Justiça

Dobradinha Rosa-Barroso pode levar o STF a julgar descriminalização do aborto

Os ministros e Edson Fachin se alternarão no comando do Supremo até 2027, o que aponta para uma ‘janela’ pró-discriminalização até lá

Manifestação no Rio a favor da descriminalização do aborto
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Mulheres que decidem interromper uma gravidez deixarão de ser consideradas pelo Código Penal de 1940 criminosas? Uma dobradinha entre a atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, e seu vice, Luís Roberto Barroso, ambos favoráveis à descriminalização do aborto, sugere que a Corte poderá decidir, em um futuro não muito distante, se a punição (de até três anos de prisão) viola a Constituição de 88.

Rosa é relatora de uma ação de 2017 do PSOL, que pede a anulação dos artigos 124 e 126 do Código Penal. O primeiro artigo prevê detenção para mulher que interrompe a gravidez. O segundo, do médico que faz a cirurgia. 

Ao assumir o comando do STF em setembro do ano passado, a ministra fez algo incomum. Manteve a relatoria de três casos: o do aborto; o do que tenta cancelar o perdão de Jair Bolsonaro ao ex-deputado Daniel Silveira; e do que queria proibir o orçamento secreto. Quando um ministro chega à Presidência, é costume que os casos em seu gabinete sejam redistribuídos a um colega. Motivo: ele tem afazeres institucionais e administrativos que tomam tempo do trabalho de “instrução”.

Qual teria sido o motivo de Rosa ter segurado consigo o caso do aborto? Uma pista é o desfecho de outro processo guardado por ela, o do orçamento secreto. 

A juíza era contra o orçamento secreto. Em novembro de 2021, tinha dado uma liminar proibindo-o. Colegas de STF acharam que era interferência demais sobreoutro poder, e Rosa recuou – mas não mudou de ideia . Como presidente da Corte, colocou o caso em julgamento no plenário em dezembro de 2022 e, com um voto duro, puxou a proibição por 6 a 5.

Para ser julgado no STF, um processo depende de duas pessoas. Do relator, que precisa ter concluído a “instrução”, e do presidente, que é quem faz a pauta do tribunal. No caso do aborto, Rosa está nas duas posições. 

O terreno para julgar a descriminalização do aborto em plenário parece pavimentado. Em agosto de 2018, Rosa Weber promoveu várias audiências públicas sobre a ação. De 502 pessoas ou entidades que se inscreveram para as audiências, Rosa selecionou 52 para participar. Manifestaram-se 56 pessoas, representando o campo do Direito, o campo religioso, a área da saúde e a área das ciências. Foram 36 a favor de descriminalizar o aborto (69%) e 16, contra (31%). Essas estatísticas constam de um estudo de das pesquisadoras Denise Mantovani e Maria Lúcia Rodrigues de Freitas Moritz, ambas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Além da pré-seleção dos participantes das audiências públicas, há um processo sobre aborto no STF que mostra a posição de Rosa. E aqui surge Luís Roberto Barroso, que assumirá o comando do Supremo em outubro deste ano, quando Rosa completar 75 anos e pendurar a toga.

Em 2013, o Ministério Público do Rio denunciou à Justiça umas pessoas envolvidas com uma clínica de aborto. Entre os acusados, estavam a enfermeira Rosemere Aparecida Ferreira, a responsável pelo estabelecimento; o marido dela, Edilson dos Santos, policial que fazia a segurança do local; e o médico Carlos Eduardo de Souza Pinto, responsável pelo procedimento. O trio ganhou notoriedade em 2014, após a morte de uma jovem de 27 anos, Jandira Magdalena dos Santos.

O habeas corpus foi julgado em 2016 por uma das duas turmas de cinco juízes do Supremo. Estavam presentes Rosa, Mello, Barroso, Edson Fachin e Luiz Fux. Barroso abriu uma divergência. Enquanto Mello, o relator, queria discutir apenas a soltura dos acusados, Barroso entendeu ser necessário ir além e fixar uma tese geral sobre interrupção de gravidez. Se o aborto fosse feito nos três primeiros meses de gestação, defendeu ele, não deveria ser consideradacrime. 

Na ocasião, Barroso detalhou duas visões sobre o início da vida. Uma entende que a vida começa na concepção. A outra, que é na “na formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência”, o que geralmente se dá após o terceiro mês da gestação. Ele se inclui na segunda corrente. O prazo de três meses é comum em leis que liberem o aborto em outros países.

Rosa seguiu Barroso. “A ingerência estatal no primeiro trimestre da gestação deve militar em favor da proteção da mulher”, afirmou ela na ocasião. Para a juíza, “o espaço da moral privada não pode ser confundido com a esfera da responsabilidade pública, e principalmente com o espaço de atuação do Estado de Direito, na restrição dos direitos individuais da pessoa”. 

Ainda segundo a ministra, o Legislativo [o Congresso] não avançou nessa agenda, “de forma a bloquear a discussão pública”. 

A lei brasileira admite aborto só em duas situações: se a gravidez resulta de estupro ou se representa risco de morte para a mãe. Em 2012, o Supremo liberou uma terceira: quando o feto é anencéfalo, ou seja, sem cérebro. Na época, dois ministros foram contra, Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski – que se sente católico demais para autorizar o aborto e se aposenta em maio, por idade.

A propósito de catolicismo: naquele julgamento de 2016 sobre o habeas corpus do trio de acusados no Rio, Fachin acompanhou Barroso e Rosa. E citou CartaCapital, ao comentar que a revista havia noticiado naquela semana que em uma carta apostólica, a “Misericordia et Misera”, o papa Francisco tinha dito que os padres poderiam perdoar mulheres e profissionais da saúde que tivessem participado de alguma interrupção de gravidez. 

Com os votos de Barroso, Rosa e Fachin, os acusados no Rio foram soltos. E surgiu dentro do Judiciário um precedente para não criminalizar o aborto. Os três juízes se alternarão no comando do Supremo até 2027, o que aponta para uma “janela” pró-discriminalização daqui a até lá. Rosa será presidente até outubro. Barroso a sucederá, por dois anos no cargo (até outubro de 2025). Fachin será o comandante seguinte, até outubro de 2027. 

Se Rosa puser a ação do PSOL em julgamento antes de se aposentar, em outubro, caberá a ela dar o primeiro voto, na condição de relatora. E mesmo que o julgamento seja interrompido por um pedido de vistas e a juíza deixe a corte antes de uma decisão final dos colegas, o voto dela será contado. E, no mínimo, entrará para a História.

Relatores. Rosa Weber deve pautar o aborto antes de outubro. Edson Fachin deu voz ao movimento negro em caso de racismo policial – Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR

Se a magistrada não puser a ação em pauta até se aposentar (ela já divulgou o calendário do primeiro semestre e o caso não consta da programação), quem herdará o processo, na qualidade de relator, será um juiz indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa pode ser outra explicação para Rosa ter mantido o processo consigo, ao assumir a Presidência do tribunal. 

Se a ministra tivesse aceitado a redistribuição da ação, todos os demais dez togados participariam do sorteio. Inclusive os dois indicados por Jair Bolsonaro: o “terrivelmente evangélico” André Mendonça e Nunes Marques. Se um deles recebesse o caso, poderia jamais concluir a “instrução”, e não haveria julgamento enquanto estivesse na corte. Ambos vão se aposentar somente em 2047.

Uma mudança no regimento do Supremo feita em dezembro impede que os dois juízes (ou qualquer outro, em qualquer processo) possam ‘sentar’ indefinidamente sobre um processo do qual não são relatores. Essa mudança consistiu em fixar prazo de 90 dias para um ministro examinar um processo, quando pedir vistas desse mesmo processo, após o início de um julgamento.

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