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Cartas marcadas

Empresários amigos tiveram acesso antecipado e privilegiado ao edital de venda da CeasaMinas

Conflito. Mattar, consultor do governo mineiro e doador do Partido Novo, é um dos interessados na privatização com acesso privilegiado - Imagem: Eugênio Sávio/Ceasa MG e Fábio Ortolan/ACMinas
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Na xepa das privatizações do governo Bolsonaro, a venda da CeasaMinas, a central de abastecimento cujo controle é compartilhado com a administração estadual, tornou-se uma prioridade e um poço de escândalos. Não bastasse a intenção de se desfazer da empresa antes do fim do mandato e a preço de banana, empresários bem relacionados no Palácio do Planalto e no Palácio da Liberdade tiveram acesso antecipado e privilegiado ao edital que estabelece as regras do leilão. O vazamento do documento sigiloso, enviado ao Tribunal de Contas da União, teria sido franqueado a um grupo seleto de interessados no negócio pelo diretor de Operações da companhia, ­Ivagner Ferreira. A irregularidade chegou às mãos de funcionários da estatal após o edital ter sido compartilhado em grupos de WhatsApp de empresários ligados à Associação Comercial da Ceasa de Minas Gerais (ACCeasa). A nova denúncia amplia a série de irregularidades detectadas no processo de privatização. O maior dos problemas reside nos valores estipulados para a venda do patrimônio público: o lance mínimo proposto pelo governo é de 253 milhões de reais, somados os ativos imobiliários e as outorgas, bem abaixo do 1,5 bilhão de reais calculado pelo Ministério Público Federal em parecer encaminhado ao TCU.

O vazamento do edital faz aumentar as suspeitas de direcionamento e corrupção, sobretudo após a visita de Salim Mattar, um dos interessados na privatização, à CeasaMinas em 17 de junho. Ao lado de Ferreira, Mattar, bolsonarista de primeira hora, dono da Localiza e ex-secretário de Desestatização do Ministério da Economia, teria sido apresentado aos servidores, segundo relatos ouvidos por CartaCapital, como “futuro patrão” pelo diretor de Operações. Um dos principais doadores do Partido Novo, o empresário exerce atualmente a função de consultor do governador mineiro Romeu Zema e, dizem as denúncias, seria o principal beneficiado com o direcionamento do processo de venda­ da central de abastecimento. A visita levou funcionários da empresa a enviar uma representação ao Comitê de Ética da Presidência da República. “Existe um grupo privilegiado que recebeu informações públicas sobre um processo de privatização que tem seus valores questionados. Como dizem aqui em Minas, tem caroço nesse angu”, afirma Jussara­ Griffo, diretora de Coordenação Política e de Empresas Públicas do Sindicato dos Trabalhadores Ativos, Aposentados e Pensionistas do Serviço Público (Sindsep) em Minas Gerais. A denúncia também foi apresentada internamente pelo representante dos funcionários no Conselho de Administração da CeasaMinas, Heronilton dos Santos Silva. Segundo Griffo, o alerta foi ignorado pelo colegiado, que decidiu dar sequência ao processo. “É importante saber o que a Ceasa tem feito diante de toda essa imoralidade”, acrescenta a sindicalista.

Salim Mattar, consultor do governador Zema, foi apresentado aos trabalhadores como “futuro patrão”. Antes da privatização

O Sindsep defende a anulação do processo de privatização. Está em curso, diz Griffo, um “jogo de cartas marcadas” na Ceasa. “O processo está contaminado pelo Salim Mattar. Há vários áudios de conversas entre ele e o diretor Ivagner referentes a esse ponto. O edital, que deveria ser sigiloso, circula entre os integrantes da associação que reúne os atuais concessionários da estatal. Depois vazou para os grupos de WhatsApp dos trabalhadores. O edital foi deliberadamente disponibilizado para quem tem interesse no processo.”

Após requerimento apresentado pelo deputado federal Padre João, do PT, e aprovado pela Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara, técnicos do TCU realizam uma auditoria no processo de privatização da CeasaMinas com o objetivo de “apurar danos ao Erário e subavaliação do patrimônio público”. O parlamentar questiona os valores estipulados para os terrenos e áreas construídas da empresa nos municípios de ­Contagem, ­Barbacena, Caratinga, Juiz de Fora, Uberlândia, Uberaba e Governador Valadares. No total, são 2,7 milhões de metros quadrados em terrenos e 271,2 mil metros quadrados ocupados por entrepostos e outras edificações. “Fomos surpreendidos com o processo em estágio avançado e uma subavaliação assustadora. Apenas o preço real do terreno de Contagem, com 2,2 milhões de metros quadrados, equivale ao valor mínimo proposto pelo governo. Há uma suspeita enorme, por isso pedimos a fiscalização. Esse processo não pode avançar enquanto a auditoria não for concluída”, afirma o deputado.

“Soldado”. Diretor da CeasaMinas, Ivagner Ferreira regozija-se nas redes sociais da missão confiada por Bolsonaro – Imagem: Redes sociais

De acordo com Padre João, “a cada dia vai se evidenciando quem serão os beneficiados” pela privatização da Ceasa. O parlamentar lembra a responsabilidade do Tribunal de Contas no processo: “Se o TCU não paralisar essa privatização, seus conselheiros também serão cúmplices e serão denunciados no Ministério Público Federal. Os técnicos ainda estão realizando suas análises e estas têm de ser levadas em consideração”. O petista cobra ainda mais transparência por parte do governador Zema: “Tem um pedaço da CeasaMinas que pertence ao governo de Minas Gerais, e também não está claro no processo qual a participação do Poder Público estadual nessa venda”. No TCU, a ação está sob os cuidados do ministro Marcos Bemquerer, que ainda não proferiu decisão e mantém os autos sob sigilo. Outra ação, encaminhada pelo deputado Patrus Ananias, do PT, tem relatoria do ministro Benjamin Zymler e também segue sob sigilo e sem parecer final.

O Partido dos Trabalhadores estuda ingressar com uma terceira ação, desta vez com um pedido de anulação completa do processo de privatização. “Vamos apresentar essas denúncias ao TCU e também ao Ministério Público Federal, para que apurem e adotem as providências necessárias para interromper este processo que aparenta ser de cartas marcadas e investigar e punir os responsáveis pelo vazamento do edital, pelos sinais evidentes de favorecimento e pelos indícios de ilegalidades”, diz o deputado federal Rogério Correia. A condução dada pelo governo federal é contestada pelo petista: “Um processo de privatização com esses indícios de irregularidades não pode ser levado adiante. Isso fere qualquer princípio básico de isonomia e reflete uma visão privatista inconsequente, que costuma entregar o patrimônio público a preços bem inferiores ao que vale para um grupo de amigos ou aliados privilegiados”.

Entre amigos. O edital da venda da CeasaMinas circulou em um grupo seleto de empresários antes de ser publicado oficialmente

Segundo os denunciantes, o vazamento do edital e de suas precondições permite aos privilegiados anteciparem os preparativos para a apresentação de propostas e beneficia diretamente os interessados na aquisição dos valiosos lotes de terra em espaço urbano hoje pertencentes à Ceasa. Uma prova foi a visita extraoficial feita em 23 de maio por representantes da Serviços de Engenharia e Agrimensura, empresa que não integra a companhia, para iniciar estudos de topografia em um dos terrenos a serem leiloados. O relatório 31, produzido neste ano pelo Departamento de Operações da CeasaMinas e encaminhado à diretoria, relata que a ­Senag, após afirmar estar a serviço da empreiteira SGO Construções, teria sido impedida de entrar no local. O próprio Ferreira teria, no entanto, ordenado ao setor de segurança que permitisse o acesso para a realização da sondagem. O serviço de medição, prossegue­ o relato,­ ­continuou a ser executado nos dias seguintes. Procurado por ­CartaCapital, o empresário Sérgio Gomes de Oliveira, dono da SGO, não respondeu aos pedidos de esclarecimento.

Outro episódio, este em 22 de junho, dias após a visita de Mattar à ­Ceasa, também causou estranheza. Um engenheiro da central de abastecimento recebeu um projeto arquitetônico com a solicitação de uma empresa externa para que os acompanhasse na realização de serviços de topografia. Foi igualmente solicitado ao servidor que indicasse a existência de canalizações no terreno. Após recusar o pedido, o engenheiro foi informado de que “tudo havia sido acertado” com Ferreira. “Essa firma pediu a um funcionário público que passasse informações sobre o terreno. Isso é crime. Como isso pode acontecer de forma antecipada? O Ivagner está passando informações privilegiadas. Queremos providências, o processo tem de ser paralisado”, diz Griffo.

O Tribunal de Contas da União analisa várias irregularidades, entre elas o preço mínimo da companhia, bem abaixo do patrimônio

Ferreira é figura central no processo de privatização. Com presença assídua nas redes sociais, o diretor de Operações coleciona publicações nas quais se apresenta como o homem certo no lugar certo para efetuar a venda da empresa. Suas mensagens sobre o tema começaram antes mesmo de assumir o cargo, quando ainda era dono da Cafeteria da Fazenda, e não pecam pela falta de modéstia, pois ele costuma marcar os próprios Bolsonaro e Zema em ­alguns posts. “Presidente, está próxima a minha nomeação para empresa federal. Sou seu soldado, cão de guarda, honesto. Tenho muito orgulho de estar na sua equipe e ajudar o Brasil”, escreveu em abril de 2020. Dias antes, em outra postagem na qual Bolsonaro foi marcado, Ferreira apresentou-se como “novo presidente” da CeasaMinas e anunciou sua missão: “Administrar com foco na privatização. Agregar valor na exploração de imóveis. Conquistar resultados que tornem (a empresa) atrativa para a iniciativa privada. Alto nível de governança, elevado nível com clientes, meritocracia com funcionários”.

Toque de caixa. Zema também tem pressa na venda da CeasaMinas, apesar da subavaliação dos ativos da empresa – Imagem: Alan Santos/PR

Procurado pela reportagem, o executivo recusou-se a comentar o vazamento do edital e o benefício a um grupo de empresários. Deu a seguinte desculpa: “Na condição de coordenador do Data Room (sala de dados) onde mantemos informações sobre a privatização, estou impedido de conceder entrevistas”. Reação semelhante teve Noé Xavier, presidente da ACCeasa: “Não tenho essa informação (sobre o vazamento)”, disse. Os fatos desmentem ­Xavier. Em umas das conversas no grupo de WhatsApp dos empresários, em um ­diálogo que tem a minuta do edital como arquivo anexo e vários emojis chorando de rir, um empresário identificado como Alexandre diz aos colegas: “Vazou. Os cinco interessados não aguentaram”. Salim Mattar não atendeu aos pedidos de entrevista.

A CeasaMinas cumpre uma dupla missão. Uma delas é a regulação de preços para o mercado. A outra é dar suporte ao pequeno agricultor, para a produção de alimentos sem agrotóxicos a preços acessíveis. As missões se integram no intuito de reduzir os custos dos alimentos para a população em geral, sobretudo para as famílias de baixa renda, função que parece pouco interessar aos empresários bolsonaristas. “Com 33 milhões de brasileiros passando fome e 125 milhões em situação de insegurança alimentar, a Ceasa é estratégica para o abastecimento. São toneladas de alimentos que circulam diariamente e são importantes não só para toda a região metropolitana e o interior de Minas, mas também para o Rio de Janeiro e o Espírito Santo”, ressalta Padre João. O parlamentar lembra um apelo de Paulo Guedes aos colegas de governo: “Ele pediu pressa nas desestatizações. Como estão atrás nas pesquisas de intenção de voto, colocaram o pé no acelerador”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1224 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Cartas marcadas”

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