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De volta às lonas

O MST retoma as ocupações de terra para pressionar o governo Lula a destravar a reforma agrária

Memória. A raivosa reação dos proprietários rurais baianos desperta a triste lembrança do massacre de Eldorado dos Carajás, que resultou na morte de 21 agricultores em 1996 – Imagem: João Roberto Ripper e Paulinho e Daniel Viola/MST-BA
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“Toca fogo nesses vagabundos!” A frase, repetida aos gritos, pode ser ouvida em um vídeo gravado na sexta-feira 3 durante a ação de um grupo de proprietários de terra para expulsar integrantes do MST, que dois dias antes haviam ocupado parte da Fazenda Limoeiro, um belo naco de 1,7 mil hectares de terra improdutiva localizado no município baiano de Jacobina. Felizmente, o ânimo incendiário dos fazendeiros vitimou somente colchões e roupas arrancados do acampamento dos sem-terra, mas a violência da desocupação, com direito a chutes, socos, pedradas e pauladas, fez o Brasil relembrar momentos terríveis, como o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em abril de 1996, quando 21 trabalhadores foram mortos pela Polícia Militar durante uma ação de reintegração de posse no Pará. Desta vez, a polícia também não economizou nas balas (de borracha), em uma cena que não deixa dúvidas: a luta pela reforma agrária voltou!

Bolsonaro permitiu um derrame de armas no campo para intimidar os militantes sem-terra

Em pleno ano da graça de 2023, a questão do direito à terra deveria estar superada pelo Brasil, mas a guerra sem fim travada pelos agricultores e movimentos sociais para dar destinação social e produtiva a latifúndios ociosos ou subaproveitados tem profundas raízes fincadas em um país arcaico que insiste em não ir embora. Nos quatro anos de governo Bolsonaro, que proporcionou um derrame de armas no meio rural, essa guerra arrefeceu, seja por estratégia ou pela prudência do MST e de outros movimentos de trabalhadores sem-terra. Com a volta de Lula à Presidência e a recriação do Ministério do Desenvolvimento Agrário, a perspectiva é de retomada da agenda de lutas no campo, mas tanto o governo quanto o MST sabem que todo cuidado é pouco. O Hino Nacional, as vestes de “patriotas” e os gritos contra o PT observados no conflito em Jacobina revelam muito de um país ainda ferido pela ascensão da extrema-direita.

No que depender do atual governo, a desapropriação de terras e a legalização dos assentamentos voltarão a ocorrer à luz do dia. “Faz sete anos que o governo federal não desapropria 1 centímetro de terra. Por essa razão, há uma agenda represada na sociedade. Havia muitas propriedades prontas para ser desapropriadas, mas o governo anterior paralisou todos os processos”, diz o ministro Paulo Teixeira, à frente do MDA. Quanto ao relacionamento com os movimentos, o objetivo é buscar o entendimento e evitar atritos: “Há muitos trabalhadores rurais acampados em beira de estrada, que estão há muitos anos vivendo em situação de grande necessidade. Por isso, vamos retomar a desapropriação de terras que não cumpram a sua função social e vamos dialogar com os movimentos. Precisamos superar esse represamento havido em sete anos e tentar acelerar a arrecadação de terras no Brasil”, promete o ministro.

O MST deu o primeiro passo no início de março. Ocupou, além da Fazenda Limoeiro, outras três fazendas com tamanhos entre 1,7 mil e 2 mil hectares nos municípios de Caravelas, Teixeira de Freitas e Mucuri, no sul da Bahia. As terras pertencem à produtora de celulose Suzano, uma gigante do setor, e são utilizadas para a monocultura de eucalipto, um desastre ecológico na visão dos ambientalistas. “Trata-se de terras que poderiam ser dedicadas à agricultura ecológica e familiar. Com a paralisação das desapropriações, as pessoas estão na expectativa. Muitos conflitos vão pipocar no governo Lula. Infelizmente, vai estourar no MDA, na Presidência da República, na Secretaria de Governo”, prevê Evanildo Costa, da direção nacional do MST.

A Suzano Celulose tornou-se alvo do MST por causa dos impactos ambientais da monocultura de eucalipto na Bahia

O movimento alega ter feito um acordo há cerca de dez anos com a Suzano para a ocupação das áreas, mas a empresa o teria descumprido. No papel pretendido de mediador, o MDA reuniu, na quarta-feira 8, em Brasília, dirigentes da ­Suzano e do MST, além de representantes do governo da Bahia. “Pedimos ao MST que se retirasse da área. A reunião serviu para retomar o diálogo interrompido há anos na Bahia”, diz Teixeira. Quando anunciou a reunião, o ministro prometeu trabalhar pelo entendimento: “Vamos resolver esse primeiro fato e construir um diálogo, para que tenha um programa de reforma agrária no Brasil e ele aconteça de maneira tranquila, sem que haja conflito”.

Mesmo atuando dentro da legalidade, a Suzano tornou-se alvo dos sem-terra devido às consequências socioambientais da monocultura de eucalipto. O “deserto verde”, como foi batizado pelos ambientalistas, trouxe elevada perda de biodiversidade e esgotamento dos recursos hídricos em uma área outrora rica da Mata Atlântica, além de provocar a expulsão dos pequenos agricultores que, muitas vezes, não têm alternativa a não ser engrossar o contingente de trabalhadores subempregados e sem moradia nas cidades maiores. “Deserto verde designa uma área verde, mas que não tem biodiversidade. Não há outras plantas, os animais não estão mais presentes. Este é um conceito que se adotou para definir as áreas de monocultura de eucalipto, uma área sem vida, em contraposição à Mata Atlântica, que tem uma biodiversidade tão exuberante”, compara Renato Cunha, do Grupo Ambientalista da Bahia, o Gambá.

Demanda garantida. O Programa de Aquisição de Alimentos voltará a beneficiar agricultores familiares e assentados, diz o ministro Paulo Teixeira – Imagem: Maurício Tonetto/GOVRS e Alex Garcia/MST

Cunha ressalta que a degradação ambiental só aumentou desde que as gigantes da celulose começaram a se instalar na região, a partir dos anos 1980. “Muitas florestas nativas foram suprimidas e substituídas pelo eucalipto. Ao longo desse período, perderam-se muitas espécies da flora e da fauna nesta área do extremo sul da Bahia, que vai desde a bacia do Rio Jequitinhonha até o limite do Espírito Santo.” A escassez de água é outro problema. “Há um esgotamento do lençol freático porque o eucalipto exige muita água. As fábricas também causam poluição das águas com o processo de cloração da celulose, que usa muitos produtos químicos”, diz. O ambientalista propõe um novo rumo: “Há que se adotar outro tipo de intervenção nesses territórios para que as monoculturas não sejam implementadas e desenvolver melhor os remanescentes de Mata Atlântica, com a floresta em pé, para garantir os serviços ambientais”.

Para o MST, recuperar o acordo com a Suzano é mais um êxito desde a queda de braço para ter o Incra novamente como aliado após as trevas bolsonaristas. Com a garantia de que o órgão ficaria sob o guarda-chuva do MDA e depois de algumas idas e vindas na escolha de seu presidente, a preferência acabou recaindo no petista César Aldrighi, nome visto com simpatia pelos movimentos campesinos. Não faltarão tarefas. “Precisamos de imediato trabalhar por uma recomposição do orçamento que permita a retomada das políticas de crédito, políticas quilombolas e também de aquisição de terras para reforma agrária”, afirma o novo comandante do Incra. Além da pauta orçamentária, ­Aldrighi quer acelerar o aproveitamento de terras públicas para fins de reforma agrária, entre outras medidas. “O objetivo é a obtenção de imóveis rurais enquadrados no artigo 243 da Constituição, expropriados por cultivos ilegais ou pela exploração do trabalho análogo à escravidão. Também estamos dialogando com outros entes federativos sobre a utilização das terras de grandes devedores da União para o assentamento de famílias.”

“O Lula voltou, o MDA voltou e o Incra voltou”, resume Paulo Teixeira. O ministro diz que o Incra vai atender a agricultura familiar no que diz respeito ao acesso à terra e fortalecer os assentamentos da reforma agrária para que possam se modernizar, comprar máquinas, estruturar uma agroindústria e vender seus produtos a preços adequados. De outro lado, o órgão fará um trabalho de reflorestamento da Amazônia em parceria com pequenos agricultores: “Vamos fazer com que a agricultura familiar participe desse momento de transição ecológica do ­País. Por uma agricultura de baixo carbono, agroecológica e regenerativa que substitua os venenos pelos bio-insumos”.

“Vão surgir conflitos e o governo precisa saber lidar com isso”, diz Costa, da direção nacional do MST

A bem-sucedida produção de uma grande variedade de alimentos nos assentamentos em diversos pontos do Brasil coloca o MST como potencial parceiro do governo no novo Programa de Aquisição de Alimentos, considerado fundamental para reverter a insegurança alimentar de 33 milhões de brasileiros. O MDA divulgará os detalhes do relançamento do programa nas próximas semanas. “Pretendemos fortalecer a economia da agricultura familiar. O PAA, através da compra direta, é um poderoso instrumento para esse fortalecimento”, diz Teixeira. O governo federal comprará os produtos a preço de mercado para atender as famílias em vulnerabilidade. “O alimento será comprado da agricultura familiar e distribuído às famílias em situação de insegurança alimentar. São 500 milhões de reais”, diz o ministro.

Alívio. A nomeação do petista César Aldrighi para o comando do Incra é vista com simpatia pelos sem-terra – Imagem: Pedro França/Ag.Senado

Para alegria dos movimentos sociais do campo, o comando da gestão da produção alimentar e da regulação de estoques no País também ficará sob a alçada do MDA, que venceu disputa com o Ministério da Agricultura. Os petistas ­Edegar Pretto e Jamil Yatin assumiram, respectivamente, as presidências da Conab e da Ceagesp, órgãos considerados fundamentais no tratamento das questões agropecuárias. “Vamos restabelecer o papel da Conab no combate à fome. Formaremos um estoque público para estimular a produção de alimentos e estabilizar o preço final da comida”, diz Pretto. Os aliados voltaram ao governo, mas o MST deverá dar continuidade à sua agenda de ocupações, alerta Evanildo Costa. “Há um acúmulo de demandas, as pessoas estão esperando há muito tempo e querem uma alternativa. A espera tem sido grande, o sofrimento também tem sido grande. Então, vão surgir muitos conflitos e os membros do governo precisam saber como vão lidar com esta situação.” •


O ETERNO “EX”

Expulso do movimento há 16 anos, José Rainha continua a ser associado ao MST pela mídia

“Homem-problema”. Rainha voltou a ser preso, desta vez sob a acusação de extorquir fazendeiros – Imagem: Marcelo Camargo/ABR

O MST voltou às manchetes? José Rainha também. Embora o dirigente da Frente Nacional de Lutas Campo e Cidade não faça parte do MST há 16 anos – foi afastado pela direção nacional do movimento em 2007 – nove entre dez veículos de comunicação do Brasil associaram os dois nomes em suas manchetes depois que Rainha voltou a ser preso, coincidência ou não, no dia seguinte ao início das ocupações de fazendas pelos trabalhadores sem-terra na Bahia.

Rainha e Luciano de Lima, também dirigente da FNL, foram presos pela Polícia Civil no sábado 4, sob a acusação de extorquir pelo menos seis proprietários rurais na região do Pontal do Paranapanema, no oeste paulista. Na operação foram apreendidos dois fuzis e duas espingardas que, segundo a polícia, pertenceriam a Rainha.

O líder sem-terra alcançou fama nacional em 1985, durante a histórica ocupação da Fazenda Georgina, localizada no município capixaba de São Mateus, que culminou com a vitória do MST e o assentamento das famílias. Com o passar dos anos, a aura de líder foi substituída pela de “homem-problema” para o MST.

Condenado injustamente – e mais tarde absolvido – pelo assassinato de duas pessoas em um conflito de terra em 1989, caso com repercussão internacional, Rainha jamais saiu do radar da Justiça. Em 2006, foi condenado por porte ilegal de arma. Em 2015, mais uma condenação, desta vez por estelionato, extorsão e formação de quadrilha. A sentença ainda está em fase de apelação, mas a nova prisão efetuada esta semana pode complicar ainda mais a situação de José Rainha.

Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De volta às lonas’

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