Justiça

“É só o começo”

Além de perder o mandato, Moro deve ser investigado por lavagem de dinheiro, avalia advogado que moveu processo contra o senador

Efeito Orloff. Moro teme ter o mesmo destino que a antiga colega de toga Selma Arruda – Imagem: Jefferson Rudy/Ag. Senado
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O senador Sergio Moro, do União Brasil, está prestes a ser julgado pelo Tribunal Regional Eleitoral do Paraná por abuso de poder econômico, uso indevido dos meios de comunicação social e antecipação dos gastos de campanha em 2022. As ações movidas pela Federação Brasil da Esperança, liderada pelo PT, e pelo PL de Jair Bolsonaro apontam que o ex-juiz da Lava Jato provocou um desequilíbrio na disputa local pelo Senado, em decorrência dos elevados gastos na pré-campanha para a Presidência, quando ele ainda estava filiado ao Podemos. A guilhotina pode ser a mesma que decepou a cabeça de uma antiga colega de magistratura, a ex-senadora Selma Arruda, que teve o mandato cassado pela Justiça Eleitoral.

A cassação pode ser, porém, apenas o início da tormenta que se aproxima de Moro. Em entrevista a CartaCapital, o advogado da Frente Brasil Esperança, Luís Eduardo Peccinin, especialista em Direito Eleitoral, também aponta indícios de que Moro pode ter cometido crime de lavagem de dinheiro e apropriação indébita de recursos do Fundo Partidário na obscura contratação de seu primeiro suplente, Luís Felipe Cunha, para prestar serviços advocatícios à campanha. “Moro praticamente confessou que celebrou um contrato ‘guarda-chuva’, que serve para cobrir despesas não declaradas à Justiça Eleitoral, uma manobra antiga e ilegal”, avalia. “Já solicitamos a instauração de um inquérito criminal para apurar os fatos.”

Passo seguinte. Peccinin solicitou a abertura de um inquérito criminal – Imagem: Redes sociais

CartaCapital: Quando o senhor começou a investigar a campanha de Sergio Moro?
Luís Eduardo Peccinin: Em anos eleitorais, advogados contratados pelos partidos fazem o acompanhamento das campanhas de adversários para fiscalizar possíveis ilicitudes. Desde a mudança do ­domicílio eleitoral de Moro para São Paulo, quando ele tinha a pretensão de disputar a Presidência da República, começamos a observar os atos de sua pré-campanha com atenção, pois era grande a chance de o Tribunal Regional Eleitoral paulista barrar essa transferência. Havia, portanto, a possibilidade de Moro retornar ao Paraná para disputar um cargo eletivo, o que se confirmou logo depois. Mas um fato casual me deixou intrigado. Em abril de 2022, um amigo comentou que tinha encontrado com o ex-juiz no prédio onde ele trabalhava, saindo de um escritório de advocacia. Fui atrás e descobri que ali trabalhava seu primeiro suplente, ­Luís Felipe Cunha. Ao pesquisar, constatei que, naquele mesmo mês, o escritório de Cunha recebeu do União Brasil uma parcela de 250 mil para serviços de advocacia, mesmo sendo uma figura desconhecida da advocacia eleitoral. Verificamos que aqueles pagamentos eram mensais e bastante significativos para um pré-candidato a deputado ou senador. Até agosto, quando Cunha foi confirmado como suplente de Moro, suas empresas haviam recebido mais de 1 milhão de reais do Podemos e do União Brasil, para serviços que ainda não sabíamos a natureza.

CC: O que mais chamou sua atenção?
LEP: O ramo da advocacia eleitoral é bastante restrito. É difícil não conhecer os advogados que atuam para partidos e grandes campanhas. Além disso, já era de conhecimento público e notório que, desde o Podemos, Moro tinha um advogado especialista e notoriamente conhecido para sua advocacia nas eleições, Gustavo Bonini Guedes, mas que curiosamente não estava sendo pago pelo União Brasil. Para completar, Cunha era sempre apresentado como “coordenador de campanha” e amigo pessoal do ex-juiz, mas nunca atuou em um processo eleitoral na vida.

“O ex-juiz usou um contrato ‘guarda-chuva’ para cobrir despesas não declaradas”

Após a saída do Podemos, a antiga agremiação de Moro relatou à imprensa que Cunha teria pressionado o partido para celebrar um contrato de honorários sem prestação de serviços para bancar o “estilo de vida” do ex-juiz. Quando vimos que os valores pagos pelo União Brasil a Cunha eram muito altos para uma campanha estadual, as peças começaram a se encaixar e passamos a acompanhar com mais proximidade os passos de Moro. A confirmação de Cunha como candidato a primeiro suplente tornou tudo muito mais suspeito. Em 14 anos de advocacia, nunca presenciei essa peculiar contratação de um candidato pela própria campanha.

CC: As suspeitas de ilicitude se confirmaram?
LEP: A suspeita inicial ficou demonstrada no depoimento do próprio Moro. Ao ser questionado em audiência pelo desembargador-relator Luciano Carrasco Falavinha, sobre as nuances dessa contratação, ele confirmou que o escritório do suplente era usado para pagar despesas não declaradas, dentre elas o advogado de fato. Não conseguiu explicar, porém, a razão de especialista em Direito Eleitoral, como Gustavo Guedes, ter recebido 60 mil reais mensais do Podemos para advogar numa campanha presidencial, enquanto seu suplente, que nunca havia assinado uma defesa na Justiça Eleitoral, passou a receber mais que o quádruplo desse valor.

Presidenciável. A montanha de dinheiro despejada na pré-campanha ao Planalto gerou desequilíbrio na disputa pelo Senado – Imagem: Robert Alves/Podemos 19

Moro praticamente confessou que celebrou um contrato “guarda-chuva”, que serve para cobrir despesas não declaradas à Justiça Eleitoral, uma manobra antiga e ilegal. Para nós, isso já é suficiente para comprovar a inidoneidade e ilegalidade da despesa de 1 milhão de reais e o abuso do poder econômico, mas entendemos ser necessária uma investigação criminal. É fundamental que se saiba a destinação final desses recursos do Fundo Partidário, pois há indícios de que o dinheiro público foi usado indevidamente para cobrir despesas pessoais. Estamos falando de crime de apropriação indébita, desvio e lavagem de dinheiro.

CC: Qual foi a estratégia adotada pela Frente Brasil da Esperança?
LEP: Neste caso, observamos que a pré-campanha de Sergio Moro para a Presidência da República pelo Podemos já havia movimentado altas somas para o custeio de uma estrutura antecipada de campanha. Após sua ida para o União Brasil de São Paulo, ele ainda discursava e praticava atos de pré-campanha fora do estado, como se continuasse na corrida presidencial. Esse fato gerou um mal-estar no partido, manifestado pelo ex-prefeito de Salvador ACM Neto. Seus discursos, viagens, vídeos, suas páginas nas redes sociais, nada havia mudado. Toda sua campanha era em torno de temas nacionais. Mesmo sem dizer qual cargo disputaria, Moro mantinha sem qualquer interrupção uma intensa campanha digital e uma agenda de viagens claramente onerosa, e não sabíamos de onde vinha o custeio. Para uma ação de cassação, avaliamos, porém, ser necessário apurar melhor, para subsidiar algo que estava claro: o elevado volume de dinheiro movimentado na pré-campanha à Presidência colocou-o em situação de vantagem indevida em relação aos demais candidatos ao Senado no Paraná.

CC: O que difere a ação da Frente Brasil Popular daquela apresentada pelo PL?
LEP: Ambas questionam basicamente a mesma situação: o abuso de poder econômico advindo da antecipação de despesas típicas de campanha eleitoral, fora da contabilização oficial da Justiça Eleitoral. As duas também se fundam sobre o precedente da ex-senadora Selma Arruda, chamada à época de “Moro de Saias”. Em 2021, o TSE cassou o mandato de Selma pelo dispêndio abusivo de recursos financeiros antes do período eleitoral, o que a beneficiou ilegalmente naquela campanha ao Senado por Mato Grosso. A diferença é que a ação do PL fez pedidos de quebra de sigilo fiscal e bancário, que entendemos que ainda eram prematuros naquele momento. Além disso, sua ação tinha detalhes sobre a contratação de Cunha que não sabíamos, como o fato de ele ter alterado o site de seu escritório para incluir serviços em “Direito Eleitoral” apenas um dia antes de receber a primeira parcela de 250 mil ­reais do União Brasil.

O partido alertou: gastos elevados com um único candidato podem configurar campanha antecipada

CC: O Podemos e o União Brasil também cometeram irregularidades?
LEP: Após a instrução do processo, não parece que isso tenha ocorrido. Moro aproveitou de sua notoriedade como juiz e ex-ministro para ter o apoio financeiro do partido. Ele e Cunha tinham uma ampla autonomia sobre a campanha, feita praticamente sob sua conta e risco. Além disso, o próprio União Brasil, tanto o diretório paranaense quanto o nacional, colaborou e apresentou todos os documentos necessários à plena elucidação das despesas de campanha, incluindo e-mails e detalhes de seus procedimentos internos. Dentre esses documentos está um e-mail do compliance interno do partido, ainda de abril de 2022, alertando a campanha de Moro de que o excesso de despesas para um pré-candidato poderia ser considerado como “campanha antecipada”. Esse alerta foi ignorado, mas serve como prova de que Moro tinha ciência das ilicitudes.

CC: Há outros documentos comprometedores?
LEP: Sim, tem um parecer de maio de 2022, assinado pelo próprio Luís Felipe Cunha, no qual ele analisa que seria possível a Moro gastar até 30% do limite legal de despesas para a campanha ainda no período pré-eleitoral, mas que eles mesmos descumpriram. Tal limite, além de ter sido ignorado, também é equivocado, o que somente reforça o desconhecimento do suplente sobre a legislação eleitoral. Não existe parâmetro legal para esse abuso, mas os precedentes que existem na Justiça Eleitoral consideram proporcionais gastos de até 10% do limite legal, bem longe dos 30% que ele sustentou. Tal parecer, curiosamente, foi omitido pela defesa, o que também demonstra que eles tinham total ciência do abuso que praticavam.

Aviso. O senador não deu ouvidos ao departamento jurídico do União Brasil, a prever problemas em maio de 2022

CC: A Frente teve ajuda de desafetos de Moro? Houve “fogo amigo” nesse processo?
LEP: Vários dos questionamentos que fizemos nas ações já eram fruto de apurações feitas pela imprensa, além de ter sido debatidas por especialistas desde o ano passado. O que contribuiu com as investigações foi a colaboração dos partidos e suas fundações, que foram intimados pela Justiça Eleitoral. Todos trouxeram aos autos documentos completos que revelaram o volume de dinheiro movimentado para promover a candidatura de Moro desde o fim de 2021, quando se filiou ao Podemos para ser candidato à Presidência da República. Não considero isso ‘fogo amigo’, mas cumprimento do dever legal em colaborar com a Justiça. Indiretamente, sempre recebemos informações sobre possíveis outras ilegalidades na rápida trajetória eleitoral do ex-juiz, mas sempre tomamos o cuidado de não sermos levianos, nem de contaminarmos o processo com fatos irrelevantes ao nosso propósito principal, que é o de comprovar o abuso de dinheiro na campanha de Moro em 2022. Confiamos também que o julgamento da cassação do ex-juiz seja só o início. Já solicitamos a instauração de um inquérito criminal para apurar os fatos, com quebra dos sigilos fiscal e bancário de Moro, Cunha e suas empresas.

CC: Qual é a sua expectativa em relação ao julgamento no TRE do Paraná? Moro não teria alguma vantagem pela proximidade com o Judiciário paranaense?
LEP: Sempre fomos questionados sobre a possibilidade de uma “derrota certa” no tribunal paranaense, como se Moro “jogasse em casa”. Pessoalmente, nunca confiei nessa leitura. Acompanho a história do TRE do Paraná há muitas eleições, sei da seriedade e do rigor da Justiça Eleitoral. Sempre deixei claro que, havendo provas, o tribunal não se furtaria em cumprir o seu papel. Nossa confiança é nas provas dos autos. •

Publicado na edição n° 1294 de CartaCapital, em 24 de janeiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘“É só o começo”’

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