Justiça
Devagar com o andor
Familiares e amigos de Marielle temem que vazamento de delação atrapalhe a investigação da PF


Após seis anos de espera, incerteza e angústia, a última coisa que familiares e amigos de Marielle Franco e Anderson Gomes desejam é o açodamento ou uso político das investigações da Polícia Federal, de forma a atrapalhar a elucidação completa do duplo assassinato que chocou o Brasil. A pergunta tantas vezes repetida – “quem mandou matar Marielle?” – parece perto de uma resposta desde que vazou a informação de que o sicário Ronnie Lessa, apontado por um comparsa como o autor dos disparos que vitimaram a vereadora e seu motorista, revelou o mandante do crime em delação premiada negociada no fim do ano passado. O depoimento do ex-policial militar foi enviado para a homologação do Superior Tribunal de Justiça, o que fez crescerem as apostas no ex-deputado Domingos Brazão, hoje conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, único citado nas investigações com direito a foro privilegiado.
Brazão já havia sido apontado como suspeito dias após o crime e, em 2019, chegou a ser denunciado pela Procuradoria-Geral da República por obstrução da Justiça, acusado de plantar um depoimento falso. A denúncia foi rejeitada pela Justiça e, algum tempo depois, a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio retiraram o conselheiro do rol de suspeitos. A PF assumiu o caso em fevereiro do ano passado e logo o nome de Brazão voltou à tona, com a delação premiada do ex-policial militar Élcio de Queiroz, que confessou ter conduzido o automóvel usado na emboscada a Marielle. Com o encaixe de algumas pedras do quebra-cabeça, veículos de comunicação cravaram o nome de Brazão como mandante da morte de Marielle, mas a especulação atrapalha as investigações. Até porque a delação de Lessa só se tornou passível de homologação pelo STJ na quinta-feira 1º, com o fim do recesso do Judiciário, e ainda não se conhece o seu teor. O caso está nas mãos do ministro Raul Araújo.
As conjecturas só aumentaram após a revelação de que Lessa negocia uma delação. Comenta-se nos bastidores da investigação que não será surpresa se, nos próximos dias, surgir o nome de ao menos mais um figurão, também com direito a foro privilegiado, como mandante do crime. Outra especulação diz respeito à apresentação de denúncia contra um grupo de policiais, que deliberadamente teriam atrasado ou atrapalhado as investigações até o caso passar à alçada federal. Vale recordar que, ao longo de cinco anos, além das numerosas tentativas de se encontrar um bode expiatório, houve cinco trocas no comando da Delegacia de Homicídios da Capital. Já no Ministério Público do Rio, as promotoras Simone Sibílio e Letícia Emile, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) e à frente do caso, pediram afastamento, em 2021, após alegarem “pressões” até hoje não esclarecidas.
Há muitas pontas soltas, a começar pela motivação do assassinato. A mídia nutre-se de especulações
Para a jornalista Fernanda Chaves, sobrevivente do atentado, a pergunta sobre quem mandou matar Marielle e Anderson “com certeza ainda não foi respondida”. Ela diz que é preciso muita cautela com relação às especulações: “Como jornalista, além de sobrevivente desse crime, e com todo respeito aos colegas, acho que houve um atabalhoamento na repercussão de uma delação que nem sequer foi homologada, uma avalanche de informações restritas à investigação. Atrapalhou. Sigo à espera de respostas oficiais, por parte das autoridades e do Estado, e acredito que elas virão”.
Viúva de Marielle, a vereadora carioca Monica Benicio, do PSOL, afirma que “responsabilidade neste momento é algo imprescindível e deve ser um compromisso de toda sociedade e da imprensa”. A parlamentar diz que especulações são “extremamente prejudiciais” antes de se chegar à resposta definitiva sobre quem mandou matar Marielle e por qual motivo: “Há seis anos eu luto diariamente para que o Brasil tenha essa resposta, mas não pode ser qualquer resposta. Precisa ser comprovado”.
Entre as pessoas próximas a Marielle que ocupam cargos nos primeiros escalões do governo Lula, o pedido é também por cautela. Irmã da vereadora assassinada, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, evitou comentar a possível identificação de Brazão: “Nossa família não descansará enquanto não houver justiça. Aguardamos os resultados oficiais das investigações e estamos cientes do comprometimento das autoridades para a resolução do caso”, disse. O mesmo caminho foi trilhado pelo ex-deputado estadual e atual presidente da Embratur, Marcelo Freixo: “Quero reforçar a confiança e elogiar o trabalho da Polícia Federal”, afirmou em nota, antes de ponderar: “Quem fala sobre a investigação é quem investiga” – no caso, a própria PF. “Qualquer coisa diferente disso pode prejudicar o resultado da apuração. É desejo de todos nós descobrirmos de uma vez por todas quem mandou matar Marielle e qual a motivação do crime”.
Lessa. O sicário conhece as engrenagens das milícias – Imagem: Redes sociais
Mesmo com a indicação do suposto mandante, ainda resta nebulosa a verdadeira motivação do crime. Segundo fontes da PF, a principal linha investigativa hoje aponta para as disputas fundiárias na Zona Oeste do Rio, uma vez que Marielle defendia a regularização de casas habitadas por pessoas de baixa renda, contrariando os interesses das milícias que atuam na região e têm, na especulação imobiliária ilegal, uma de suas principais fontes de receita. Um dos dez Projetos de Lei de Marielle aprovados na Câmara Municipal do Rio obriga a prefeitura a oferecer assistência técnica gratuita para a construção de moradias de interesse social. A lei, até hoje na gaveta por falta de orçamento, anulou outra de autoria do vereador Chiquinho Brazão, irmão de Domingos, que autoriza o parcelamento do solo para a edificação de unidades habitacionais multifamiliares.
Mais uma vez, é preciso tomar cuidado com as peças aparentes do quebra-cabeça. Fernanda Chaves afirma confiar nas investigações, mas tem dúvida quanto à hipótese da disputa fundiária: “Marielle não era porta-voz dessa pauta. Obviamente, ela se posicionava a favor da definição de áreas de interesse social por lá, mas, definitivamente, esse não era um tema central de seu mandato”. A jornalista ressalta que vários outros vereadores do campo progressista trabalham na questão da regularização fundiária, alguns com mais atuação local do que Marielle: “A meu ver, isso por si só não seria a motivação central. Mas, mesmo eu sendo uma pessoa próxima a ela, isso também é especulação. As autoridades é que devem responder”.
Negociada no fim do ano passado, a delação depende do aval do STJ
Para que o caso seja de fato elucidado, é preciso saber também quais foram as autoridades e policiais que atrapalharam as investigações. As pontas soltas são muitas, como o fato de o currículo da promotora Sibílio ter sido achado entre o material recolhido pela PF na investigação sobre o uso da Abin para espionar adversários e desafetos da família Bolsonaro. Seria interessante saber se houve alguma interferência do ex-delegado Alexandre Ramagem. E também esclarecer um episódio ocorrido em 2022, durante uma reunião dos familiares das vítimas com o governador Cláudio Castro, relatado por Monica Benicio: “Ele nos apresenta como seu homem de confiança e principal responsável pelo acompanhamento das apurações o então chefe da Polícia Civil, Allan Turnowski. Meses depois, Turnowski é preso. Entre os materiais apreendidos figura um áudio no qual ele zomba do assassinato de Marielle”. Esse tipo de fato, conclui a vereadora, “evidencia como o caso foi tratado com desinteresse por alguns e como pode ter havido interferência para não chegarmos à sua elucidação”.
Enquanto as conclusões das investigações não são apresentadas, Domingos Brazão reafirma sua inocência: “Depois das famílias de Marielle e Anderson, posso garantir que os maiores interessados na elucidação do caso somos eu e minha família. Tenho fé de que, se houve mesmo essa delação, graças a Deus, tudo isso termine logo”, disse o conselheiro do TCE ao jornal O Globo. Ele faz uma promessa: “Vou buscar na Justiça as reparações de todo dano à minha imagem e perturbação à minha família”. •
Publicado na edição n° 1296 de CartaCapital, em 07 de fevereiro de 2024.
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