Economia
Criação de ‘fundo de estabilização’ poderia baixar preços dos combustíveis, propõe economista
Em entrevista a CartaCapital, Ricardo Carneiro explica projetos que devem ir ao plenário do Senado na semana que vem
Estão em análise no Senado Federal dois projetos de lei que propõem resolver um problema cada vez mais preocupante: baixar o preço dos combustíveis. Especialmente depois do fim de janeiro, quando a gasolina ultrapassou os 8 reais pela primeira vez.
Sob a relatoria do senador Jean Paul Prates (PT-RN), o PL 1.472/2021 prevê a instauração de um “fundo de estabilização” para possibilitar que os preços internos sejam menores do que os preços no exterior. Já o PLP 11/2020 institui um valor fixo para o ICMS, imposto relacionado à circulação de mercadorias e importante componente das receitas dos governos estaduais.
A estimativa do relator é de que haja redução de 50 a 60 centavos nos preços da gasolina e do diesel e de 10 reais no valor do botijão de 13 quilos do gás de cozinha. A previsão é de que os textos sejam levados ao plenário do Senado na semana que vem.
A fachada da sede da Petrobras, no Rio de Janeiro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Os dois projetos relatados por Prates são diferentes das duas Propostas de Emenda à Constituição que também tramitam no Congresso, mais concentradas no corte de tributos.
Para o economista Ricardo Carneiro, um dos formuladores da proposta nas mãos de Prates, os problemas nos preços dos combustíveis se agudizaram com a decisão da Petrobras em adotar a política do Preço de Paridade de Importação, em 2016, a partir do governo de Michel Temer (MDB). A criação de um “fundo de estabilização”, portando, seria fundamental para evitar que os preços dos combustíveis no Brasil acompanhem as altas no exterior.
Governadores já anunciaram apoio à proposta. O próprio governo de Jair Bolsonaro (PL) pretendia sugerir a criação de um “fundo de estabilização” em um texto a ser enviado ao Congresso, mas uma manifestação contrária do ministro Paulo Guedes fez o Palácio do Planalto recuar.
Ricardo Carneiro, economista da Unicamp, defende a criação de um fundo de estabilização do preço dos combustíveis. Foto: Reprodução
Carneiro aponta a ideia de “custo de oportunidade” como principal justificativa para a adoção do PPI: ao adotar o preço internacional do petróleo como critério, o Brasil estaria seguindo um valor “realista” que representaria a escassez e o valor do petróleo a nível global. Dessa forma, os parâmetros para compor o preço do petróleo ficariam “corretos” em vez de artificiais.
Porém, o economista é crítico a essa tese. Em entrevista a CartaCapital, o professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, avalia que o “custo de oportunidade” e o preço internacional não refletem a escassez e as condições de produção lá fora, porque a composição desses preços é baseada em especulações financeiras, ou seja, em suposições e negociações que têm como objetivo a obtenção de lucro no curto prazo com as variações de preços.
No fim das contas, a situação é “esdrúxula” para o Brasil, considera Carneiro, porque o País é autossuficiente na produção de óleo cru e produz cerca de 80% dos materiais derivados do petróleo que utiliza, como a gasolina e o diesel. Portanto, os custos domésticos de produção são muito mais baixos do que os preços internacionais que vêm sendo praticados aqui.
Nessa operação, fica bem claro quem são os prejudicados e os beneficiados.
Ainda segundo Carneiro, os impactos negativos da alta dos preços recaem sobre o orçamento familiar, especialmente entre os mais pobres, seja na compra do gás de cozinha ou no pagamento da tarifa do ônibus, por exemplo.
A instabilidade nos preços, devido às oscilações do mercado internacional, também dificultam negociações em atividades como o transporte de cargas, o que piora as condições de trabalho dos caminhoneiros, já que no Brasil o frete ocorre essencialmente por meio de estradas. O especialista observa ainda reflexos na própria composição do Produto Interno Bruto e até mesmo freios no crescimento econômico anual.
Enquanto isso, entre aqueles que ganham com essa lógica, estão os acionistas da Petrobras. A taxa de retorno tem sido altíssima: no terceiro trimestre do ano passado, a estatal distribuiu 31 bilhões de reais de lucros entre seus acionistas; o montante aumentou para 42 bilhões de reais no quarto trimestre.
O aumento dos lucros se dá porque o custo de produção do petróleo é baixo no Brasil, e o material é vendido no exterior por valores muito mais altos, já que acompanham o mercado internacional. A lucratividade da Petrobras tem sido muito maior do que empresas internacionais do mesmo ramo, ressalta Carneiro: a taxa de retorno é estimada em 36,2% contra uma média de 5,4% para sete companhias internacionais.
Além disso, empresas estrangeiras que operam no Brasil são beneficiadas pela mesma razão: produzem petróleo a baixo custo aqui e fazem exportações para o exterior por muito mais caro.
O senador Jean Paul Prates (PT-RN), relator de dois projetos sobre o preço dos combustíveis. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
Na avaliação de Carneiro, essa política de preços se soma a um desmonte da estatal após o golpe de 2016, retratado por exemplo na privatização de refinarias, como a da refinaria Landulpho Alves, na Bahia, vendida a um preço menor do que seu valor real.
Apesar desse cenário, a proposta da criação de um fundo de estabilização poderia auxiliar a lidar com essas adversidades. Segundo Carneiro, a proposta central é estabelecer um preço básico ou um preço teto para os combustíveis, e uma faixa de variação para esse preço. Os valores de referência seriam estipulados por um “meio termo” entre os custos de produção no Brasil e os preços internacionais.
O fundo de estabilização é como uma poupança em dinheiro. Se o preço internacional sobe demais, o fundo pode financiar a diferença e evitar que o aumento seja repassado automaticamente para os consumidores. Se o preço internacional tiver uma baixa súbita, os custos de produção no Brasil podem ser mantidos nos preços.
Um dos principais detalhes do projeto é que essa “poupança” não teria dinheiro do Orçamento. Ou seja, não seria necessário impor mais gastos ao governo para bancar esse projeto.
“O fundo é autofinanciável”, garante.
Confira os principais trechos a seguir.
CartaCapital: O senhor diz que a ideia de custo de oportunidade justificou a adoção da política de Preço de Paridade por Importação.
Ricardo Carneiro: A ideia que está por trás é a seguinte: se o preço do petróleo lá fora é 80, independentemente do preço que você produz aqui, você tem que adotar o 80. Isso porque esse é o preço que sinaliza, no mundo, o grau de escassez do produto e o custo dele efetivo. A minha crítica é: suponha que eu acho que isso está correto. Mas o que significa o preço internacional do petróleo? O preço internacional do petróleo é, de fato, um sinalizador do grau de escassez e das condições de produção lá fora? Não é.
CC: Como listar os efeitos dessa política?
RC: Há os efeitos diretos do patamar de preços [ou seja, do aumento dos preços do petróleo a partir da política de preços internacionais]. Quais os efeitos diretos? No orçamento familiar, sobretudo dos mais pobres, tanto no gás de cozinha, como no custo do transporte coletivo. Existe também um efeito sobre o custo do transporte em geral, porque o Brasil é um país muito rodoviário.
Outro efeito importante diz respeito à volatilidade. Ela torna muito imprevisível uma série de variáveis na economia. A imprevisibilidade atrapalha ou torna mais incertos os resultados de investimentos. Há estudos sobre o Brasil e o mundo todo que mostram que a volatilidade reduz pontos percentuais do crescimento do PIB, pelo grau de incerteza que você introduz na economia.
Há ainda o impacto no índice de preços e a subida da taxa de juros. Então, há um conjunto de coisas, na verdade, que são muito danosas. Aí vem a pergunta: porque fazemos isso se produzimos petróleo e combustível barato no Brasil? E vem a justificativa de que é por conta do custo de oportunidade. Mas isso não existe.
Se você tivesse um bem produzido num regime de concorrência, com critérios econômicos bastante definidos… Mas o preço internacional do petróleo não reflete isso. Ele é um preço especulativo. Então se trata de um imposto à sociedade brasileira em nome de um preço especulativo.
E não é só isso: os preços especulativos têm ganhadores. Quem são os ganhadores? A começar pela Petrobras. Você vê a comparação da taxa de retorno deles com os outros. Depois, produtores que produzem na bacia do pré-sal, e acionistas da Petrobras, brasileiros e estrangeiros, já que foram mais de 40 bilhões de reais em dividendos distribuídos entre eles.
Além disso, a Petrobras explora petróleo sozinha e com outras empresas internacionais. Como estamos produzindo a um custo muito baixo, e essas empresas estão vendendo o barril a 80 e 90 dólares, elas também são beneficiadas. Há ainda aqueles que estão na cadeia produtiva, e os governos estaduais, porque o imposto é uma margem que se coloca sobre o preço do combustível. Os governos estaduais se beneficiaram bastante, basta ver o crescimento de arrecadação. Então, esses são os sócios dessa história.
Preços dos combustíveis têm aumentos sucessivos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
CC: Como solução, o senhor propõe instaurar um fundo de estabilização, tema do PL que está em análise no Senado. Como isso funcionaria?
RC: A discussão é se é possível ter uma alternativa ao PPI. É mostrar, na verdade, como melhorar as condições de produção de petróleo, a despeito de todo o desmonte que foi feito. E vem a pergunta: com esse diferencial de preços, por que não se rebaixa os preços internos? E aí a gente dá a solução do fundo de estabilização.
O fundo de estabilização não é para dar subsídios, nem requer recursos orçamentários. É um fundo autofinanciável, parafiscal. Há uma diferença entre fazer redução do preço de combustíveis em países que não produzem petróleo e em países autossuficientes como o Brasil.
A ideia do fundo é de que a própria subida de preços financie o fundo. Você vai vender lá fora o produto que você exporta pelo preço que tiver lá fora. Aqui dentro, você vai vender mais próximo do custo de produção. Quem vai financiar isso? O imposto sobre a exportação, os lucros extraordinários da Petrobras e uma parcela das chamadas participações governamentais que não têm destino específico, como os royalties. Esses são os recursos do fundo.
O que isso tem de subsídio? Nada. Vamos fazer, a partir desses recursos, uma redução do preço interno. O fundo é eficaz porque, quando sobe o preço, aumenta a arrecadação do fundo.
É diferente de fazer com recursos orçamentários. Quando você faz um subsídio, como no Chile, toda vez que o preço do petróleo sobe, você tem que aumentar o nível de subsídio, portanto tem que tirar recursos orçamentários para rebaixar os preços. No caso desse fundo que estamos propondo, quando o petróleo sobe, o lucro da Petrobras aumenta, e a arrecadação do fundo também sobe. Você alinha o gasto com a receita do fundo.
CC: E sobre o PL do ICMS?
RC: Eu acho que o PL do ICMS é complementar. É evitar que os estados virem sócios do aumento de preços. Então, a segunda parte do projeto relatado pelo senador Jean Paul Prates é estabelecer um valor fixo para o ICMS sobre o combustível. Isso evita que você amplifique o aumento de preços. É algo relevante, porque 1/4 do preço do combustível é imposto estadual.
CC: O senhor acha que as privatizações das refinarias deveriam ser revistas?
RC: Eu acho que temos que ter uma indústria de petróleo integrada, porque ela nos dá muito mais flexibilidade no ponto de vista de operação. O ramo de petróleo é cheio de concentrações, de monopólios e oligopólios. As refinarias são praticamente monopolistas nas áreas de atuação delas. O problema, então, é que as refinarias privatizadas virem semimonopolistas em suas regiões de atuação, e que você tenha preços ainda mais altos. O desafio é integrar a indústria. E eu acho que não deve haver espaço para refinaria privada. Acho que a indústria tem que ser pública e integrada, para evitar a influência dos preços externos no preço interno.
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