Desde o fim da ditadura, a atuação da sociedade civil tem se mostrado fundamental para o reconhecimento e a garantia de direitos, sobretudo a partir da construção e implementação de políticas públicas de alcance universal. Muitas das conquistas obtidas pelas minorias ou por grupos em situação de vulnerabilidade tiveram origem nas lutas travadas pelos movimentos sociais e políticos. Os próprios direitos garantidos pela Constituição de 1988 são resultado de intensa mobilização social.
Os movimentos indígena, negro, quilombola, feminista e LGBTQIA+ são protagonistas das lutas por acesso e reconhecimento de direitos, e os resultados conquistados refletem-se em avanços na construção de políticas públicas e no campo legislativo, como a aprovação da Lei Maria da Penha, destinada a proteger as mulheres da violência doméstica, e o reconhecimento da LGBTfobia como uma modalidade de racismo.
O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Os 10% mais ricos capturam cerca de metade da renda nacional total, enquanto os 50% mais pobres ficam com apenas 10%. Legado estrutural da colonização, essa desigualdade é agravada pela falta de acesso universal aos direitos de cidadania. Não por acaso, tantos intelectuais consideram haver, no Brasil, uma democracia inconclusa, com amplos contingentes da população sem acesso a saúde, a educação, a saneamento básico e a segurança alimentar.
Nesse contexto, a filantropia comunitária pode desempenhar um importante papel no fomento à transformação social no País. O apoio financeiro a comunidades indígenas, quilombolas, de mulheres e da população LGBTQIA+ é essencial para assegurar que as minorias avancem na conquista de direitos, respeitando as singularidades de cada grupo.
Um estudo realizado pela Rede Comuá, em parceria com a Aponte, mapeou ao menos 31 organizações doadoras independentes, distribuídas pelo território nacional. Essas entidades têm, em comum, a estratégia política de fortalecer a democracia pela transformação social. Para tanto, promovem uma escuta ativa para perceber o que é, de fato, prioritário para cada movimento. As doações estão assentadas em relações de confiança, que valorizam o saber, a cultura e a forma de atuação de cada um dos grupos beneficiados. Trata-se de um modelo distinto da filantropia convencional, acostumada a trazer soluções prontas, por vezes distantes das reais necessidades das comunidades, e com caráter assistencialista.
As organizações doadoras independentes mapeadas pela Rede Comuá mobilizam recursos de fontes diversas, nacionais e estrangeiras, públicas e privadas, individuais e coletivas, destacando-se pela capacidade de articulação com grande diversidade de atores e redes. E realizam as doações por meio de práticas de grantmaking, ou seja, através do apoio financeiro com o intuito de fortalecer o trabalho já desenvolvido por organizações, coletivos, movimentos e lideranças da sociedade civil.
Em vez de trazer soluções prontas, é melhor investir em iniciativas já concebidas pela sociedade civil
O fortalecimento institucional dos grupos beneficiados é prioridade para as organizações doadoras independentes – 74% declaram doar para esse propósito, saindo da lógica convencional de financiamento de projetos. Esse apoio é flexível, dando autonomia às organizações e grupos na tomada de decisão sobre a sua atuação. Na sequência, priorizam-se doações para combater a desigualdade de gênero (48%); para promover o desenvolvimento comunitário (42%); para fortalecer a agricultura familiar, a agroecologia, a agrofloresta e o cultivo em ambiente urbano (39%); e para as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e tradicionais (35%). Para a maioria das entidades, as áreas de apoio são interseccionais.
De acordo com o levantamento, 49% das organizações mapeadas repassaram até 1 milhão de reais e 35% doaram entre 1 milhão e 25 milhões. A quantidade de iniciativas apoiadas também se destaca: uma em cada três entidades apoiou entre 101 e mil iniciativas em 2021. Além disso, mais da metade delas prefere investir em ações com incidência política. Embora 45% delas tenham respondido não realizar doações para esse fim, elas costumam investir em iniciativas de impacto social. Certamente, há intencionalidade política por trás dos repasses financeiros realizados.
Esses modos de doar contribuem para a descolonização das práticas da filantropia, trazendo desafios e contestando as lógicas hegemônicas, muitas vezes mantenedoras das estruturas de desigualdade. A transferência de poder é chave, buscando ampliar a participação de organizações e comunidades locais nas decisões sobre os recursos e práticas no apoio em suas ações nos territórios e pela transformação socioambiental. •
*Graciela Hopstein é diretora-executiva da Rede Comuá. Mestra em Educação pela UFF e doutora em Política Social pela UFRJ, atua como consultora, professora e pesquisadora na área social. É autora de livros e artigos sobre políticas públicas, movimentos sociais e filantropia.
Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.
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