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Farra bandeirante

Deputados acionam o STF para derrubar lei paulista que permite a venda de terras devolutas no estado

O governador paulista garante a festa dos ruralistas – Imagem: Sergio Barzaghi/GOVSP
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O Pontal do Paranapanema, no Oeste Paulista, concentra uma das maiores porções de terras devolutas do País. São áreas públicas, pertencentes à União ou ao Estado de São Paulo. De acordo com o artigo 188 da Constituição, a destinação desses territórios deve ser “compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária”. Foram, porém, ocupadas ilegalmente por grileiros e repassadas a grandes latifundiários. Não por acaso, a região é recordista de conflitos agrários.

Agora, o governador paulista, Tarcísio Freitas, demonstra estar disposto a acabar de vez com a disputa pelas terras devolutas no estado. Em vez de destiná-las à reforma agrária, como determina a Carta Magna, o ex-ministro de Jair Bolsonaro optou por uma distribuição às avessas. Passou a vender essas áreas a grandes fazendeiros por preços módicos, até 90% abaixo do valor de mercado. Uma vez regularizadas, as áreas griladas não poderiam mais ser objeto de reivindicação dos sem-terra, a menos que permaneçam improdutivas, sem cumprir sua função social.

Como terras devolutas não podem ser vendidas assim, com uma simples canetada, foi preciso recorrer a uma controversa jogada legislativa. A manobra começou a ser gestada pelo então governador João Doria, do ­PSDB, que apresentou ao parlamento paulista um projeto de lei para autorizar a venda dessas áreas, ignorando o disposto na Constituição. A proposta acabou aprovada na gestão de Rodrigo Garcia, sucessor de Doria no Palácio dos Bandeirantes, quando o tucano abandonou o cargo para disputar a Presidência da República. Coube a Freitas, eleito em 2022, a missão de colocar o plano em prática.

Para executar a tarefa na ponta, o governador nomeou Guilherme Piai, assíduo frequentador de clubes de tiro e ardoroso defensor do agronegócio e ­diretor-executivo­ do Instituto de Terras de São Paulo, conhecido pela sigla Itesp. Mimetizando o ex-ministro Ricardo Salles, o ruralista de Presidente Prudente sugeriu a empresários do setor celeridade na compra das terras devolutas, pois a “a lei pode cair” a qualquer momento. Registrada em vídeo, a declaração consta em uma ação interposta pelo MST e por partidos do campo progressista ao Supremo Tribunal Federal, na qual é questionada a constitucionalidade da lei aprovada no ano passado. É a versão bandeirante do “passar a boiada”.

O diretor do Itesp recomenda celeridade, pois “a lei pode cair” – Imagem: Redes sociais

Na avaliação de Bernardo Mançano Fernandes, professor do Departamento de Geografia da Unesp, a lei se destina a “grilar a grilagem”. Para quem não conhece a origem do termo, uma breve explicação. No passado, invasores de terras públicas costumavam corromper funcionários de cartórios para obter títulos de propriedade falsos. Para a fraude não ser descoberta, eles colocavam esses documentos dentro de gavetas com grilos, uma forma de conferir aspecto envelhecido aos papéis, que rapidamente ficavam amarelados e com as bordas corroídas pelos insetos. Agora, para “esquentar” uma área grilada, os criminosos contam com a aprovação de leis que regularizam a posse. Ao permitir a compra de terras devolutas, o governo paulista dispensa o uso de grilos para “esquentar” as glebas invadidas.

Líder da bancada do PT na Assembleia Legislativa de São Paulo, Paulo Fiorilo não hesita em dizer que Tarcísio Freitas “institucionalizou o grilo”. “A lei vigente até então possibilitava ao grande fazendeiro, que estivesse em terras devolutas, devolver uma parte das terras para a reforma agrária e regularizar outra parte. Agora, não. O grileiro, o invasor de terras públicas, vai poder comprá-las a preço de banana, sem a necessidade de ceder espaço aos sem-terra”, alerta.

A Procuradoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União já emitiram pareceres favoráveis ao reconhecimento da inconstitucionalidade da lei, e a matéria está nas mãos da ministra Cármen ­Lúcia. Caso a lei seja anulada pelo Supremo, ­Fiorilo defende a aplicação dos efeitos da decisão de forma retroativa, para desfazer as vendas que já tenham sido concluídas.

Para a nova superintendente do Incra de São Paulo, Sabrina Nepomuceno, primeira mulher a ocupar o cargo, essa manobra legislativa só foi possível graças ao retrocesso na reforma agrária durante o governo Bolsonaro. “Como São Paulo tem uma presença muito forte do agronegócio, houve uma articulação de fazendeiros e grileiros do Pontal do Paranapanema, historicamente representados por Nabhan Garcia, para conseguir emplacar essa lei”, denuncia. Antes de assumir a Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Garcia foi presidente da União Democrática Ruralista, a UDR, grupo paramilitar criado nos anos 1980 para expulsar os sem-terra que ocupavam fazendas improdutivas.

Tarcísio Freitas está empenhado em “esquentar” áreas griladas a preço de banana

Segundo Nepomuceno, as milícias de fazendeiros no Pontal do Paranapanema foram reorganizadas nos últimos anos. “Recentemente, teve uma operação policial na região que prendeu uma série de lideranças de movimentos populares, mas também foram encontradas armas de grosso calibre, inclusive fuzis, em posse de fazendeiros, mas nenhum deles foi preso”. Para ela, a venda de terras devolutas prejudica a sociedade como um todo. “O agronegócio não produz comida para a população. Cultiva soja e milho para fazer ração de gado, cria boi de corte para exportação. Mais de 75% dos alimentos consumidos pelos brasileiros são produzidos por agricultores familiares e assentados.”

Tarcísio Freitas e Guilherme Piai foram convidados a depor na CPI do MST. A venda de terras devolutas tem sido discutida pela comissão, que em 29 de maio fez uma diligência no Pontal do Paranapanema. Segundo o deputado Nilto Tatto, do PT, que participou da expedição, os deputados ligados ao agronegócio foram desrespeitosos com trabalhadores rurais acampados e assentados. “Chegaram a invadir e fotografar a casa dos assentados sem permissão.”

Integrante da coordenação estadual do MST, Delwek Matheus observa que, ao vender as terras devolutas, o governador diminui “o estoque de terras que poderiam ser destinadas à reforma agrária”. Atualmente, a região do Pontal do Paranapanema concentra 117 assentamentos, com mais de 7 mil famílias. Há ainda ao menos sete acampamentos à espera de regularização fundiária. “O que nós estamos vendo é um conflito de interesses”, explica Zelitro Luz da Silva, que vive no assentamento São Bento 2, em Mirante do Paranapanema. “De um lado está o latifúndio, que tem um lobby poderoso. De outro, os trabalhadores que defendem a proteção ambiental, a produção de alimentos saudáveis e a distribuição justa de terra”. •

Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.

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