Entrevistas

Flávio Dino: ‘Acampamentos foram o maior erro político das Forças Armadas’

O novo ministro da Justiça espera que as investigações digam se também houve omissões dolosas por parte dos militares

O ministro da Justiça, Flávio Dino, indicado para o Supremo Tribunal Federal (STF). Foto: Carl de Souza/AFP
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A França começou em 17 de janeiro a julgar extremistas de direita acusados de planos terroristas, como matar o presidente Emmanuel Macron. O líder dos radicais tinha sido preso em 2020. Aqui, mais de mil extremistas foram detidos pela Polícia Federal (PF) em razão do quebra-quebra em Brasília em 8 de janeiro. Mas, como na França, não se deve esperar condenações relâmpago. “Justiça instantânea é perigosa, é justiçamento”, diz o ministro da Justiça, Flávio Dino.

A maioria dos detidos foi pega pela PF no acampamento montado na porta do quartel-general do Exército em Brasília. Dali a turma tinha saído para o quebra-quebra e para lá havia voltado. Acampamentos diante de guarnições militares espalharam-se pelo Brasil após a derrota de Jair Bolsonaro na eleição. Pediam golpe contra o resultado das urnas. Esses acampamentos “foram o maior erro político das Forças Armadas no Brasil”, afirma Dino.

Uma suplente de deputada eleita pelo PSOL em São Paulo, Luciene Cavalcante, foi ao Ministério Público Federal na segunda-feira 16 pedir a investigação do chefe do Exército, general Júlio César de Arruda, por “prevaricação” em relação ao acampamento de Brasília. Prevaricar é o crime de um agente público que, por interesse ou sentimento pessoal, deixa de agir, ou demorar a fazê-lo, numa situação que exige ação. Dá até um ano de prisão, pelo artigo 319 do Código Penal. 

“A fronteira entre erro político e omissão dolosa será delimitada pela investigação”, diz Dino. 

Abaixo, a entrevista do ministro a CartaCapital.

CartaCapital: Anderson Torres, ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, deve ser responsabilizado e ponto? Ou interessa uma delação dele? 

Flávio Dino: Não sei qual descoberta concretamente a investigação fará, mas não há dúvida que é um personagem importante para esclarecer o que ocorreu no Brasil entre o segundo turno e 8 de janeiro. Certamente é detentor de informações relevantes, foi ministro da Justiça, secretário de Segurança do Distrito Federal, com certeza sabe muito sobre esse período.

Especialmente em relação ao que se passa, a bem da verdade, desde a campanha, quando houve aquelas ações do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) contra institutos de pesquisa, o Cade é órgão do Ministério da Justiça…. E depois no segundo turno, nos dias subsequentes ao segundo turno, as agressões e atentados (em Brasília) no dia 12 de dezembro, o que houve no dia 24 de dezembro, o documento encontrado na residência dele, e agora no dia 8, já que ele era secretário de Segurança Pública do DF. 

CC: O que significa essa “minuta do golpe”, na sua visão?

FD: Era uma tentativa tradicional no direito brasileiro de dar roupagem jurídica ao golpe de Estado…

CC: Como em 1964…

FD: Antes. Desde o Estado Novo, quando Getúlio cancelou as eleições presidenciais de 38, se apressou a fazer uma Constituição e apareceram juristas para dar uma roupagem jurídica a um ato arbitrário. A minuta se insere nessa tradição de dar golpe e fingir que não houve golpe.

As investigações estão acontecendo, pessoas serão processadas e condenadas. Semana que vem? Seguramente não

CC: O Supremo afastou Ibaneis do governo do DF e mandou prender Torres por “omissão dolosa”. Os militares não cometeram omissão dolosa também? 

FD: As investigações em relação a militares, a indivíduos que são militares, estão em curso na Justiça Militar. Esses inquéritos policiais-militares vão demonstrar até onde houve a participação de um, dois, dez ou cem integrantes das Forças Armadas. Não sabemos ainda. A mesma investigação que existe em relação a civis pode e deve haver de militares.

CC: Entendo sua posição no governo, mas insisto: as cúpulas militares não foram dolosamente omissas? O acampamento no QG do Exército em Brasília tinha anuência delas…

FD: Eu creio que a montagem e a manutenção desses acampamentos no entorno de quartéis constituem o maior erro da história das Forças Armadas no Brasil. Nesse acampamento no quartel-general do Exército se reuniram aqueles que no dia 12 (de dezembro) depredaram a Polícia Federal. No dia 24 (de dezembro) houve um atentado a bomba, e um dos terroristas diz que obteve os materiais nesse acampamento. E no dia 8 (de janeiro) as pessoas estavam nesse acampamento antes e depois de tentarem um golpe de Estado. Então é claro que esses acampamentos foram um erro político. De quem? De quantos? A investigação vai dizer. A fronteira entre erro político e omissões dolosas realmente será delimitada pela investigação. Eu não posso nesse momento afirmar que esse erro derivou de interesses ilegais. Mas o erro político houve. 

CC: Como está a investigação dos financiadores do dia 8?

FD: Nós estamos trabalhando naquilo que está disponível, que são os executores, os organizadores, os incitadores e os pequenos financiadores de caravanas, acampamentos. Isso está avançando bem. Há a hipótese de pessoas que estariam acima na cadeia de comando, aí inclusos os financiadores “atacadistas” e os mandantes. Essa é obviamente uma linha prioritária de investigação, mas não temos ainda a identificação dessas pessoas.

CC: O senhor acredita que é possível que a gente veja doadores da campanha de Jair Bolsonaro?

FD: Como uma hipótese abstrata, sim. Eu creio que é importante considerar a hipótese de haver uma fragmentação do financiamento e uma unidade de comando. Eu não sei exatamente se existiram grandes financiadores. Você tinha atos terroristas nas estradas, bloqueios…

Lembremos: em torno do dia 12 de dezembro, houve aqueles ataques no Mato Grosso, quebraram praças de pedágio em estradas, inclusive com armas. Houve tentativa de homicídio contra policiais rodoviários federais no Pará. Eram pontos em que, provavelmente, havia financiadores predominantemente locais.

Essa é, a meu ver, a hipótese mais forte. Porém, essa rede, digamos, capilarizada e descentralizada, obedecia a uma unidade de comando.

E é isso que nós estamos procurando: como essa rede de financiadores operava, se era puramente descentralizada ou se havia financiadores maiores, os atacadistas, e procurando sobretudo chegar às pessoas que comandaram essa página de terror no Brasil, em que há um óbvio encadeamento. Há uma sucessão de eventos entre pouco antes do segundo turno até o dia 8 de janeiro.

CC: O comando me parece óbvio de onde partiu. Pode haver, porém, uma hipótese não óbvia. Podem não ter sido o Bolsonaro e seus filhos, pode não ter sido a família Bolsonaro…

FD: Eu não posso realmente, hoje, cravar aqui que é a família Bolsonaro, porque isso significaria da minha parte uma influência indevida sobre as investigações, que competem à Polícia Federal, que está sob a minha autoridade. O que eu posso sem dúvida dizer é que, entre aqueles que instigaram, incitaram, estão muitos agentes políticos.

Isso é público e notório. Não há dúvida que nesta cadeia de comando estavam muitos políticos brasileiros. Agora, quais, quem de que forma, realmente, eu não posso antecipar.

CC: O senho sabe se Anderson Torres e Jair Bolsonaro realmente se encontraram na Flórida?

FD: Não, eu não tenho essa informação.

CC: Acha possível que isso tenha ocorrido? 

FD: Como uma tese, sim, até porque a Flórida não é tão grande assim. Mas, realmente, eu não tenho essa informação.

CC: O senhor prepara uma proposta para punir e coibir ódio e golpismo nas redes sociais. Pode dar detalhes da proposta? 

FD: A linha vai ser, basicamente, dizer que a liberdade de expressão, obviamente, não é um direito absoluto, porque ela tem uma fronteira determinada por outras normas, normas, inclusive tipificadoras de crimes. Vamos ver como impedir que conteúdos criminosos permaneçam na rede, mas sem cometer nenhum tipo de censura.

Censura é você, a priori, dizer “não publique sobre tal assunto”. Mas, se você chega e constata que um conteúdo está lá, por exemplo, dizendo “fabriquem uma bomba e joguem no aeroporto”, e você vai lá e dá ao provedor [à empresa, à plataforma] uma hora para tirar esse conteúdo do ar, isso não é censura. É uma norma protetora da segurança pública. Assim como ninguém pode fabricar uma bomba e colocar aqui na Esplanada do Ministérios, ninguém pode, na internet, ensinar como se fabrica uma bomba para colocar na Esplanada dos Ministérios. Então, é essa simetria entre redes e ruas que a gente vai buscar. O que não pode nas ruas, não pode nas redes.

Alguém pode chegar aqui na Esplanada do Ministérios e colocar uma banca ali e começar a dizer “vamos assassinar as pessoas negras”, ou “vamos assassinar os gays”? É possível isso? Alguém concebe que isto possa ocorrer? Se não pode colocar, fisicamente, uma banca aqui na Esplanada dos Ministérios dizendo isso, também não pode na internet dizer isso.

CC: Uma pergunta filosófica: um intolerante deve ser tolerado?

FD: Não tolerar o intolerante é um dever daqueles que acreditam na tolerância. Porque, se você deixa que o intolerante prospere, você está condenando a tolerância, como o valor, a morrer. Isso vale para qualquer desses valores que nós devemos cuidar. Liberdade: a liberdade só existe com regras. Porque, se a liberdade não tiver regras, ela significa a lei do mais forte. A liberdade protege que o mais forte massacre mais fraco? Ele é livre para massacrar o mais fraco? Claro que não.

Se você pegar toda a história da Humanidade, desde que ela se constituiu como História e nós saímos das cavernas, as instituições visam exatamente conter os apetites individuais, ou seja, restringir liberdades em nome da liberdade. Isso é [Thomas] Hobbes [filósofo inglês do século 17]. É hobbesiano. Você renuncia uma parcela dessa suposta liberdade absoluta, para que todos tenham a verdadeira liberdade. Esses discurso da liberdade absoluta é um discurso liberticida. 

CC: O que nós vimos domingo foi golpe de Estado ou foi terrorismo?

FD: O direito sempre tem três zonas. Uma zona luminosa, uma zona de penumbra e uma zona de escuridão. Ou seja, em qualquer interpretação do texto normativo, sempre temos a certeza em certos aspectos. A certeza do que a lei diz – a zona luminosa -, uma dúvida sobre certos aspectos e uma certeza, que é a zona de escuridão, sobre o que a lei não diz.

Eu diria assim, em relação aos crimes contra o Estado Democrático de Direito, que é a lei que alterou o Código Penal em 2021: nós temos a luminosidade óbvia quanto à incidência dessa lei. Nos dois tipos penais, a meu ver. Os principais: atentado violento ao Estado de Direito e golpe de Estado. Essa incidência da lei sobre crimes contra o Estado Democrático de Direito é a zona de luminosidade. Nós temos, contudo, uma zona de penumbra em relação à lei de antiterrorismo, que esta é a razão dessa diferença, digamos, de abordagem.

A zona de penumbra deriva de um aspecto. Quando da redação da Lei Antiterrorismo, havia, inclusive no nosso campo político-ideológico, um receio justo de que essa lei não se transformasse em um instrumento contra o direito de manifestação, de protestos, enfim, de movimentos sociais. Então, foram colocadas algumas travas, entre as quais uma que diz que, quando há violência ou grave ameaça a pessoa, é preciso que ela seja derivada de discriminação ou preconceito. Só que o preconceito está acompanhado de algumas palavras: preconceito de cor, de raça, etc. A discriminação está “solteira” no texto normativo. Fala puramente assim: por discriminação.

Eu acho, na minha visão, que é possível, sim, nesta palavra “discriminação”, incluir a discriminação política-ideológica. Ou seja, “eu quero te matar porque eu considero que todo comunista deve ser morto”.  Isso, para mim, se insere no conceito de discriminação. Ou, “eu quero te matar porque eu odeio sulista, porque eu odeio quem nasceu no Rio Grande do Sul”. Portanto, a lei, quando tipifica o terrorismo, quando fala “discriminação”, ela abrange a discriminação política-ideológica. Há quem discorde. 

CC: Quando o senhor acha que a gente vai ver a primeira decisão judicial, a primeira condenação decorrente do dia 8 de janeiro?

FD: O tempo do Direito não pode ser marcado pela imediatidade. Porque o tempo alargado do Direito cumpre um papel, que é evitar justiçamento. Nesta semana, a França começou a julgar terroristas que conspiraram para matar o (presidente Emmanuel) Macron, destruir mesquitas e matar muçulmanos. Foi em 2020, e estamos em 2023.

Os Estados Unidos até hoje investigam os episódios do Capitólio [de 2021]. Do que podemos ter certeza aqui? As investigações estão acontecendo, vão acontecer, pessoas serão processadas e condenadas. Semana que vem? Seguramente não. É uma garantia democrática: Justiça instantânea é perigosa, é justiçamento. 

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