Mundo
Cruzada global
Lula retoma a liderança do Brasil na América Latina, enquanto planeja uma aliança internacional para enfrentar a extrema-direita


Na véspera da posse, em 1° de janeiro, Lula conversou com o ex-primeiro-ministro grego Alexis Tsipras, político nascido no ano em que o petista assumiu o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em 1974, e hoje chefe de uma coalização partidária de esquerda em seu país. Os dois dividiram uma perplexidade. Aqui e na Grécia a extrema-direita ameaça a democracia com pregação idêntica: pátria, família, religião, costumes.
Tsipras governou de 2015 a 2019 e, no primeiro ano, viveu um drama. Fraquejou diante da promessa eleitoral de sair da Zona do Euro, a moeda única europeia, caso os líderes do bloco se negassem a aliviar dívidas gregas, como se negaram. Yanis Varoufakis, então ministro da Economia e uma das estrelas do governo grego, debandou. Em 2018, Varoufakis uniu-se ao norte-americano Bernie Sanders e ao atual ministro brasileiro da Fazenda, Fernando Haddad, para lançar uma aliança internacional progressista contra a extrema-direita mundial.
A ideia patina desde então e Lula deseja levar adiante algo similar, em seu retorno à cena geopolítica. O petista entende que a extrema-direita é um movimento global que requer combate idem. Está disposto a organizar uma reunião, com líderes políticos mundiais, para traçar planos a respeito. Bem que o norte-americano Steve Bannon, guru do movimento internacional, dizia em agosto de 2021, em um evento de conservadores nos Estados Unidos: Lula é “o esquerdista mais perigoso do mundo”. A recente viagem do petista à Argentina e ao Uruguai, para, entre outras coisas, recolocar o Brasil na Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, a Celac, é outra prova do faro aguçado de Bannon. “Somos uma região que repudia o extremismo, o terrorismo e a violência política. A maior parte desses desafios, como sabemos, é de natureza global e exige respostas coletivas”, declarou o presidente brasileiro durante a reunião. Em 2020, sob Jair Bolsonaro, o Brasil havia abandonado o bloco de 33 países.
Colaboradores diplomáticos do presidente estudarão se a melhor forma de tirar do papel a aliança progressista é via governos ou partidos. Lula pretende discutir essa aliança na segunda-feira 30, em Brasília, com o primeiro-ministro da Alemanha, Olaf Scholz, do SPD, partido social-democrata, parceiro antigo do PT. Na véspera da posse, Lula falou também com o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, e abordou o risco representado pela extrema-direita. Dias antes, a polícia alemã desbaratara uma rede extremista, composta de simpatizantes do partido neonazista Alternativa para a Alemanha, que planejava deixar o país às escuras, invadir o Parlamento e tomar o poder. Lembra o nosso 8 de janeiro, certo? A propósito, em 2020, a Grécia carimbou a sigla nazifascista local, a Aurora Dourada, de grupo criminoso e colocou-a na ilegalidade.
O avanço extremista também é preocupação dos EUA e da Europa
Na cruzada global contra a extrema-direita, o aliado potencial mais importante de Lula é Joe Biden, por motivos óbvios. Os Estados Unidos são a maior e mais influente potência. O grande fantasma para Biden e os democratas, na eleição de 2024, é Donald Trump, que tem conseguido manter o apelo próprio e o radicalismo de alas do Partido Republicano. O ibope do governo Biden, na casa de 40%, faz da volta do trumpismo uma hipótese real. Seria um baque para Lula, em meio de mandato, e veria piscar de novo o farol do bolsonarismo. No PT, há quem desconfie que, se Trump estivesse no poder, a tentativa de golpe de 8 de janeiro teria sido exitosa, pois militares nativos se sentiriam mais encorajados. O governo Biden havia feito alertas públicos de que o resultado das urnas no Brasil deveria ser respeitado. Curiosidade: os EUA de Biden e o Brasil de Lula terão embaixadoras mulheres na casa do outro. Elizabeth Bagley aqui, Maria Luiza Viotti lá.
Lula encontrará Biden em Washington em 10 de fevereiro. Quer saber como os democratas esperam ganhar a eleição e o que ele e o atual presidente dos EUA podem fazer pela democracia no mundo. O norte-americano, de 80 anos, anunciará em breve se concorrerá à reeleição. O retorno de Trump seria, na visão de Lula, uma anormalidade. O petista impressionou-se com uma pesquisa de fevereiro de 2022, feita nos EUA, reveladora da polarização por lá. Em 1960, apenas 4% dos eleitores democratas rejeitavam a ideia de um filho casar-se com um republicano. A rejeição no sentido oposto era igual. Em 2022, os índices saltaram para 45% e 35%, respectivamente. E no Brasil? Segundo um estudo de outubro da Quaest, 41% dos bolsonaristas ficariam infelizes se o filho se casasse com um petista. No sentido inverso, 33%.
Uma recandidatura de Trump não é certa, há rivais no Partido Republicano, entre eles o governador da Flórida, Ron de Santis, outro radical. Foi na Flórida que Bolsonaro se refugiou em 30 de dezembro. Em Miami, a capital do estado, a Apex, órgão brasileiro de apoio a negócios, tem um escritório chefiado desde 2019 por um general, Mauro Lourena Cid, amigo do capitão. Nos órgãos federais de inteligência, suspeita-se que o general seja o elo de uma “conexão Miami” de financiamento do bolsonarismo. O general é pai de um tenente-coronel que foi ajudante de ordens de Bolsonaro na Presidência, Mauro Barbosa Cid, responsável por administrar o cartão de crédito corporativo do capitão. O ajudante é uma das causas da degola do general Júlio Cesar de Arruda do comando do Exército. Sua nomeação para chefiar um batalhão de elite a 200 quilômetros do Palácio do Planalto acaba de ser suspensa.
Arestas. Lula vê em Biden um aliado contra o extremismo. Em Jinping, parceiro comercial estratégico. Segundo Bannon, o brasileiro é “o mais perigoso esquerdista” – Imagem: Gage Skidmore e Saul Loeb/AFP
Ao lado do presidente argentino, Alberto Fernández, em Buenos Aires, Lula falou pela primeira vez em público sobre a troca no comando do Exército. Os dois mandatários trocaram sorrisos e gentilezas, salientaram a amizade pessoal, numa tentativa de refundar a relação entre os países após as (palavra de Lula) “grosserias” de Bolsonaro com Fernández. Este pretende disputar a reeleição em outubro, mas sua situação é difícil. O custo de vida mina suas chances. A inflação argentina no ano passado foi de 94% (aqui, de 5%), uma das razões de o governo ter desaprovação de 70%. Outro ônus para Fernández: sua vice, Cristina Kirchner, foi condenada em primeira instância, em dezembro, a seis anos de prisão e à perda dos direitos políticos, por danos ao Erário e gestão fraudulenta no passado.
A direita tradicional não inspira, porém, o eleitorado, pois o desastre econômico de Mauricio Macri foi um dos fatores que elegeram Fernández. O bolsonarismo argentino, encarnado no deputado federal Javier Milei, economista de 52 anos, tem chance? Após a vitória de Lula, Milei afirmou que não iria felicitá-lo, pois o petista tem um discurso “violentamente socialista” e “vai destruir” o Brasil. “Espero que a Argentina não permita que a extrema-direita ganhe as eleições”, disse Lula ao lado de Fernández, na Casa Rosada. “A extrema-direita não deu certo em nenhum país que governou”. Para o brasileiro, só o discurso pró-democracia não basta contra o extremismo global, é preciso melhorar a vida dos cidadãos, lutar contra a fome, a desigualdade de renda, o feminicídio, o assassinato de negros. O colega argentino entende que a pandemia evidenciou a “injustiça do sistema capitalista e do sistema financeiro mundial”. E que o livro Missão Economia, da italiana Mariana Mazzucato, que terminou de ler há alguns dias, é um bom guia sobre o que fazer.
O que Brasil e Argentina farão de concreto, por ora, é montar um fundo financeiro de cada lado para facilitar o comércio mútuo. E, com o mesmo objetivo, examinar a ideia de uma espécie de moeda comum. A portas fechadas, Fernández contou a Lula ter visitado dias atrás as obras de um gasoduto que deve inaugurar em junho. A Argentina possui a segunda maior reserva de gás de xisto do mundo, a jazida de Vaca Muerta, e sonha em vender o produto ao Brasil. Para isso é necessário construir uma rede paralela ao gasoduto e os hermanos desejam que o BNDES financie as firmas brasileiras que forneceriam tubos à obra, cerca de 800 milhões de dólares. Lula topa. Paulo Guedes, ministro da Economia de Bolsonaro, também topava.
Lula quer concluir o acordo Mercosul-União Europeia e negociar em bloco com a China
Na sequência, Lula foi a Montevidéu para encontrar o presidente Luis Lacalle Pou. O apoio brasileiro a obras de interesse do Uruguai também fez parte da conversa. É o caso de uma dragagem na hidrovia que atravessa os países e de uma ponte binacional sobre o Rio Jaguarão. A boa vontade de Lula busca demover Pou de negociar um acordo de livre-comércio com a China. O pacto decretaria a morte no Mercosul, desprezado por Bolsonaro e que Lula deseja fortalecer, inclusive com a entrada da Bolívia, após anos de negociação.
O petista diz ser favorável a um acordo comercial do Mercosul com a China, cujo presidente, Xi Jinping, visitará em março, em Pequim. Os chineses, segundo um colaborador diplomático lulista, comem pelas beiradas na América do Sul, daí a necessidade de “sul-americanizar a relação”. Antes disso, há outro acordo para tirar do papel. “É urgente e necessário que o Mercosul faça o acordo com a União Europeia”, afirmou Lula ao lado de Pou. O petista nunca havia falado nesses termos. Na eleição, deixara no ar se interessava ao Brasil o acordo firmado em 2019 e à espera de ratificação. O problema, comenta um diplomata, não é ter um acordo com os europeus, mas qual acordo. Nos termos firmados, o Mercosul faria concessões demais na área industrial e ganharia de menos na agrícola. O agronegócio representa só 8% do PIB brasileiro e 9% dos 100 milhões de empregos. Na indústria, o salário médio é de 2,6 mil reais e no campo, de 1,8 mil.
Paralelamente aos desafios explícitos no front exterior, Lula acompanha um certo mal-estar em alas do Itamaraty. Uma recém-criada Associação das Mulheres Diplomatas do Brasil reivindicava a embaixada de Buenos Aires para uma das suas, mas o escolhido foi um homem, Júlio Biteli, chefe de gabinete do chanceler Mauro Vieira, quando este ocupava o mesmo cargo no governo de Dilma Rousseff. Seu escolhido para embaixador do Brasil na ONU é outro motivo de burburinhos. Sérgio Danese era secretário-geral do Itamaraty durante o processo de impeachment de Dilma e aderiu ao governo Temer, por quem foi nomeado para a embaixada em Buenos Aires, uma das duas mais importantes do Brasil. Lá, fez a ponte entre Bolsonaro e Macri. Olho nele, Lula. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1244 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Cruzada global”
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