Política

Governo Bolsonaro compra equipamentos caros e de qualidade questionável para peritos criminais

Lanternas UV distribuídas pelo Ministério da Justiça custaram mais de 20 mil reais, mas são inferiores a produtos comprados por poucos dólares na China; régua plástica foi comprada a quase 300 reais

Maleta entregue pelo governo federal aos peritos criminais brasileiros. Equipamentos, segundo os servidores, tem custo-benefício questionável.
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O governo federal, sob o comando de Jair Bolsonaro (PL), comprou e distribuiu equipamentos caros e de baixa qualidade para peritos criminais ao redor do País. Os itens foram adquiridos ao fim de 2020 pelo Ministério da Justiça e passaram a ser entregues para as corporações durante o ano de 2021. Eles formam uma maleta forense com 12 itens, entre eles luzes ultravioletas, caneta laser, medidores de amperagem, detectores de tensão, lupas, paquímetro, trena eletrônica, entre outros.

O caso chegou a CartaCapital por relatos e análises de peritos que atuam no Paraná e em Santa Catarina, que preferem ter suas identidades preservadas pelo receio de perseguições administrativas.

O primeiro e principal ponto de reclamação dos servidores é o valor gasto com os equipamentos. Cada uma das maletas da marca Forensics Brasil recebida por eles, custou um total de quase 29 mil reais. Destes, 24 mil se referem apenas ao conjunto de luzes da marca ‘UltraLite ALS – Ultra One’, alvo de maior reclamação entre os servidores pela sua baixa qualidade.

O mesmo kit de iluminação forense, vale ressaltar, é facilmente encontrado sendo comercializado por pouco mais de 500 dólares nos Estados Unidos. Em um site registrado sob o mesmo CNPJ da empresa que forneceu os itens ao governo, a TMB Comércio de Equipamentos de Segurança Ltda, as maletas de luzes são vendidas a 26 mil reais.

Ao todo, conforme o edital disponível no site do governo, foram compradas 1.579 maletas pela pasta e outras 661 por outros outros órgãos participantes, em especial, governo estaduais. O custo para o governo federal, conforme o contrato formalizado no dia 22 de dezembro de 2020, foi de mais de 45,7 milhões de reais.

O mesmo equipamento comprado por mais de 20 mil reais pelo governo pode ser facilmente encontrado por cerca de 500 dólares nos EUA – pouco mais de 2.500 reais na cotação da moeda na ocasião.

O valor pago pelos equipamentos chama a atenção também por estar bem distante ao monitorado inicialmente pelo próprio governo federal na elaboração do edital de compra das maletas. Na ocasião, ao final de junho de 2020, a pesquisa de mercado apontava um valor de 4.980 reais para a aquisição de luzes forense de mesmo modelo.

Na mesma tabela também é possível ver outros itens com valores bem inferiores ao da contratação final. Chama a atenção, por exemplo, as próprias maletas para o acondicionamento das luzes e demais itens do kit, cotadas a 283 reais, mas adquiridas a 1.181 reais pelo governo Bolsonaro. “Se houve más intenções ou só incompetência eu não sei”, conclui um dos peritos que trouxe à tona o caso.

Baixa qualidade

A grande reclamação, segundo contam os servidores a CartaCapital, é o custo-benefício da maleta, em especial, no que se refere ao kit de luzes, item mais caro do equipamento. Ele consiste, resumidamente, em uma lanterna capaz de emitir três espectros diferentes de iluminação (ultravioleta, verde e azul) usadas para detectar, vestígios de sangue, fibras orgânicas, entre outros. O fato é que, de acordo com os peritos consultados pela reportagem, na prática, a luz ultravioleta da lanterna é de má-qualidade, podendo ser igualada ou até mesmo superada por equipamentos adquiridos por pouco menos de 200 reais em sites chineses.

“O UV do kit é um lixo. Esse ‘UV’ de 400 nanômetros é daquelas lanterninhas fajutas de ‘luz negra’, reclama um dos peritos paranaenses. “Comprei da China uma lanterna UV com um bom LED de 365 nanômetros por cerca de 140 reais. A qualidade é muito superior à lanterna do kit.”

Para demonstrar a baixa qualidade, servidores que atuam em diferentes regiões do Paraná e de Santa Catarina gravaram vídeos utilizando o equipamento comprado pelo governo ao custo de 20 mil reais e lanternas próprias, compradas na China por menos de 200 reais. Nas imagens, é possível ver que o item entregue pelo governo Bolsonaro não foi capaz de detectar impressões digitais e nem mesmo as marcas de cola feitas com uma fita adesiva na parede.

Os testes foram feitos com luz direta e também com o uso dos óculos com filtros de cor diferente, conforme são realizadas as perícias na prática.

No comparativo, a luz UV foi a escolhida por ser, segundo eles, uma das mais usadas na rotina de trabalho entre as três adquiridas. Eles também ressaltam que existe uma certa dificuldade em se encontrar um único equipamento que emita os três espectros de luzes, como se pedia no edital, mas que, a ‘alternativa racional’, como já fazem com equipamentos próprios, seria usar três lanternas diferentes, uma UV, uma verde e uma azul.

É possível comprar pela internet as três lanternas e os três pares de óculos que constam na maleta por cerca de 540 reais, sendo 150 reais cada lanterna com bateria e 30 reais cada par de óculos”, calcula um dos servidores que tem usado seu kit particular de luzes nas perícias. Na visão dele, a opção pelo equipamento único, com as características exatamente iguais ao da marca UltraLite ALS, seria uma forma de direcionamento da compra.

A baixa qualidade do material, vale ressaltar, não é nenhuma novidade, já que, em 2015, ela já havia sido apontada em um relatório do Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Um documento de janeiro daquele ano produzido pela Space and Naval Warfare Systems Center Atlantic, um centro de inteligência ligado à Marinha atualmente rebatizado para Naval Information Warfare Center Atlantic, mostrou que uma maleta de luzes ‘UltraLite ALS’, de um modelo ainda mais completo do que a comprada pelo governo brasileiro, teve o segundo pior desempenho dos kits analisados. Ao todo, foram comparados nove produtos em 12 testes distintos divididos nas categorias ‘capacidade’, ‘implantação’ e ‘usabilidade’. Os equipamentos avaliados receberam notas de zero a cinco para cada uma das categorias, o da marca ‘UltraLite ALS’ recebeu apenas 3,5 pontos na média geral.

Um documento de janeiro de 2020 produzido pela Space and Naval Warfare Systems Center Atlantic, um centro de inteligência ligado à Marinha dos EUA, mostrou que uma maleta ‘UltraLite ALS’ de um modelo ainda mais completo do que a comprada pelo governo brasileiro teve o segundo pior desempenho dos kits analisados.

“A sensibilidade e especificidade permitiram a visibilidade da maioria das amostras alvo no cenário controlado; no entanto, às vezes era difícil ver fluidos corporais em substratos de cor mais escura”, diz um trecho da avaliação do governo dos EUA sobre a lanterna da mesma marca comprada pelo governo brasileiro. Na prática, a conclusão é a mesma apontada pelos peritos, que relatam as dificuldades para identificar as digitais ou outros resíduos nas cenas de crimes reais, que, assim como os testes nos EUA, não tem luzes e outros itens do entorno controlados.

Os especialistas norte-americanos também apontaram algumas dificuldades no uso do item que, diferentemente do comprado aqui no Brasil, precisa ter a cabeça de lâmpada trocada para mudar de cor. A qualidade das luzes, vale ressaltar, são as mesmas, segundo as descrições oficiais de cada equipamento. “Os botões foram ativados acidentalmente várias vezes durante a avaliação devido à sua colocação”, diz outro trecho da avaliação de usabilidade do equipamento, que tem design de empunhadura praticamente idêntico ao entregue aqui.

Ainda sobre a qualidade, o comprimento de onda de 400 nanômetros da luz UV adquirida pelo governo já não era apontado como o ideal pelos próprios servidores em pesquisa interna que questionava quais itens deveriam constar na maleta do governo. Na ocasião, ao serem questionados sobre a luz UV ideal para cumprir suas funções, a maior parte dos peritos (85,19%) apontou ‘necessidade máxima’ (nível 5) em luzes com comprimento de onda entre 365 nm e 395 nm e não 400 nm, como a solicitada – e posteriormente adquirida – pelo governo. Outra boa parcela, 11,11%, indicou ‘alta necessidade’ (nível 4) para a compra do produto diferente do adquirido. Menos de 4% alegaram que o item com até 395 nm não seria de ‘extrema necessidade’ neste momento.

Além da baixa qualidade e do preço, o produto comprado pelo governo Bolsonaro, segundo os peritos, estaria defasado. No site da fabricante, a CAO Group Inc, não é possível encontrar o produto à venda. As menções ao produto nas redes sociais do fabricante, datadas de 2012, também estão em links fora do ar. Em uma busca pela internet é possível ver vídeos de divulgação do equipamento datados de 2011 sendo distribuídos. As mesmas imagens são encontradas em um catálogo distribuído em 2014 pela empresa. “Difícil acreditar que não surgiram opções melhores e mais baratas em todos esses anos que se passaram”, comenta um dos peritos.

Régua de plástico a 279 reais

Além das luzes, outros itens menores do kit também são alvos de reclamações. É o caso, por exemplo, do detector de tensão. O item usado como referência no edital é da marca Fluke, considerada uma das melhores no ramo. Pela internet é possível encontrar a ferramenta sendo vendida por cerca de 120 reais.

A ata do negócio concretizado pelo governo registra um preço de 140 reais, mas, o equipamento entregue nem de longe lembra os produtos de referência. Eles são muito mais parecidos, de acordo com as imagens e relatos dos servidores, com produtos de marcas genéricas comprados em sites chineses a menos de 30 reais. A qualidade do equipamento, neste caso, atenderia ao uso rotineiro, o custo-benefício do produto entregue, no entanto, é bastante questionável.

A mesma reclamação é feita em relação ao amperímetro e à trena digital que integram a maleta do governo. Juntos, os kits superam 1 mil reais, segundo o contrato assinado pelo governo. O valor é próximo ao praticado nos equipamentos de referência de mercado, a qualidade da construção da ferramenta, no entanto, também seria mais próxima de itens comprados na China. Novamente, o custo-benefício da compra é questionado pelos servidores.

Outro item que chama a atenção e causou revolta nos servidores é a régua usada para mostrar as distâncias das evidências coletadas nas fotografias que são tiradas pelos peritos. O equipamento comprado pelo governo é um item de plástico ‘extremamente frágil’, em formato de ‘L articulado’. Na cotação inicial, o valor de mercado apontado pelo próprio governo Bolsonaro era de 33 reais e 50 centavos. Na contratação final, no entanto, o item que integra a maleta distribuída pelo Ministério da Justiça custou 279 reais.

Pelos documentos da licitação, não está claro quando o salto nos valores para o item ocorreu, o caminho possível de ser traçado pelo relatório de conclusão da negociação mostra apenas que o governo, apesar de atestar inicialmente o baixo valor da régua, estaria disposto a pagar até 368,90 reais pelo item. Ele foi, segundo consta no site oficial do Executivo, oferecido a 330 reais pela TMB e, só após negociação, reduzido para o valor final de 279 reais. Os valores, importante registrar, superam até mesmo de réguas em materiais bem mais resistentes, como o alumínio. Novamente, os servidores comentam que não fica claro se a escalada no preço é fruto de ‘má intenção’ ou apenas ‘incompetência’.

Itens comprados pelo governo: detector de tensão (140 reais); régua de plástico (279 reais); e inclinômetro analógico (87 reais).

Vale registrar ainda que, no portal de compras do governo, a régua plástica (item 9 do grupo 1, segundo o edital) foi registrada com o nome de escalímetro, um equipamento que sequer tem as mesmas funções. Também não está claro se a opção pelo nome distinto foi intencional ou apenas um erro de registro. No site, outros itens também foram registrados com nomes diferentes do contrato, é o caso, por exemplo, do inclinômetro analógico, que consta como um medidor de nível elétrico. Novamente, o valor está acima do praticado no mercado. Pelo item, o governo desembolsou 87 reais. Na internet, é possível ver que o equipamento analógico é comercializado a menos de 30 reais em lojas de ferramentas brasileiras. Na China, pelos mesmos 30 reais é possível comprar um inclinômetro digital, item que no Brasil também não passa dos 100 reais.

Procurado para esclarecer as denúncias e reclamações feitas pelos peritos, o governo Bolsonaro, por meio do Ministério da Justiça, pasta responsável pela compra, não respondeu aos questionamentos.

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