz diplomacia. Voltamos a essa boa tradição da diplomacia brasileira. Esse tem sido o caminho que retomamos na relação com a América do Sul e que sabemos, por experiência, que dá certo.

CC: O governo acredita na possibilidade de o Brasil conquistar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU?

MV: Acredita e lutará por uma reforma nas instituições multilaterais.  Não só a Organização das Nações Unidas, mas também a Organização Mundial do Comércio. A OMC deixou de contar, há alguns anos, com seu mecanismo de solução de controvérsias, que é central para a arquitetura do organismo e para a eficácia de um sistema de normas no comércio internacional.

O pleito do Brasil por uma cadeira permanente em um Conselho de Segurança ampliado não é novidade para ninguém, tanto pelo histórico dos debates ao longo das últimas décadas como pela representatividade do Brasil e pelos muitos apoios com os quais contamos entre os países-membros.

Mas a questão central é que não podemos, no mundo atual, depender de uma arquitetura institucional como a do atual Conselho de Segurança, que reflete a ordem internacional de 1945, e não a de 2023. Tampouco podemos aceitar passivamente a atual paralisia da OMC. O multilateralismo precisa ser reformado e revigorado, e o Brasil vai se empenhar nesse debate.

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