Política

Filantropia comunitária

Apoiar os movimentos sociais é essencial para fortalecer a democracia

Exemplo. A Cozinha Solidária do MTST amparou famílias pobres no período mais agudo da pandemia de Covid-19 – Imagem: Beto Figueroa/Mandato Ivan Moraes
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Desde o fim da ditadura, a atuação da sociedade civil tem se mostrado fundamental para o reconhecimento e a garantia de direitos, sobretudo a partir da construção e implementação de políticas públicas de alcance universal. Muitas das conquistas obtidas pelas minorias ou por grupos em situação de vulnerabilidade tiveram origem nas lutas travadas pelos movimentos sociais e políticos. Os próprios direitos garantidos pela Constituição de 1988 são resultado de intensa mobilização social.

Os movimentos indígena, negro, quilombola, feminista e LGBTQIA+ são protagonistas das lutas por acesso e reconhecimento de direitos, e os resultados conquistados refletem-se em avanços na construção de políticas públicas e no campo legislativo, como a aprovação da Lei Maria da Penha, destinada a proteger as mulheres da violência doméstica, e o reconhecimento da LGBTfobia como uma modalidade de racismo.

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Os 10% mais ricos capturam cerca de metade da renda nacional total, enquanto os 50% mais pobres ficam com apenas 10%. Legado estrutural da colonização, essa desigualdade é agravada pela falta de acesso universal aos direitos de cidadania. Não por acaso, tantos intelectuais consideram haver, no Brasil, uma democracia inconclusa, com amplos contingentes da população sem acesso a saúde, a educação, a saneamento básico e a segurança alimentar.

Nesse contexto, a filantropia comunitária pode desempenhar um importante papel no fomento à transformação social no País. O apoio financeiro a comunidades indígenas, quilombolas, de mulheres e da população LGBTQIA+ é essencial para assegurar que as minorias avancem na conquista de direitos, respeitando as singularidades de cada grupo.

Um estudo realizado pela Rede ­Comuá, em parceria com a Aponte, mapeou ao menos 31 organizações doadoras independentes, distribuídas pelo território nacional. Essas entidades têm, em comum, a estratégia política de fortalecer a democracia pela transformação social. Para tanto, promovem uma escuta ativa para perceber o que é, de fato, prioritário para cada movimento. As doações estão assentadas em relações de confiança, que valorizam o saber, a cultura e a forma de atuação de cada um dos grupos beneficiados. Trata-se de um modelo distinto da filantropia convencional, acostumada a trazer soluções prontas, por vezes distantes das reais necessidades das comunidades, e com caráter assistencialista.

As organizações doadoras independentes mapeadas pela Rede Comuá mobilizam recursos de fontes diversas, nacionais e estrangeiras, públicas e privadas, individuais e coletivas, destacando-se pela capacidade de articulação com grande diversidade de atores e redes. E realizam as doações por meio de práticas de grantmaking, ou seja, através do apoio financeiro com o intuito de fortalecer o trabalho já desenvolvido por organizações, coletivos, movimentos e lideranças da sociedade civil.

Em vez de trazer soluções prontas, é melhor investir em iniciativas já concebidas pela sociedade civil

O fortalecimento institucional dos grupos beneficiados é prioridade para as organizações doadoras independentes – 74% declaram doar para esse propósito, saindo da lógica convencional de financiamento de projetos. Esse apoio é flexível, dando autonomia às organizações e grupos na tomada de decisão sobre a sua atuação. Na sequência, priorizam-se doações para combater a desigualdade de gênero (48%); para promover o desenvolvimento comunitário (42%); para fortalecer a agricultura familiar, a agroecologia, a agrofloresta e o cultivo em ambiente urbano (39%); e para as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e tradicionais (35%). Para a maioria das entidades, as áreas de apoio são interseccionais.

De acordo com o levantamento, 49% das organizações mapeadas repassaram até 1 milhão de reais e 35% doaram entre 1 milhão e 25 milhões. A quantidade de iniciativas apoiadas também se destaca: uma em cada três entidades apoiou entre 101 e mil iniciativas em 2021. Além disso, mais da metade delas prefere investir em ações com incidência política. Embora 45% delas tenham respondido não rea­lizar doações para esse fim, elas costumam investir em iniciativas de impacto social. Certamente, há intencionalidade política por trás dos repasses financeiros realizados.

Esses modos de doar contribuem para a descolonização das práticas da filantropia, trazendo desafios e contestando as lógicas hegemônicas, muitas vezes mantenedoras das estruturas de desigualdade. A transferência de poder é chave, buscando ampliar a participação de organizações e comunidades locais nas decisões sobre os recursos e práticas no apoio em suas ações nos territórios e pela transformação socioambiental. •


*Graciela Hopstein é diretora-executiva da Rede Comuá. Mestra em Educação pela UFF e doutora em Política Social pela UFRJ, atua como consultora, professora e pesquisadora na área social. É autora de livros e artigos sobre políticas públicas, movimentos sociais e filantropia.

Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.

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