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Campo minado

O festival de armadilhas e pegadinhas no percurso da equipe de transição

Lula tomou as rédeas da transição - Imagem: Lula Marques/PT na Câmara
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Lula passou os últimos dias em Brasília e, entre um jogo e outro do Brasil na Copa, dedicou-se a negociar a montagem do ministério e da base parlamentar, além de buscar verba para pagar 600 reais do Bolsa Família desde o primeiro mês de governo. Marcada a data de sua diplomação no Tribunal Superior Eleitoral, 12 de dezembro, surgem detalhes da posse em 1º de janeiro. Esta tem sido preparada como acontecimento mundial e festa popular. Líderes estrangeiros começam a ser convidados, e a expectativa é de que compareçam em grande número, mais do que nas vitórias anteriores do PT. A futura primeira-dama, Rosângela Silva, a Janja, à frente dos preparativos, anunciou vários shows e artistas, e prometeu: “Vamos fazer uma posse para o povo”.

Colocar gente nas ruas para defendê-lo será uma necessidade permanente de Lula, diante das dificuldades políticas e econômicas à vista. “Não tenho dúvida de que os bolsonaristas, com três meses, seis meses, vão organizar manifestações contra o governo. Vamos precisar de manifestações a favor e de resultados no primeiro ano”, afirma o deputado federal eleito Lindbergh Farias, do quinteto petista que tem auxiliado o ex-metalúrgico nas conversas políticas. Colaboradores dos mandatos anteriores do ex-presidente e do governo de transição de agora não escondem a apreensão. Um comenta que “não queria estar na pele do Lula”, em razão da destruição do País pelo capitão. Outro, que não há motivo para festa, pois “a situação é muito difícil, não tem dinheiro para nada”. É como disse na porta do Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, o senhor Esver, eleitor lulista e baiano da cidade de Santa Rita de Cássia: “Na democracia, o que é bom não é fácil”.

A recém-concluída primeira versão do diagnóstico feito pelo governo de transição retrata o estrago. Falta dinheiro para tudo, estruturas do Estado foram desmontadas. Caso emblemático é o da saúde. Um “descalabro”, segundo o médico ­Arthur Chioro, ex-ministro. A cobertura vacinal despencou com Bolsonaro e, especificamente sobre a Covid, o time lulista não consegue saber o prazo de validade das doses disponíveis. A Lula, interessa expor o desmanche, a fim de peitar o dito “mercado” e arrancar do Congresso aval para gastar quase 200 bilhões de reais fora do teto de gastos, plano entregue ao Senado no dia da chegada do presidente eleito em Brasília. O lado bolsonarista tem cooperado com a elaboração do diagnóstico, conforme relatos de bastidores, embora haja queixas pontuais, como no turismo. E olha que no time lulista havia receio de usar computadores e a rede de Wi-Fi cedidos pelo Gabinete de Segurança Institucional, o GSI do general-ministro Augusto Heleno, por causa de eventual espionagem. A rede não foi utilizada, mas sim outra, a do CCBB, sede da transição, após uma varredura comandada pelo chefe da segurança de Lula na campanha, o delegado federal Andrei Passos Rodrigues, cotado para a chefia da Polícia Federal.

Múcio, ex-TCU, ganha força para o Ministério da Defesa. Seria ele um Arlequim? – Imagem: Antonio Cruz/ABR

Atrelada ao GSI está a Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, aparelhada pelo bolsonarista mais tempo à frente do órgão, o delegado federal Alexandre Ramagem. Depurar e enxugar a Abin são desafios à espera de Lula, segundo se comenta entre aqueles que na transição se debruçam sobre a área de inteligência. O grupo funciona informalmente, não houve designação escrita de seus integrantes, a exemplo de outros dois, o de Defesa e o do “centro de governo” (os órgãos do Palácio do Planalto). O que se ouve nos bastidores é que são áreas do núcleo duro do bolsonarismo e dificilmente haveria colaboração do outro lado, melhor trabalhar à margem. José Múcio Monteiro, ex-deputado e ex-ministro de Lula, está no páreo para o cargo de ministro da Defesa. O general Marco Edson Gonçalves Dias, chefe da segurança do petista nos oito anos anteriores de Presidência, para o GSI.

A avaliação hoje na transição é que a Abin ganhou vida própria e não tem controle superior. Os bolsonaristas do órgão seriam um perigo no futuro. Corre em Brasília que Ramagem pegou a verba secreta destinada pela agência para pagar informantes e distribuiu a milicianos e policiais do Rio de Janeiro, sob o pretexto de dar suporte a ações em favelas cariocas. Dessa maneira, ele teria conseguido cabos eleitorais para eleger-se deputado federal no Rio, pelo partido do presidente, o PL.

Há mais histórias cabeludas a circular em Brasília em paralelo à transição. Uma aponta o uso da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial, a ABDI, para negócios do partido Republicanos, que apoiou Bolsonaro e promete fazer oposição a Lula. Uma das estripulias teria como pivô o projeto Conecta 5G. Pelo projeto, nascido em dezembro de 2021, a agência estimula prefeituras a comprar luminárias inteligentes, embutidas com antenas da tecnologia 5G. O fornecedor das luminárias é israelense, a Juganu. Em março deste ano, o chefe da ABDI, Igor ­Calvet, e o ministro das Comunicações, Fábio Faria, foram a Israel reforçar os laços com a empresa. Da comitiva fazia parte o gerente de Novos Negócios da ABDI, Tiago Faierstein, sócio na Flórida, Estados Unidos, do presidente da Juganu no Brasil, Bruno Gemus. A sociedade leva as iniciais dos nomes de ambos, a BGTF Investments, e está registrada com data de março. Ou seja, o diretor de um órgão público promove um projeto que dá lucro à firma dirigida por alguém do qual é sócio. CartaCapital questionou a ABDI sobre a situação, mas não obteve resposta até a conclusão desta reportagem, na quinta-feira 1º.

A Abin ganhou vida própria e não tem controle superior. Os bolsonaristas do órgão seriam um perigo para o futuro, avaliam petistas

Faierstein entrou na agência em 2018 como assessor especial do presidente. O órgão era comandado desde 2016 por um indicado, Luiz Augusto de Souza Ferreira, do deputado paulista Marcos Pereira, chefe do Republicanos. O deputado tinha sido nomeado ministro da Indústria do governo Temer em 2016. A digital na escolha de Faierstein era do chefe do partido no Distrito Federal, Wanderley Tavares da Silva, apontado em uma ação na Justiça Federal como sócio, no passado, da Juganu no Brasil. Ferreira deixou o cargo em setembro de 2019, primeiro ano de Bolsonaro, e foi substituído por Calvet, mas a influência do Republicanos no pedaço continua. A esposa de Marcos Pereira, Margareth, é da ABDI. Com Calvet, Faierstein tornou-se gerente de Novos Negócios em março de 2021 e um dos cabeças do que viria a ser o projeto 5G. A propósito, o time lulista da transição tenta até aqui, sem sucesso, obter detalhes dos acordos de implantação da tecnologia no Brasil, decorrentes do leilão de dezembro de 2021 da Agência Nacional de Telecomunicações, a Anatel.

Em Brasília, há mais rolo cuja existência tentam fazer chegar ao governo de transição. Neste caso, é na área da comunicação, pivô das brigas públicas entre o time bolsonarista e o lulista. O deputado André Janones, do Avante de Minas Gerais, tem divulgado histórias suspeitas do atual governo, como a compra de 200 milhões de bandeirinhas para o 7 de Setembro e um contrato com a Paraná Pesquisas. Na campanha presidencial, a empresa fez levantamentos por encomenda de partidos bolsonaristas e sempre mostrava o capitão com mais intenção de voto do que em outras sondagens. Por causa das divulgações de Janones, a Secretaria de Comunicação Social do governo divulgou uma nota na qual chama de “informações distorcidas, enganadas e enganadoras” as denúncias do parlamentar e outra na qual diz que a postura “praticamente, inviabiliza a realização de reuniões” durante a transição.

Janones, de fato, errou um dado. Segundo ele, o contrato com a Paraná Pesquisas era de 13 milhões de reais. Não, era de 1,6 milhão. Mas, ao se vasculhar o número de 13 milhões, acha-se outra situação esquisita e para a qual, em Brasília, querem chamar atenção do governo de transição. A Paraná Pesquisas foi contratada no primeiro semestre deste ano, em um mesmo pregão eletrônico do Ministério das Comunicações, o 04/2022, que contratou o Instituto FSB Pesquisa por 11,9 milhões de reais. A soma dos dois contratos resulta em 13 milhões, valor alto para um acordo do gênero e prazo de um ano. Ao se defender da suspeita de que verba pública pagou pesquisas de interesse eleitoral de Bolsonaro, a Secom declarou, em 18 de novembro, que “nenhum real foi pago” à Paraná Pesquisas. E no caso do Instituto FSB? Foram emitidas notas fiscais no valor total de 1,1 milhão, entre maio e novembro, conforme o Portal da Transparência. A respeito, a Secom silencia.

Bolsonaro nomeou escudeiros para a Comissão de Ética. A Secom, sob o tacão de Faria (acima) é alvo de Janones (abaixo, no centro). Magalhães (esq.) cobiça a embaixada de Roma. Pereira tem digitais na ABDI – Imagem: Cleverson Oliveira/MCom, Michael Jesus/Ag.Câmara, Redes sociais, Juan Manuel Herrera/OAS e Tércio Teixeira/AFP

A FSB, escritório de assessoria de imprensa que tem vários ministérios como clientes, é um caso curioso na era Bolsonaro. No ano passado, foi contratada por 60 milhões para divulgar a imagem do governo no exterior, dobro da quantia do acordo anterior, firmado na era petista e que Bolsonaro rasgou em 2019 sob a alegação de ser “escuso”. A licitação que levou aos 60 milhões da FSB começou em novembro de 2021, mês em que o deputado Cacá Leão, do PP da Bahia, um soldado do presidente da Câmara, Arthur Lira, propôs mudança na legislação que, se vingasse, reforçaria a FSB nas concorrências federais. A alteração consistia em autorizar o uso do critério “técnica” em licitações de serviços de comunicação. A proposta virou lei em maio de 2022, um mês após o contrato de 60 milhões. Lira, recorde-se, aliou-se a Bolsonaro nas críticas às pesquisas eleitorais, ameaçou-as com criminalização. E, a propósito, acaba de receber o apoio do PT para ser reeleito presidente da Câmara em fevereiro. Dá para confiar nele?

E nos indicados de Bolsonaro para a Comissão de Ética da Presidência, dá?  Essa é uma das “pegadinhas” do capitão às vésperas da posse do sucessor. A comissão examina denúncias de falta de lisura por parte do alto escalão. Avalia também se há conflito de interesses entre os negócios privados e a atuação pública de ocupantes de cargos federais. Quando um ministro é nomeado, tem de entregar à comissão uma declaração sobre seus negócios particulares. O ­atual chefe da Economia, Paulo Guedes, escondeu do grupo a sociedade com a filha em uma empresa em um paraíso fiscal (e ficou por isso mesmo). O colegiado possui sete integrantes e, com Bolsonaro, nunca teve escalação completa. Só agora. Em 18 de novembro, o capitão nomeou, para mandato de três anos, João Henrique Nascimento Freitas, seu assessor especial, e Célio Faria Júnior, seu secretário de Governo e ex-chefe de Gabinete.

No grupo de transição dedicado ao tema “integridade”, as nomeações foram consideradas “inacreditáveis”, em razão do perfil dos escolhidos e do timing. Desde que a Comissão de Ética surgiu, em 1999, sempre teve composição técnica e sem vínculo com o presidente. Além disso, uma das indicações de agora exigiu a renúncia de uma integrante, Roberta Muniz Codignoto, cujo mandato venceria no próximo ano, o primeiro de Lula no poder. Entre os petistas, estuda-se um redesenho dos órgãos federais de controle e transparência, e talvez a Comissão de Ética possa vir a ser dissolvida e reconstruída.

Negócios suspeitos, na ABDI e na Secom, estão na mira da equipe de transição

A “gestapo” bolsonarista é outra casca de banana no caminho do presidente eleito. A comparação da Polícia Rodoviária Federal com a polícia nazista partiu de um integrante da equipe lulista que, na transição, toma conta do tema “segurança pública”. Nessa equipe, receia-se que a PRF faça corpo-mole na véspera da posse, diante do bloqueio de rodovias por fiéis do capitão, o que atrapalharia a chegada de público em Brasília. Preocupação ­pontual. O buraco é mais fundo e para ser tapado requer revogar portarias que ampliaram o poder da corporação.

Sob Bolsonaro, o perfil de atuação da PRF mudou, afirma Dovercino Neto, presidente da federação dos policiais rodoviários, a FenaPRF. “Salvar vidas” nas estradas deixou de ser o foco, combater o crime comum como polícia convencional ganhou peso. Foi o resultado do tipo de recrutamento via concurso (ênfase maior em Direito), do novo curso de formação (mais militarizado) e da chefia de Eduardo Aggio (de maio de 2020 a abril de 2021) e Silvinei Vasques (desde abril de 2021). A reorientação produziu dois episódios emblemáticos, ambos de maio. A morte de um motorista em Sergipe em um camburão convertido em câmara de gás e a execução de 23 moradores de uma favela do Rio durante uma operação da qual a “gestapo” participou. “O governo Bolsonaro foi o pior para a PRF”, diz Neto. Detalhe: na transição, comenta-se que documentos da corporação têm sido destruídos, para impedir a descoberta de verdades inconvenientes.

No Itamaraty, também há armadilhas. Embaixadores colaboracionistas de Bolsonaro tentaram cavar uma saída por cima no fim do atual governo, com indicações enviadas bem no meio da eleição ao Senado, a quem cabe aprovar chefes diplomáticos. A turma queria cargos vistosos, porém estratégicos para Lula, como o Vaticano (o petista tem relação pessoal com o papa Francisco) e Buenos Aires (idem com o presidente Alberto Fernández). Achilles Zaluar Neto, chefe de gabinete do chanceler Carlos França, desistiu do primeiro posto e Hélio Vitor Ramos Filho, embaixador em Roma, do segundo. Ambos foram desencorajados por colaboradores do presidente eleito e entenderam o recado.

Ainda há cinco situações delicadas, que o time do petista busca barrar no Senado. A mais sensível talvez seja aquela que envolve o secretário-geral do Itamaraty, Fernando Simas Magalhães, indicado para Roma. No lulismo, avalia-se que a Itália se tornará um polo global da extrema-direita, diante da recente chegada ao poder de Giorgia Meloni e seu partido neofascista. Permitir que um escolhido de Bolsonaro vá para lá seria correr o risco de ver o diplomata trabalhar pelos interesses do padrinho.

Chioro (esq.), ex-ministro, está estupefato com a terra arrasada na Saúde. Ramagem aparelhou a Abin de tal modo que a agência virou uma ameaça à estabilidade institucional – Imagem: Pablo Valadares/Ag.Câmara e Erasmo Salomão/MS

O tema ambiental terá destaque na política externa lulista. É outra terra arrasada. “É dilacerador ver o que foi feito com o sistema de proteção e fiscalização, o corte de verba e pessoal”, conforme Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente, cotada para ser secretária especial de Meio Ambiente. No dia desses comentários, soube-se do índice de desmate ilegal da Amazônia no atual governo, 45 mil quilômetros quadrados. No quadriênio anterior, havia sido de 28 mil. Para a ex-ministra, “o Brasil de hoje não tem controle sobre a Amazônia”. O que aconteceu na era Bolsonaro não será revertido apenas com as experiências do passado, será preciso aprender a lidar com situações novas. O País tem 35 mil garimpeiros em terras indígenas, retirá-los de cena será uma guerra. Idem a desmontagem do que se chama na equipe lulista de “narcogarimpo”.

Um integrante da transição antevê um abacaxi para o Ibama voltar a multar como no passado. Bolsonaro anistiou criminosos ambientais, estes estão felizes. Quando a mão do Estado pesar de novo, e incluam-se aí fazendeiros poderosos, a revolta será grande. “Teremos de recriar o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), nosso governo tem o diálogo como método”, afirma essa fonte. O Conama era um espaço de construção do consenso possível com a sociedade e foi esvaziado pelo atual governo logo no primeiro ano, 2019.

Entre armadilhas, cascas de banana e percalços, a equipe de transição trabalha sem saber quem terá um lugar ao sol no futuro ministério de Lula. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1237 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Campo minado”

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