Entrevistas

A nova cara da esquerda latino-americana na Celac, segundo especialista

Em entrevista à CartaCapital, o professor argentino Hugo Daniel Ramos analisa a conjuntura do bloco diante da volta de Lula ao poder

Lula encontrará o presidente Alberto Fernández em primeira viagem internacional no terceiro mandato. Foto: Ricardo Stuckert
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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai inaugurar as suas agendas diplomáticas na Argentina, com uma visita a Alberto Fernández e uma reunião na Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, a Celac.

O bloco, criado em 2010 e que reúne 33 países, foi abandonado pelo Brasil em 2020, porque Jair Bolsonaro (PL) considerou que havia “palco para regimes não-democráticos”.

Um dos primeiros atos do novo governo petista foi reingressar no organismo.

O surgimento da Celac ocorreu por fortes esforços dos governos do México, de Felipe Calderón, da Venezuela, de Hugo Chávez, de Cuba, de Raúl Castro, e do Brasil, de Lula. A ideia era construir um espaço de discussão menos vulnerável às influências dos Estados Unidos.

Para Hugo Daniel Ramos, historiador e professor de Relações Internacionais da Universidad Nacional del Litoral, em Santa Fé, na Argentina, a volta do Brasil à Celac deve estimular a discussão sobre a força das instituições democráticas, sobretudo após os ataques golpistas no domingo 8.

Em outros países, há conjunturas delicadas no mesmo campo: o Chile tenta estabelecer uma nova Constituição, a Bolívia lida com mobilizações intensas em Santa Cruz de la Sierra, e o Peru acaba de ter um presidente deposto.

Na própria Argentina, sede da cúpula neste ano, a vice-presidente Cristina Kirchner vive uma situação equiparada à de Lula com a Operação Lava Jato, por ser alvo de um processo judicial que diz ser injusto.

É uma tradição da Celac discutir esses temas, tendo em vista a sua postura de rechaçar a participação de Honduras, quando Manuel Zelaya foi alvo de um golpe em 2009 no país.

Há um motivo de celebração para o resgate da integração regional, principalmente no caso da Celac, que tem uma associação ideológica à esquerda. Mas, na avaliação do professor, esses governos não estão mais em seus anos dourados: eles voltam à cúpula mais moderados, sob restrições maiores e uma polarização crescente.

“A polarização política é sempre muito perigosa e faz com que seja muito difícil estabelecer um diálogo político que outorgue sustentabilidade à democracia”, analisa o especialista.

Confira os principais trechos da entrevista.

CartaCapital: A Celac já se mostrou importante na prática em algum momento?

Hugo Ramos: Hoje, a Celac é o único foro de concertação e de diálogo político exclusivo dos países latino-americanos. Também há a OEA, mas estamos falando de um organismo de alcance hemisférico. Em sua origem, a Celac tem o objetivo facilitar o diálogo entre os países latino-americanos, deixando os Estados Unidos e o Canadá de lado, com a ideia de que a OEA é, sobretudo, muito dependente da orientação política dos Estados Unidos. Também houve a Unasul.

Há uma desconfiança de alguns governos sobre a Celac por estar vinculada a uma certa orientação ideológica. A acusação de ser um foro que agrupa ditaduras e que permite a presença de autocracias não tem a ver sobre como qualificamos o regime venezuelano. A OEA manteve em seu seio todas as ditaduras militares da América Latina, ou seja, em nenhum momento houve expulsão da Argentina, do Brasil, do Paraguai. Então, a acusação ou a justificação da retirada do Brasil tem a ver com outra questão.

Mas a Celac está associada à orientação política de alguns governos. Sob essa ideia, sua importância tem variado em função da conjuntura, sem uma periodicidade clara das cúpulas, como a Unasul. A Celac não é um organismo de integração, apesar de muitas vezes aparecer como um organismo que, em teoria, ajudaria a integração regional.

O fato é que a Celac é só um espaço de diálogo e de concertação política entre os países da nossa região. Isso pode ser vantajoso porque o diálogo político pode ser sobre qualquer tema, em função de qual seja a conjuntura. Atualmente, a Celac está mais orientada para as discussões sobre mudanças climáticas, o desenvolvimento econômico e as ações para a integração regional. Certamente, nesta cúpula, será discutida a questão da democracia, dada a situação do Brasil. Mas esses lugares são espaços para dar sinais políticos, e não para ações concretas.

CC: A trajetória de Lula influencia a visão dos argentinos sobre a situação de Cristina Kirchner?

HR: É difícil dizer se os argentinos em geral serão influenciados pela situação política brasileira, mas as elites políticas argentinas acompanham atentamente o que se passa no Brasil. Isso inclui tanto os setores kirchneristas e, num sentido mais amplo, o peronismo, e os setores opositores, como o Juntos por el Cambio.

Há uma tentativa de ambos os lados de se apropriarem da situação do Brasil em termos de uma leitura que favoreça às suas políticas locais. O kirchnerismo tende a homologar a situação de Cristina com a de Lula, e é verdade que há certas similitudes, mas também há diferenças. O que se discute no kirchnerismo é a perseguição da principal líder política do setor. Pelo lado do Juntos por el Cambio, há uma tentativa de associar o bolsonarismo ao kirchnerismo, no sentido de que, assim como se considera o bolsonarismo antidemocrático, também se considera o kirchnerismo como antidemocrático. Então, cada setor trata de impor uma visão favorável aos seus interesses.

A polarização política é sempre muito perigosa e faz com que seja muito difícil estabelecer um diálogo político que outorgue sustentabilidade à democracia. Mas a polarização também tem sido uma ferramenta que permite que cada setor consolide a sua base de apoio eleitoral, como permitiu ao bolsonarismo consolidar um setor forte em seu favor, e também ao PT, que, ao longo de seus governos, não pôde levar adiante bandeiras históricas, num processo de moderação progressiva. Na Argentina, a polarização tem sido funcional ao kirchnerismo para se manter como o setor mais importante do peronismo, como também tem sido funcional ao Juntos por el Cambio. E essa dinâmica incentiva posições extremistas dos dois setores. Hoje, há possibilidade de que Javier Milei tenha uma boa colocação na eleição presidencial.

CC: Qual a expectativa do governo argentino sobre a conversa em relação à moeda comum do Mercosul?

HR: Essa ideia de conversar sobre uma moeda única não é uma novidade, em outra presidência de Lula se discutiu no interior do Mercosul sobre a possibilidade. Obviamente, as condições macroeconômicas para avançar de maneira séria com isso não estavam dadas naquele momento e não estão dadas na atualidade. O processo de construção do euro teve toda uma etapa prévia. Há metas que os estados têm que cumprir para acessar o euro, toda uma planificação de vários anos.

Hoje, as economias do Mercosul estão em situações muito diferentes a nível macroeconômico, em relação a taxas de inflação, crescimento do PIB e desemprego, e o nível de integração é muito baixo para se pensar em uma moeda única. Isso me parece uma ideia que tem como objetivo, somente, uma questão política, em termos de ressaltar a importância que a Argentina vê no Mercosul. É dizer: “nos importa muito o Mercosul, vamos avançando na construção de uma moeda única”. Mas, em termos estritos, me parece impossível, com as condições que estão dadas.

Agora, a distinção de moeda comum é sutil e importante. Aqui na Argentina isso tem sido pouco mencionado, maneja-se como um sinônimo. Mas é possível avançar no caminho de que os países mantenham as suas moedas nacionais e criar uma outra para intercâmbio comercial. É a possibilidade de se criar um mecanismo alternativo que facilite o comércio e os investimentos entre os países do Mercosul. Me interessa muito que o governo argentino busque um mecanismo que permita contornar a escassez de dólares. A nossa economia tem um sério problema de falta de divisas.

CC: Como os Estados Unidos e a China veem esse momento de reintegração regional na América Latina?

HR: Esse ciclo de governos que se identificam de esquerda é diferente do que vimos no princípio do século 21. São outras características, ainda mais moderadas do que já foram, porque a situação econômica a nível internacional é distinta e não tão favorável como foi naquela época.

No caso da Argentina, as restrições que o endividamento externo impõe são muito maiores. Além disso, a polarização política que se verifica na Argentina, no Brasil, no Uruguai, na Colômbia e no Peru impõe restrições muito maiores à ação política desses líderes de esquerda. Alberto Fernández, aliás, tampouco é plenamente o kirchnerismo que governou a Argentina entre 2003 e 2015.

Há a tentativa de manter uma relação, talvez, menos subordinada, ou menos explicitamente subordinada aos Estados Unidos, mas nenhum desses países planeja uma ruptura de relações diplomáticas com os Estados Unidos ou uma autonomia fora do vínculo hemisférico. As margens de atuação na relação com os Estados Unidos são bastante limitadas e não implicam num perigo para o domínio exercido sobre a América Latina.

Mas, sim, o perigo vem da emergência da China, como um ator de alcance global, com um forte interesse na nossa região. A China tem capacidade de introduzir mudanças nas economias locais, com investimentos em recursos naturais, em portos, centrais nucleares, centrais hidrelétricas, como é o caso da Argentina.

Creio que isso pode ser um motivo de preocupação para os Estados Unidos. A América Latina está no olho do furacão no conflito comercial entre os Estados Unidos e China a nível global. Agora, há três coisas a considerar.

Ainda que a América Latina tenha melhorado a sua vinculação com a China, e hoje os chineses são os principais sócios comerciais para vários países da região, eu não acredito que seja uma área que possa ficar sob a hegemonia chinesa. Os Estados Unidos vão impor todos os obstáculos possíveis para que isso não aconteça, porque a visão dos Estados Unidos é de que a América Latina lhes pertence. A

questão é se os países da nossa região estão em condições de enfrentar os Estados Unidos para melhorar os seus vínculos com a China. Creio que, em geral, não. Os países da nossa região vão estar, em todo caso, em uma situação de mediar esses dois grandes. Agora, na cúpula da Celac, Alberto Fernández mandou convites a Biden e a Xi Jinping. É uma maneira de jogar entre as duas potências e aproveitar as margens de autonomia.

Mas eu creio que o jogo vai se limitar a isso, mantendo a América Latina na órbita norteamericana, pelo menos em médio prazo, até que a China, quem sabe, no futuro, transforme-se realmente na potência global que supere os Estados Unidos em todas as ordens. Mas isso não vai acontecer nas próximas décadas.

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