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O bonde verde

A transição sustentável abre nova janela de oportunidades para a reindustrialização do País

Foto:Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR
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Em 29 de novembro, o presidente Lula estava na Arábia Saudita, a caminho da conferência anual da ONU sobre mudanças climáticas que aconteceria na vizinhança, nos Emirados Árabes Unidos. Em um seminário com empresários, comentou: “Daqui a dez anos, o Brasil será chamado de a Arábia Saudita da energia verde”. Dois dias depois, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, participava da conferência e disse que os planos do governo diante dos desafios impostos pelo aquecimento global são uma “reinvenção do Brasil”. As palavras de Lula e Haddad foram exageradas? Não parece, quando se olha em conjunto as ideias e iniciativas levadas adiante em Brasília de um ano para cá, em decorrência justamente da crise climática.

Os planos mostram o Estado disposto a aproveitar o bonde da História para tentar melhorar a qualidade da economia e das condições de vida. Há apoio à produção de energia pouco, ou nada, poluidora. Incentivo à indústria, setor capaz de sofisticar o PIB e gerar empregos com salários mais altos. Estímulo à pesquisa e às inovações tecnológicas, igualmente aptas a qualificar o parque produtivo. Tentativa de tirar proveito financeiro de manter árvores em pé, sobretudo na Amazônia. E até um desejo de “roubar” multinacionais instaladas em outros lugares. “Nós enxergamos a mudança climática como uma oportunidade de desenvolvimento”, afirma Carina Vitral, assessora especial do Ministério da Fazenda encarregada do chamado Plano de Transformação Ecológica, o guarda-chuva da reinvenção citada por Haddad. “Nós dizemos: ‘Mundo, você quer descarbonizar a sua economia? Venham para o Brasil, tragam suas plantas industriais para cá’.”

O aquecimento do planeta é obra, sobretudo, do carbono, jogado no ar com a queima de derivados de petróleo. Descarbonizar significa reduzir ou eliminar a emissão desse gás. Isso pode ser feito, por exemplo, com o uso de combustíveis de origem eólica, solar ou vegetal (etanol). “Esverdear” a economia, “descarbonizá-la”, é uma das seis “missões” da política industrial a ser lançada em 18 de janeiro por Lula. Cada “missão” corresponde a objetivos estipulados para, no fim das contas, melhorar a vida dos brasileiros. Atender às carências do setor industrial não é um fim em si mesmo, mas um meio de atingir aqueles objetivos. É o que diz Verena Hitner, secretária-executiva do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial. “A geopolítica atual tem política industrial, não se fala mais disso com a mão na boca.”

“Daqui a dez anos, o Brasil será chamado de a Arábia Saudita da energia” renovável, vaticinou Lula

O CNDI reúne autoridades governamentais e representantes da sociedade. Foi reativado em 2023 e desenhou a nova política industrial. Em julho, definiu investimentos de 106 bilhões de reais em quatro anos. A quantia sairá do principal banco federal de fomento, o BNDES (65 bilhões), e da maior agência pública de apoio à ciência e à tecnologia, a Finep (40 bilhões). A verba da Finep e uma fatia daquela do BNDES (20 bilhões) financiarão exclusivamente pesquisas tecnológicas, em um programa batizado de Mais Inovação Brasil. A maior parte será emprestada a juro baixo, de 4% ao ano, graças a uma lei de maio passado. “É a maior soma de recursos para inovação da história, essa agenda é uma prioridade do governo”, garante José Luís Gordon, diretor de Desenvolvimento Produtivo, Inovação e Comércio Exterior do BNDES.

Uma medida com o carimbo “política industrial”, e atrelada à mudança climática, entrou em vigor no dia 1°. Para incentivar a fabricação de carros elétricos, o governo voltou a cobrar imposto sobre modelos comprados no exterior. Foi definida uma cota de importação e o que a exceder será taxado. O tributo existiu até 2015. Era de 35%, porcentual a ser atingido em 2026. Por ora, é de 10% e subirá de forma progressiva. A mesma reoneração gradual vale para automóveis “híbridos” (funcionam com eletricidade e biocombustível) e caminhões elétricos. A maior montadora mundial de veículos elétricos, a chinesa BYD, será beneficiada. Assumiu em 2023 as instalações da Ford na Bahia, tem feito as adequações necessárias e construirá um centro de pesquisas por lá. No total, um investimento de 3 bilhões de reais, para iniciar a produção em 2025.

O dinheiro da taxação dos carros elétricos importados vai financiar o “esverdeamento” das montadoras tradicionais instaladas no País. O programa “Mover” tentará fazer com que os veículos produzidos internamente usem mais biocombustíveis. Terá à disposição 19 bilhões de reais até 2028. Juntamente com esse programa, uma Medida Provisória assinada por Lula em 30 de dezembro criou um fundo novo no BNDES, de apoio ao desenvolvimento industrial e tecnológico, direcionado a projetos de mobilidade verde. O fundo terá 1 bilhão de reais em quatro anos.

Manter a floresta em pé, liderar a produção de hidrogênio verde e qualificar a exploração do lítio integram o conjunto de medidas – Imagem: iStockphoto e Sigma Lithium

No capítulo “mobilidade verde”, 2024 verá mais ônibus elétricos nas ruas. O Ministério das Cidades espera botar para circular 2.927 unidades, seis vezes a quantidade atual (444). Será o resultado inicial de uma das vertentes do “Novo PAC”. O pacote federal de obras e investimentos reservou 6 bilhões de ­reais para a renovação da frota de ônibus e trens. Entre outubro e novembro, houve um processo seletivo com cidades interessadas. Com o aumento da demanda, o governo acha possível as fábricas produzirem cada vez menos ônibus convencionais e mais elétricos. Assim, ganhariam mercado externo, sobretudo na América Latina. O principal fornecedor é a gaúcha Marcopolo. A chinesa Higer, maior do mundo no ramo, vende importados e pretende construir uma fábrica no Centro-Oeste para atender ao mercado brasileiro, e outra no Ceará, voltada à exportação.

E baterias elétricas? Há discussões no governo sobre como usar empréstimos públicos e apoio a pesquisas, como forma de incentivar a fabricação, diz Rafael Dubeux, secretário-executivo-adjunto do Ministério da Fazenda. Matérias-primas fundamentais e estratégicas, como lítio, níquel e terras raras, o País tem. O lítio é o principal, empregado tanto em baterias de automóveis quanto naquelas de celulares e notebooks. Dada sua importância atual, tem sido chamado de “ouro branco”. O Brasil possui a sétima maior reserva, segundo o Ministério de Minas e Energia, 85% numa região pobre, o Vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais. O governador mineiro, Romeu Zema, tenta desde 2023 atrair companhias estrangeiras para lá, ao “vender” um “Vale do Lítio”. Uma canadense, a Sigma Lithium, aportou no ano passado e, em julho, exportou à China a primeira carga de “lítio verde”, produzido sem poluição.

O mercado do lítio é promissor. Apesar das reservas, até 2022 o Brasil restringiu sua exportação, por causa do aproveitamento do mineral em energia nuclear. Agora é o quinto maior produtor. As principais reservas estão nas nossas cercanias: Chile, Argentina e Bolívia (essa última não explora). O governo chileno de Gabriel ­Boric quer criar uma estatal para o lítio. Claro, estudos do FMI apontam enorme expansão do faturamento dos produtores de lítio, níquel, cobalto e cobre até 2050, em razão da produção crescente de baterias. “O pior cenário para o Brasil é a gente exportar o lítio bruto. Deixado ao natural, é o que vai acontecer, como é com o minério de ferro”, diz Dubeux. Compare-se: a tonelada de lítio bruto custa cerca de 60 dólares. Quando o minério é industrializado para uso em baterias, salta para 6 mil.

A nova política industrial, focada na descarbonização, prevê investimentos de 106 bilhões de reais em quatro anos

Outras duas fronteiras econômicas valiosas despontam no Brasil, em meio à descarbonização: o hidrogênio e as usinas eólicas em alto-mar. Ambos são fontes de energia, e o impulso à produção depende de duas leis no Congresso.

O hidrogênio, enquanto gás combustível, é obtido a partir da água. Água é combinação de oxigênio e hidrogênio. Um processo conhecido como eletrólise consegue separar as duas moléculas. O hidrogênio é armazenado em tubos e pode ser transportado para fábricas. Sua queima joga no ar vapor d’água, não poluente. A queima do gás tradicional, obtido do petróleo, lança carbono. Em novembro, os deputados aprovaram uma lei que define o que é hidrogênio combustível, mas falta o Senado votar. O governo apoia a proposta, que estabelece os critérios para catalogar o hidrogênio. Apesar de esse gás ser não poluente, a eletricidade empregada na eletrólise pode ter origem poluente. Daí uma escala cromática para carimbar o hidrogênio: cinza, azul e verde, a depender do grau de poluição por trás da eletrólise.

O BNDES mapeou 30 bilhões de dólares de planos de investimento em hidrogênio verde no Brasil, os quais tendem a sair do papel com a aprovação do marco regulatório. É intenção do banco induzir atividades industriais ligadas à produção desse gás. Entre outras, a fabricação de eletrolisadores nacionais e a construção de usinas eólicas e solares que fornecerão a energia para os equipamentos. O maior projeto de hidrogênio verde do mundo está no Piauí, perto de um porto inaugurado parcialmente em dezembro. Serão 40 bilhões de dólares em uma década. Por trás, uma empresa croata (Green Energy Park) e outra espanhola (Solatio). O objetivo é exportar para Europa, Oriente Médio e Ásia. Uma mineradora da Austrália, a Fortescue, pretende construir uma usina de 10 bilhões de reais no porto de Pecém, no Ceará.

No caso das usinas eólicas em alto-mar, o governo quer a Petrobras à frente dessa nova fronteira e apoia aprovar no Congresso uma lei com as regras do negócio: onde pode (até 370 quilômetros da costa brasileira) e onde não pode (perto de plataformas de petróleo ou áreas ambientais). Em novembro, os deputados votaram uma proposta de 2017 do Senado, que agora terá de examiná-la outra vez. A expectativa geral é de que a lei seja aprovada logo e que ainda neste ano ocorra o primeiro leilão para decidir qual empresa vai explorar eólica e em qual lugar. Antes mesmo de haver legislação, o Ibama recebeu mais de 70 pedidos de autorização de usinas. A Shell é a segunda da fila. O fato de ser um negócio no mar atrai as petroleiras, acostumadas às plataformas oceânicas. Em setembro, a Petrobras enviou dez pedidos ao Ibama. Dois meses depois, reservou em seu plano estratégico 5,5 bilhões de dólares para investir em energias renováveis, a eólica entre elas, até 2028.

O Brasil vai garantir regras claras, diz Rollemberg, do MDIC. Haverá incentivo ao transporte ecológico e à exploração de eólicas em alto-mar – Imagem: Gabriel Lemes/MDICS, iStockphoto e Eletra/Prefeitura de São Paulo

A energia eólica representa 11% da geração do País, informa o Balanço Energético Nacional de 2023. Enquanto age para ampliar a produção, o governo busca estimular a fabricação local de um dos principais equipamentos da atividade: as turbinas, aqueles “cataventos” metálicos que giram com o vento. Desde 1° de janeiro, turbinas importadas de média capacidade pagam 10,8% de imposto, alíquota que irá a 11,2% em 2025. Assim como no caso dos carros elétricos, também há cotas de importação: a taxação vigora sobre o excedente. Com o dinheiro arrecadado, haverá recursos para devolver em dois anos, não mais em 20, tributos cobrados no comércio de máquinas e equipamentos. A lei para que as companhias compradoras possam antecipar a chamada “depreciação” foi ao Congresso no fim de dezembro. É outra medida com o carimbo de “política industrial”.

A aprovação das leis do hidrogênio combustível, das eólicas em alto-mar e daquela que regulamenta o “mercado de crédito de carbono”, outra na fila no Senado, “vai colocar o Brasil como grande destino de investimentos externos, por uma necessidade mundial”, diz Rodrigo Rollemberg, secretário de Economia Verde, Descarbonização e Bioindústria, do Ministério do Desenvolvimento. Segundo Rollemberg, o que os empresários mais pedem em reuniões são regras de jogo bem definidas. A intenção de atrair capitais externos nessas áreas fica mais fácil com a queda pela metade, no ano passado, do desmatamento da Amazônia, prossegue ele. E será reforçada pelo fato de o Brasil comandar neste ano o G-20, o grupo das maiores economias do planeta.

Há uma quarta lei à espera de votação e que o governo considera essencial. Foi proposta em setembro pelo próprio Executivo, ao contrário das outras três, nascidas por iniciativa parlamentar, e batizada de “Combustível do Futuro”. Busca estimular alternativas mais amigáveis ao meio ambiente: diesel verde (com adição crescente de biodiesel ao óleo tradicional), gasolina com até 30% de etanol e bioquerosene de aviação, entre outros. O setor aéreo é responsável por 2% da emissão de gases de efeito estufa, conforme estimativas internacionais. Culpa do querosene, um derivado do petróleo. A lei no Congresso estabelece metas de redução da poluição aérea entre 2027 e 2037. A diminuição resultaria do uso de bioquerosene. O Brasil ainda não está no mercado mundial do chamado SAF, Combustível Sustentação da Aviação, na sigla em inglês, mas tem um potencial enorme nesse mercado graças ao bioquerosene. A empresa Acelen, dos Emirados Árabes, planeja construir uma usina de SAF, de 12 bilhões de reais, na Bahia. Anunciou o plano em novembro, durante a COP28. A biorrefinaria funcionará primeiro com soja, depois com macaúba. A Acelen pertence ao fundo árabe Mubdala, que comprou uma refinaria da Petrobras na Bahia em 2021 e hoje vende a gasolina mais cara do País.

O marco regulatório em discussão no Congresso tem o potencial de atrair 30 bilhões de dólares em investimento no hidrogênio verde

Uma matéria-prima comum de bioquerosene é a palma. A União Europeia não aceita a classificação da palma como combustível renovável, em razão da devastação florestal causada pela produção da planta na Indonésia e na Malásia. É um exemplo da importância geopolítica da “taxonomia”. Taxonomia é um ramo da biologia responsável por identificar, descrever e dar nome a grupos de seres vivos. A palavra tem sido usada para definir um vocabulário comum para caracterizar atividades econômicas, projetos de investimento e ativos financeiros do ponto de vista da sustentabilidade ambiental. Em suma, para catalogar o que é verde e o que não é. Um recurso desse tipo guia os investimentos privados, especialmente de bancos e fundos, e orienta políticas públicas. Colômbia e México têm um glossário próprio. A União Europeia, também, de 4 mil páginas. Os europeus têm má vontade em caracterizar como combustível renovável o etanol, produto importante para o Brasil.

Aqui, o governo planeja criar um léxico neste ano, para anunciar, em novembro, na COP29, e fazê-lo valer a partir de 2026 (uma fase de adaptação começaria em 2025). A elaboração é coordenada pelo Ministério da Fazenda e começou em setembro passado, em parceria com agentes privados. Um traço particular brasileiro será estender o alcance da nossa taxonomia aos aspectos sociais das atividades econômicas. Exemplo: empreendimento com trabalho análogo à escravidão não será “verde”.

Função parecida terá dois “selos” que o governo se prepara para lançar: o “Verde” e o “Amazônia”. O primeiro terá utilidade no comércio exterior. Será um certificado de que um produto ou serviço nasceu de atividades sustentáveis. O segundo será um atestado de origem de que um produto ou serviço respeitou a floresta e beneficia povos tradicionais. O apoio à bioeconomia é outra novidade em gestação em Brasília. O governo logo criará uma comissão nacional para acelerar a adoção de estratégias de como tirar proveito da floresta em pé. O foco, segundo ­Carina ­Vitral, será em biotecnologia (para as indústrias cosmética e farmacêutica), turismo sustentável e produções típicas da Amazônia, como açaí e castanha. Alguns passos foram dados. “A gente precisa colocar uma alternativa legal e sustentável no lugar do crime organizado na Amazônia”, diz. O Centro de Bionegócios da Amazônia foi reformulado em 2023, elegeu uma nova diretoria em dezembro e será turbinado neste ano, garante Rollemberg.

Na empreitada “bioeconômica”, uma arma financeira relevante é o Fundo Clima. Nascido em 2009, tinha até o ano passado 2 bilhões de reais. A partir de 2024, terá cinco vezes mais. O dinheiro novo foi captado no exterior em novembro. O Tesouro Nacional vendeu 10 bilhões de reais em títulos públicos. Pagará juro de 6,5% ao ano ao comprador, menos do que é obrigado a aceitar quando vende papéis no mercado interno. A verba do Fundo Clima será emprestada à mesma taxa de 6,5%. Metade será direcionada a projetos puramente ambientais e o restante para alguns que tenham feição social. A ideia do governo é captar anualmente 10 bilhões de reais no exterior.

Transformar uma crise em oportunidade: a grande aposta do governo para a economia em 2024. •

Publicado na edição n° 1292 de CartaCapital, em 10 de janeiro de 2024.

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