Política

‘Bolsonaro e generais da extrema direita transformam ditadura em projeto de poder’

Para historiadora francesa, é difícil saber qual a penetração do discurso de rejeição da ditadura na opinião brasileira

Foto: EVARISTO SA / AFP
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No dia 31 de março, o Brasil lembra os 57 anos do início do regime militar que durou mais de 20 anos no País (1964-1985). Para comentar a decisão do governo brasileiro, o RFI Convida a historiadora Maud Chirio, uma das maiores especialistas francesas sobre a ditadura e os militares no Brasil.

O texto “Ordem do Dia”, assinado pelo novo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, alusivo ao dia 31 de março de 1964, considera que havia uma “ameaça real à paz e à democracia” no Brasil e que as Forças Armadas acabaram “assumindo a responsabilidade de pacificar o país” naquele momento. A historiadora francesa Maud Chirio diz “não se sentir surpresa” com a postura do novo ministro da Defesa do Brasil.

“Esse discurso sobre o golpe de 1964 já é bastante consensual na parte das Forças Armadas que aderiu ao projeto de poder que está em curso no Brasil, encarnado pelo Bolsonaro”, analisa. “A novidade não é a formulação deste tipo de leitura, mas que ela possa estar assumida e exposta pelo próprio governo. A gente sabe que o Bolsonaro e os generais ligados à extrema direita, todo esse grupo adere a uma leitura da ditadura de apologia, que considera que o golpe foi uma revolução redentora, heróica, que salvou o País do comunismo”, diz Chirio, que considera que os generais graduados já haviam uma enorme rejeição ao trabalho realizado pela Comissão da Verdade, durante o mandato de Dilma Rouseff no Brasil.

Maud Chirio lembra que recentemente o TRF-5 autorizou as instituições públicas a comemorarem de maneira ativa o golpe militar de 1964. “Em nome do pluralismo democrático, sendo que a leitura negativa da ditadura deveria ser a única a existir”, considera a especialista. “A novidade é que já não existe mais nenhum complexo no fato de considerar que agora isso deve ser a narrativa oficial dominante”, diz.

“É muito difícil de saber qual a penetração do discurso de rejeição da ditadura na opinião brasileira nos últimos 30 anos. Houve um trabalho muito importante feito pela Comissão da Anistia após 2007 e pelas Comissões da Verdade para produzir um discurso ancorado em arquivos e testemunhas para que essa leitura baseada em trabalhos históricos sejam uma memória disponível para a população brasileira”, lembra Maud Chirio.

“Mas é difícil saber até que ponto a grande maioria das pessoas ficou tocada pela narrativa que foi desenvolvida”, analisa a historiadora francesa. “Tenho cada vez mais a impressão de que existe um mundo dos políticos, dos jornalistas, dos acadêmicos, que vivem de forma paralela e não têm acesso a muitos imaginários populares, e que se iludiu durante muito tempo pensando que o que era consenso para nós também o era para o resto da população”, compara.

“Na verdade são outras fontes de informação, outras redes sociais, outro tipo de narrativa e eu não acho que 2021 seja o marco do início da construção de uma contra-narrativa [dos militares e de Bolsonaro], depois de uma narrativa consensual nos últimos 20 anos. Infelizmente eu acho que uma parte da população tem imaginários muito vagos e a confiança que eles possuem em um discurso depende diretamente da confiança que têm em seu locutor”, afirma Chirio.

A historiadora considera Jair Bolsonaro “muito fragilizado e acuado” neste momento. “O apoio social que ele tem está se reduzindo e isso pode significar uma melhora democrática. As pessoas tendo menos confiança nele, vão confiar menos no discurso oficial do governo”, acredita. “A maioria dos brasileiros hoje está muito preocupada com a própria sobrevivência alimentar, sanitária, e talvez muitas pessoas não considerem que a briga de discursos em torno de uma passado recente, absolutamente essencial do ponto de vista democrático, não seja problema deles”, considera.

“Infelizmente talvez a opinião brasileira não esteja muito engajada nesta briga. O trabalho pedagógico, a transição democrática não foi tão amplo quanto pensamos e isso não foi apenas falta de processo ou depuração histórica, mas também a falta de um trabalho de memória por parte da população como foi feito por exemplo na Argentina”, especifica a especialista. “Isso nunca foi feito junto às categorias populares, o que se tornou uma grande vantagem para que o campo da extrema direita possa justificar o que acontece agora como a reprodução de uma luta contra os comunistas corruptos, essa ‘entidade’ que já exisitia nos anos 1960, e que ficou congelada no tempo, como se o mundo nunca tivesse saído da Guerra Fria”, diz.

A historiadora afirma que os militares estão no poder no Brasil desde 2019 e “continuam”. “Não há uma divergência entre o Bolsonaro e a grande maioria dos altos oficiais do exército brasileiro em termos de projeto de poder e de visão da História”, analisa.

“O Brasil voltou à cena europeia por causa da volta do Lula à cena política e da situação sanitária, que o mundo está percebendo que é particularmente apocalíptica no Brasil”, diz. “Mas percebo que a volta do interesse pelo Brasil acontece sem que a mídia francesa tenha realmente percebido o que é a situação. Apenas muito recentemente os jornalistas franceses perceberam que os militares estão no poder”, afirma Chirio. “A democracia brasileira não é mais civil e isso é parte de uma consciência que os jornalistas estrangeiros ainda não têm”, analisa a historiadora.

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