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Com o aval de Bolsonaro, dois pastores fizeram do MEC um balcão de negócios

Os líderes religiosos atuam como lobistas, valendo-se do prestígio que possuem com autoridades do governo federal

Com o aval de Bolsonaro, dois pastores fizeram do MEC um balcão de negócios
Com o aval de Bolsonaro, dois pastores fizeram do MEC um balcão de negócios
Segundo Ribeiro, é o pastor Gilmar Santos quem define a liberação de verbas na pasta - Imagem: Luis Fortes/MEC e Redes sociais
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Em uma recente reunião no Ministério da Educação, Milton Ribeiro esclareceu a prefeitos e gestores do Fun­do Nacional de De­sen­vol­vimento da Educação qual o critério adotado na li­be­ração de verbas, em um cenário de restrição orçamentária e su­ces­sivos cortes. “A minha prioridade é aten­der, primeiro, os municípios que mais precisam e, em segundo, atender todos os que são amigos do pastor Gilmar”, explicou o ministro, candidamente, acrescentando que a mediação do líder religioso foi um “pedido especial” feito pelo presidente.

O áudio da conversa foi revelado pela Folha de S.Paulo na terça-feira 22. Reverendo presbiteriano, Ribeiro referia-se ao também pastor Gilmar Silva dos Santos, presidente da Convenção Nacional de Igrejas e Ministros das Assembleias de Deus no Brasil. No encontro, estava presente Arilton Moura, assessor de Assuntos Políticos da entidade. Mas o ministro sabe respeitar hierarquia. “Não tem nada com o Arilton, é tudo com o Gilmar”, acrescentou, aos risos.

Mesmo sem experiência na ad­mi­nis­tração pública nem histórico na área de educação, Santos e Moura mon­ta­ram um gabinete paralelo no MEC. Com trânsito livre na Esplanada dos Ministérios, eles viajam de carona em voos da FAB, possuem interlocução direta com Bolsonaro e abrem as portas do gabinete de Ribeiro para prefeitos e empresários. Nos últimos 15 meses, a dupla participou de ao menos 22 agendas no MEC, 19 delas com o ministro. Nos registros de compromissos do presidente, dois dos encontros aconteceram em 2019, na presença de outras lideranças evangélicas. No ano seguinte, Bolsonaro voltou a receber o pastor Santos em seu gabinete. Desta vez, para uma audiência a sós.

Tivesse a história se encerrado por aqui, poderíamos dizer que a movimentação dos pastores se resume a um caso clássico de tráfico de influência. Os líderes religiosos atuam como lobistas, valendo-se do prestígio que possuem com autoridades do governo federal. Há, porém, mais sujeira debaixo dos tapetes palacianos. Na quarta-feira 23, o tucano Gilberto Braga, prefeito do munícipio maranhense de ­Luís Domingues, denunciou ao jornal O Estado de S. ­Paulo que Moura cobrou 15 mil reais antecipados só para protocolar as demandas da cidade no MEC. Para empenhar os recursos, a fatura era maior, bem maior… “Ele disse: ‘Traz 1 quilo de ouro para mim’. Fiquei calado. Não disse nem que sim nem que não”, afirmou Braga, acrescentando que não aceitou a proposta.

O pedido de propina ocorreu, segundo o denunciante, em abril do ano passado, durante um almoço no restaurante Tia Zélia, em Brasília. Braga havia acabado de sair de uma reunião com o ministro, fora da agenda oficial, quando recebeu a proposta do pastor, responsável pelo agendamento da audiência informal com Ribeiro. Um vídeo publicado pela assessoria de Braga no Instagram comprova que ele esteve em Brasília em abril de 2021. “O prefeito Gilberto Braga está neste momento na reunião dos prefeitos maranhenses com o ministro da Educação, Milton Ribeiro, senador Roberto Rocha e a equipe do MEC”, dizia a postagem.

O PASTOR ARILTON MOURA PEDIU 1 QUILO DE OURO PARA LIBERAR RECURSOS DO MEC, DENUNCIA PREFEITO MARANHENSE

O prefeito de Luís Domingues reivindicava a liberação de uma verba da ordem de 10 milhões de reais para a sua cidade. Foi em razão do elevado valor a ser empenhado pelo MEC que, segundo o denunciante, Moura solicitou o pagamento da propina em ouro. Na atual cotação, o quilo do metal precioso vale mais de 300 mil reais. “O negócio estava tão normal lá que ele não pediu segredo, ele falou no meio de todo mundo. Inclusive, havia outros prefeitos do Pará”, relatou Braga. “Ele disse: ‘Olha, para esse daqui eu já mandei tantos milhões, para o outro, tantos milhões’.”

A partir de então, diversos outros gestores vieram a público relatar pedidos semelhantes. Ao jornal O Globo, o prefeito de Bonfinópolis, Kelton Pinheiro, disse que Moura pediu 15 mil reais para ajudá-lo a conseguir uma escola para o município goiano. “No Brasil, as coisas funcionam assim”, teria dito. Pouco depois, o pastor lobista sugeriu que ele comprasse bíblias para distribuir na cidade. “Seria uma venda casada. Eu teria que comprar essas bíblias, porque ele estava em campanha para arrecadar dinheiro para construir uma igreja”, conta Pinheiro. Para outro prefeito, Moura teria pedido uma doação de 40 mil reais a uma igreja em troca da liberação de verbas para uma escola profissionalizante. “Ele disse: ‘Uma mão lava a outra, né?’”, relembra José Manuel de Souza, prefeito de Boa Esperança do Sul, no interior paulista. Ambos os gestores dizem ter recusado as propostas.

Após a revelação do áudio, Ribeiro cancelou uma agenda em São Paulo e divulgou nota para minimizar a atuação de Bolsonaro no caso. “Não há nenhuma possibilidade de o ministro determinar alocação de recursos para favorecer ou desfavorecer qualquer município”, diz o texto. “Registro ainda que o presidente da República não pediu atendimento preferencial a ninguém.” Não convenceu. Até mesmo a bancada evangélica tem cobrado respostas mais confiáveis e lideranças cogitam pedir a cabeça do ministro. Algumas, por constrangimento. Outras, por ciúmes de ver dois desconhecidos pastores tão prestigiados no Planalto. Depois, Ribeiro tentou remendar a história. Disse ter denunciado os lobistas à Controladoria Geral da União, mas manteve contato com a dupla para não levantar suspeitas da investigação em andamento. Acredite quem tem fé.

O escândalo levou a oposição a cobrar da Procuradoria-Geral da República uma investigação sobre o balcão de negócios no MEC. “A troco de que esses dois pastores, que não têm cargo no governo federal e não ocupam função pública, estariam legitimados pelo presidente Bolsonaro como interlocutores de prefeitos junto ao gabinete do ministro da ­Educação, que também é chefiado por um pastor?”, pergunta a deputada ­Sâmia Bomfim, líder da bancada do PSOL, um dos partidos que acionou o Ministério Público Federal. Desta vez, o procurador-geral não teve como segurar a barra do governo. Solicitou autorização ao Supremo Tribunal Federal para investigar o ministro Ribeiro por corrupção passiva, tráfico de influência, prevaricação e advocacia administrativa. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Bezerro de ouro”

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