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Lula retoma a liderança do Brasil na América Latina, enquanto planeja uma aliança internacional para enfrentar a extrema-direita

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Ribalta. Com Lula, o Brasil retoma a cadeira na comunidade ­latino-americana. Scholz, o chanceler alemão, visitará o Brasil nos próximos dias - Imagem: Ricardo Stuckert/PR e Presidência da Letônia
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Na véspera da posse, em 1° de janeiro, Lula conversou com o ex-primeiro-ministro grego Alexis Tsipras, político nascido no ano em que o petista assumiu o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em 1974, e hoje chefe de uma coalização partidária de esquerda em seu país. Os dois dividiram uma perplexidade. Aqui e na Grécia a extrema-direita ameaça a democracia com pregação idêntica: pátria, família, religião, costumes.

Tsipras governou de 2015 a 2019 e, no primeiro ano, viveu um drama. Fraquejou diante da promessa eleitoral de sair da Zona do Euro, a moeda única europeia, caso os líderes do bloco se negassem a aliviar dívidas gregas, como se negaram. Yanis Varoufakis, então ministro da Economia e uma das estrelas do governo grego, debandou. Em 2018, Varoufakis uniu-se ao norte-americano Bernie ­Sanders e ao atual ministro brasileiro da Fazenda, Fernando Haddad, para lançar uma aliança internacional progressista contra a extrema-direita mundial.

A ideia patina desde então e Lula deseja levar adiante algo similar, em seu retorno à cena geopolítica. O petista entende que a extrema-direita é um movimento global que requer combate idem. Está disposto a organizar uma reunião, com líderes políticos mundiais, para traçar planos a respeito. Bem que o norte-americano Steve Bannon, guru do movimento internacional, dizia em agosto de 2021, em um evento de conservadores nos Estados Unidos: Lula é “o esquerdista mais perigoso do mundo”. A recente viagem do petista à Argentina e ao Uruguai, para, entre outras coisas, recolocar o Brasil na Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, a Celac, é outra prova do faro aguçado de Bannon. “Somos uma região que repudia o extremismo, o terrorismo e a violência política. A maior parte desses desafios, como sabemos, é de natureza global e exige respostas coletivas”, declarou o presidente brasileiro durante a reunião. Em 2020, sob Jair Bolsonaro, o Brasil havia abandonado o bloco de 33 países.

Colaboradores diplomáticos do presidente estudarão se a melhor forma de tirar do papel a aliança progressista é via governos ou partidos. Lula pretende discutir essa aliança na segunda-feira 30, em Brasília, com o primeiro-ministro da Alemanha, Olaf Scholz, do SPD, partido social-democrata, parceiro antigo do PT. Na véspera da posse, Lula falou também com o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, e abordou o risco representado pela extrema-direita. Dias antes, a polícia alemã desbaratara uma rede extremista, composta de simpatizantes do partido neonazista Alternativa para a Alemanha, que planejava deixar o ­país às escuras, invadir o Parlamento e tomar o poder. Lembra o nosso 8 de janeiro, certo? A propósito, em 2020, a Grécia carimbou a sigla nazifascista local, a ­Aurora Dourada, de grupo criminoso e colocou-a na ilegalidade.

O avanço extremista também é preocupação dos EUA e da Europa

Na cruzada global contra a extrema-direita, o aliado potencial mais importante de Lula é Joe Biden, por motivos óbvios. Os Estados Unidos são a maior e mais influente potência. O grande fantasma para Biden e os democratas, na eleição de 2024, é Donald Trump, que tem conseguido manter o apelo próprio e o radicalismo de alas do Partido Republicano. O ibope do governo Biden, na casa de 40%, faz da volta do trumpismo uma hipótese real. Seria um baque para Lula, em meio de mandato, e veria piscar de novo o farol do bolsonarismo. No PT, há quem desconfie que, se Trump estivesse no poder, a tentativa de golpe de 8 de janeiro teria sido exitosa, pois militares nativos se sentiriam mais encorajados. O governo ­Biden havia feito alertas públicos de que o resultado das urnas no Brasil deveria ser respeitado. Curiosidade: os EUA de Biden e o Brasil de Lula terão embaixadoras mulheres na casa do outro. ­Elizabeth Bagley aqui, Maria Luiza Viotti lá.

Lula encontrará Biden em ­Washington em 10 de fevereiro. Quer saber como os democratas esperam ganhar a eleição e o que ele e o atual presidente dos EUA podem fazer pela democracia no mundo. O norte-americano, de 80 anos, anunciará em breve se concorrerá à reeleição. O retorno de Trump seria, na visão de ­Lula, uma anormalidade. O petista impressionou-se com uma pesquisa de fevereiro de 2022, feita nos EUA, reveladora da polarização por lá. Em 1960, apenas 4% dos eleitores democratas rejeitavam a ideia de um filho casar-se com um republicano. A rejeição no sentido oposto era igual. Em 2022, os índices saltaram para 45% e 35%, respectivamente. E no Brasil? Segundo um estudo de outubro da Quaest, 41% dos bolsonaristas ficariam infelizes se o filho se casasse com um petista. No sentido inverso, 33%.

Uma recandidatura de Trump não é certa, há rivais no Partido Republicano, entre eles o governador da Flórida, Ron de Santis, outro radical. Foi na ­Flórida que Bolsonaro se refugiou em 30 de dezembro. Em Miami, a capital do estado, a Apex, órgão brasileiro de apoio a negócios, tem um escritório chefiado desde 2019 por um general, Mauro ­Lourena Cid, amigo do capitão. Nos órgãos federais de inteligência, suspeita-se que o general seja o elo de uma “conexão Miami” de financiamento do bolsonarismo. O general é pai de um tenente-coronel que foi ajudante de ordens de Bolsonaro na Presidência, Mauro Barbosa Cid, responsável por administrar o cartão de crédito corporativo do capitão. O ajudante é uma das causas da degola do general ­Júlio ­Cesar de Arruda do comando do Exército. Sua nomeação para chefiar um batalhão de elite a 200 quilômetros do Palácio do Planalto acaba de ser suspensa.

Arestas. Lula vê em Biden um aliado contra o extremismo. Em Jinping, parceiro comercial estratégico. Segundo Bannon, o brasileiro é “o mais perigoso esquerdista” – Imagem: Gage Skidmore e Saul Loeb/AFP

Ao lado do presidente argentino, ­Alberto Fernández, em Buenos Aires, Lula falou pela primeira vez em público sobre a troca no comando do Exército. Os dois mandatários trocaram sorrisos e gentilezas, salientaram a amizade pessoal, numa tentativa de refundar a relação entre os países após as (palavra de Lula) “grosserias” de Bolsonaro com Fernández. Este pretende disputar a reeleição em outubro, mas sua situação é difícil. O custo de vida mina suas chances. A inflação argentina no ano passado foi de 94% (aqui, de 5%), uma das razões de o governo ter desaprovação de 70%. Outro ônus para Fernández: sua vice, Cristina Kirchner, foi condenada em primeira instância, em dezembro, a seis anos de prisão e à perda dos direitos políticos, por danos ao Erário e gestão fraudulenta no passado.

A direita tradicional não inspira, porém, o eleitorado, pois o desastre econômico de Mauricio Macri foi um dos fatores que elegeram Fernández. O bolsonarismo argentino, encarnado no deputado federal Javier Milei, economista de 52 anos, tem chance? Após a vitória de Lula, Milei afirmou que não iria felicitá-lo, pois o petista tem um discurso “violentamente socialista” e “vai destruir” o Brasil. “Espero que a Argentina não permita que a extrema-direita ganhe as eleições”, disse Lula ao lado de Fernández, na Casa Rosada. “A extrema-direita não deu certo em nenhum país que governou”. Para o brasileiro, só o discurso pró-democracia não basta contra o extremismo global, é preciso melhorar a vida dos cidadãos, lutar contra a fome, a desigualdade de renda, o feminicídio, o assassinato de negros. O colega argentino entende que a pandemia evidenciou a “injustiça do sistema capitalista e do sistema financeiro mundial”. E que o livro Missão Economia, da italiana Mariana ­Mazzucato, que terminou de ler há alguns dias, é um bom guia sobre o que fazer.

O que Brasil e Argentina farão de concreto, por ora, é montar um fundo financeiro de cada lado para facilitar o comércio mútuo. E, com o mesmo objetivo, examinar a ideia de uma espécie de moeda comum. A portas fechadas, Fernández contou a Lula ter visitado dias atrás as obras de um gasoduto que deve inaugurar em junho. A Argentina possui a segunda maior reserva de gás de xisto do mundo, a jazida de Vaca Muerta, e sonha em vender o produto ao Brasil. Para isso é necessário construir uma rede paralela ao gasoduto e os hermanos desejam que o BNDES financie as firmas brasileiras que forneceriam tubos à obra, cerca de 800 milhões de dólares. Lula topa. Paulo Guedes, ministro da Economia de Bolsonaro, também topava.

Lula quer concluir o acordo Mercosul-União Europeia e negociar em bloco com a China

Na sequência, Lula foi a Montevidéu para encontrar o presidente Luis ­Lacalle Pou. O apoio brasileiro a obras de interesse do Uruguai também fez parte da conversa. É o caso de uma dragagem na hidrovia que atravessa os países e de uma ponte binacional sobre o Rio Jaguarão. A boa vontade de Lula busca demover Pou de negociar um acordo de livre-comércio com a China. O pacto decretaria a morte no Mercosul, desprezado por Bolsonaro e que Lula deseja fortalecer, inclusive com a entrada da Bolívia, após anos de negociação.

O petista diz ser favorável a um acordo comercial do Mercosul com a China, cujo presidente, Xi Jinping, visitará em março, em Pequim. Os chineses, segundo um colaborador diplomático lulista, comem pelas beiradas na América do Sul, daí a necessidade de “sul-americanizar a relação”. Antes disso, há outro acordo para tirar do papel. “É urgente e necessário que o Mercosul faça o acordo com a União Europeia”, afirmou Lula ao lado de Pou. O petista nunca havia falado nesses termos. Na eleição, deixara no ar se interessava ao Brasil o acordo firmado em 2019 e à espera de ratificação. O problema, comenta um diplomata, não é ter um acordo com os europeus, mas qual acordo. Nos termos firmados, o Mercosul faria concessões demais na área industrial e ganharia de menos na agrícola. O agronegócio representa só 8% do PIB brasileiro e 9% dos 100 milhões de empregos. Na indústria, o salário médio é de 2,6 mil reais e no campo, de 1,8 mil.

Paralelamente aos desafios explícitos no front exterior, Lula acompanha um certo mal-estar em alas do Itamaraty. Uma recém-criada Associação das Mulheres Diplomatas do Brasil reivindicava a embaixada de Buenos Aires para uma das suas, mas o escolhido foi um homem, Júlio Biteli, chefe de gabinete do chanceler Mauro Vieira, quando este ocupava o mesmo cargo no governo de Dilma ­Rousseff. Seu escolhido para embaixador do ­Brasil na ONU é outro motivo de burburinhos. Sérgio Danese era secretário-geral do ­Itamaraty durante o processo de impeachment de Dilma e aderiu ao governo ­Temer, por quem foi nomeado para a embaixada em Buenos Aires, uma das duas mais importantes do Brasil. Lá, fez a ponte entre Bolsonaro e Macri. Olho nele, Lula. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1244 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Cruzada global”

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