Política
Dor sem-fim
Cinco anos após o desastre de Brumadinho, o Brasil continua com regras frouxas e falha na fiscalização das empresas


Paraíso dos agrotóxicos, cemitério de pneus usados, laboratório para sementes transgênicas. Na contramão do desejo brasileiro de ser uma liderança ecológica global, essas são algumas das merecidas alcunhas que o País acumulou ao longo das últimas décadas por conta da frouxidão do Poder Público em fiscalizar e punir determinadas práticas nocivas do ponto de vista socioambiental. No mês em que se completam cinco anos do rompimento da barragem Córrego do Feijão, tragédia que causou a morte de 270 habitantes da cidade mineira de Brumadinho, o Brasil ainda tenta livrar-se de outra pecha: ser o país do vale tudo para barragens de mineração.
De acordo com a Agência Nacional de Mineração, existem 927 barragens espalhadas de Norte a Sul do País, sendo 461 de grande porte. Nesse subgrupo, 149 barragens são consideradas de médio ou alto risco. É assustador, sobretudo, para as dezenas de milhares de pessoas que vivem no entorno desses empreendimentos e que, na maioria dos casos, têm pouca ou nenhuma informação sobre algo que pode ser uma bomba-relógio.
O rompimento da barragem Córrego do Feijão provocou 270 mortes em 2019
Não é um problema simples de resolver. Na falta de um arcabouço legal e sem capacidade de atuar no terreno, o governo federal e as administrações estaduais delegaram, ao longo dos anos, a responsabilidade de elaborar laudos técnicos de segurança às próprias empresas. Agora, a equipe de Lula tenta pôr alguma ordem na casa. Durante quatro anos, Jair Bolsonaro e outras lideranças do Legislativo ignoraram o assunto, com o consequente engavetamento das leis propostas pela comissão especial da Câmara, criada para acompanhar os desdobramentos dos desastres de Brumadinho e Mariana. Lula sancionou, em dezembro, a lei que institui a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (Penab). A iniciativa é um desdobramento da Política Nacional de Segurança de Barragens, que também estabeleceu regras específicas para o setor. Ainda aguardam votação no Congresso seis projetos de lei que, entre outras coisas, definem normas para o licenciamento ambiental de atividades de mineração e tipificam os crimes de ecocídio e responsabilidade por rompimento de barragem.
“Com o dinamismo da nova lei de proteção aos atingidos por barragens, teremos melhores condições de cobrança nos processos que envolvem as duas tragédias”, diz o deputado federal Rogério Correia, do PT-MG, coordenador da comissão externa. Vice-líder do governo na Câmara, o petista avalia que a sanção das duas políticas modifica completamente o tratamento dado até aqui à questão: “Com a Penab, para qualquer novo empreendimento será obrigatório prever quem são os atingidos e quais os seus direitos, além de considerar a existência de comitês locais que farão a análise do que será atingido”. Correia cita outra importante mudança: “Foram proibidas as barragens à montante e estabeleceu-se um prazo para que as já existentes sejam recuperadas. A multa pelo descumprimento dessas cláusulas pode chegar a 1 bilhão de reais”.
Mariana. Sem poder pescar nem cultivar em determinadas áreas, muitas famílias perderam a principal fonte de sustento – Imagem: Christophe Simon/AFP e Gabrielle Pompeu Sodré/MAB
Para multar é preciso fiscalizar, e esse é outro abacaxi que o governo terá de descascar. Um novo desastre no fim do ano – o colapso da Mina 18 da Braskem em Maceió – revelou uma triste realidade: os 60 mil habitantes que tiveram de deixar suas casas talvez ainda estivessem no conforto dos seus lares se a mina não tivesse passado quatro anos sem fiscalização, que só voltou a acontecer em maio do ano passado. Criada em 2017, mas negligenciada por Bolsonaro, a ANM, acusada de omissão pelo Ministério Público nos casos de Mariana e Brumadinho, ainda parece longe de cumprir sua função a contento. Dos pouco mais de 2 mil cargos previstos na estrutura da agência, apenas cerca de 700 estão ocupados. Os fiscais são apenas 237 e, em Maceió, inacreditavelmente trabalhava somente um deles. Em 2019, MP e ANM assinaram um acordo para “melhorar as condições de inspeção nas barragens”, mas a coisa não foi adiante. Em outubro, após uma greve de dois meses, os servidores da agência conseguiram equiparação salarial com os servidores das demais agências setoriais.
O Ministério da Gestão e Inovação informa que o governo autorizou a nomeação dos 27 candidatos aprovados no concurso da ANM para o cargo de especialista em recursos minerais: “Importante destacar que a Lei nº 8.112, de 1990, proíbe a abertura de novo concurso enquanto houver candidato aprovado em concurso anterior com prazo de validade não expirado. O concurso da ANM de 2021 expirou em agosto de 2023. O MGI avança em um processo para autorização de um novo concurso para a Agência”, esclarece a ministra Esther Dweck. Segundo ela, a pasta “está acompanhando de perto a situação da ANM, assim como a de outros órgãos e entidades da Administração Pública Federal, que demandam a recomposição dos quadros de pessoal”.
Atingidos queixam-se da demora para o pagamento das indenizações devidas
Presidente do Ibama à época do rompimento da Barragem do Fundão em Mariana, tragédia que provocou 19 mortes há oito anos, Suely Araújo avalia que há muito que melhorar no controle dos empreendimentos minerários. “Mudanças na legislação são apenas uma parte da solução dos problemas. Há necessidade de assegurar governança e estrutura para os órgãos responsáveis pelo controle.” Hoje coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, Suely defende a aprovação do Projeto de Lei nº 2.785/2019, em trâmite na Câmara dos Deputados, que define regras específicas para o licenciamento ambiental de empreendimentos minerários: “Mineração é um setor cujo licenciamento apresenta muitas características bastante específicas, como a necessidade de um conjunto de atos autorizativos, além da licença de operação e a necessidade de olhar com atenção para o fechamento da mina”.
No Brasil, falta uma política séria de segurança, acrescenta Fernanda Portes, dirigente do Movimento dos Atingidos por Barragens, o MAB, em Minas Gerais. Ela reconhece a desestruturação da ANM, “com baixo orçamento e falta de um corpo técnico com quantidade e qualidade para dar conta da fiscalização”, mas diz que só reestruturar a agência não basta: “É preciso aprovar um marco legal capaz de responsabilizar as empresas pelos seus atos criminosos, garantir fiscalização e informações sobre a situação de barragens para toda a sociedade brasileira e, por exemplo, não conceder licenças para novas áreas às mineradoras que cometeram crimes enquanto a reparação não acontecer”. Fernanda Portes lamenta que “os dois maiores crimes socioambientais da história do Brasil não levaram à mudança do padrão criminoso de exploração de minério”. O risco persiste, alerta a ativista: “Ocorrem crimes semelhantes com outras empresas e suas barragens de rejeitos. Todas elas possuem um tempo de validade, funcionam como bombas-relógio sobre a cabeça dos povoados e cidades”.
Prevenção. Dweck promete contratar mais fiscais. Correia defende legislação rigorosa – Imagem: Bruno Spada/Ag. Câmara e Washington Costa/MF
Fernanda defende também a punição criminal das empresas envolvidas: “Quem causou o desastre de Maceió será responsabilizado criminalmente? Repare: as companhias responsáveis pelos desastres de Mariana e Brumadinho continuam impunes”. Enquanto as investigações de eventuais crimes cometidos por técnicos e gestores do setor privado não avançam, é preciso exigir indenizações compatíveis com os danos causados. No caso da Barragem do Fundão, os governos federal, de Minas e do Espírito Santo pediram reparações que somam 126 bilhões de reais, mas as mineradoras Vale, Samarco e BHP concordaram em pagar apenas 42 bilhões, valor considerado “absurdo” por Rogério Correia. “Essa proposta mereceu o repúdio dos governos estaduais, do governo federal, do Ministério Público e da Defensoria Pública, além do próprio TRF-6, que coordena as reuniões de conciliação.” O parlamentar diz que há expectativa de que a negociação seja retomada em março, desde que as empresas se comprometam a melhorar o valor proposto: “Estamos estudando medidas a serem tomadas, caso as empresas continuem não cumprindo aquilo que foi definido”.
No início do ano Legislativo, Correia apresentará na Câmara um laudo da Justiça que, em sua avaliação, exigirá mais respostas das empresas: “O documento demonstra que até hoje é muito grande a degradação do Rio Doce, que está inabilitado para quase tudo, com uma concentração de minérios muito grande em suas águas. Vamos expor esse laudo, que fará uma exigência ainda maior à Samarco e à BHP, para que possam aumentar esses valores e também garantir a limpeza e a retirada de rejeitos do rio, coisa que até agora não fizeram”. Para Suely Araújo, “o desafio da recuperação ambiental do Rio Doce é gigante”. Ela lembra que, praticamente, toda a bacia foi afetada: “Não foi uma tragédia humana da dimensão de Brumadinho, mas os impactos socioambientais derivados de Fundão sequer podem ser mensurados de forma precisa. Nunca vai se conseguir tirar os rejeitos, eles terão de ser gerenciados por décadas”.
Suely acrescenta que dezenas de programas pactuados no caso de Mariana, a cargo da Fundação Renova, levarão bastante tempo antes de poderem ser considerados concluídos: “Não acredito que o caminho correto seja transformar tudo isso em um valor financeiro e pagar compensação para os dois estados, como vem sendo defendido em algumas esferas. A população tende a ser prejudicada nessa opção. As três tragédias, Mariana, Brumadinho e Maceió, mostram a necessidade de o Poder Público ter muito mais rigor no controle dos empreendimentos minerários, e isso abrange União, estados e municípios. O Brasil ainda tem muito a evoluir nessa perspectiva”.
A ANM está com as equipes de fiscalização desfalcadas
Fernanda Portes afirma que, tanto em Brumadinho quanto em Mariana, as pessoas atingidas vivem em situação de insegurança hídrica e alimentar: “Há falta de informações confiáveis sobre a contaminação da água, do solo e do ar, tampouco vemos ações efetivas para a reparação ambiental. Os atingidos convivem diariamente com excesso de poeira, porque pequenas partículas de rejeitos encontram-se no ar. Em certas áreas, o uso de cisternas está proibido, assim como a pesca e o cultivo de espécies vegetais”, enumera.
Em Brumadinho, cinco anos após a tragédia, as águas do Rio Paraopeba também permanecem contaminadas. Ainda vigora a instrução do Instituto de Gestão das Águas de Minas Gerais (Igam), que recomenda o não uso da água bruta do Paraopeba para qualquer finalidade. Em acordo distinto do firmado em Mariana, foi estipulado em Brumadinho um valor global de 37,68 bilhões de reais para ações diversas e pagamentos de indenizações em 26 municípios. Segundo a Vale, até o fim do ano passado, cerca de 15 mil pessoas já haviam sido indenizadas. “Em Brumadinho, o problema não é o valor a ser aplicado, e sim as escolhas que não foram coletivas e que serão aplicadas de forma diluída no estado, sem o menor controle. A retirada dos rejeitos está muito morosa, assim como o pagamento das indenizações”, avalia Correia.
Assessor jurídico da Associação dos Familiares das Vítimas de Brumadinho, Danilo Chammas levanta outra questão: “Em nenhum momento foi prometido o fechamento das minas. Vão retomar a exploração?” Rogério Correia defende que se discuta a possibilidade de que não sejam dados novos licenciamentos ambientais às empresas responsáveis pelas tragédias, incluindo a Braskem pelo caso de Maceió: “O direito de minerar deve ser questionado, caso não se respeitem as regras de segurança para barragens. Isso está previsto na nova lei”. Enquanto não são obrigadas a se adequar, as empresas continuam a empurrar com a barriga o pagamento de reparações que seriam facilmente suportadas pelos seus bilionários orçamentos. Não há pressa. Em Mariana, somente em novembro do ano passado, exatos oito anos após a tragédia, o distrito de Novo Bento Rodrigues, erguido próximo ao lugar original, devastado pela enxurrada de lama, foi finalmente inaugurado. Já com os imóveis prontos, porém vazios, o distrito de Novo Paracatu ainda aguarda inauguração. •
Publicado na edição n° 1293 de CartaCapital, em 17 de janeiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dor sem-fim’
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