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Árdua batalha

Mesmo com o cerco aos criminosos, o desmatamento segue em alta e desafia o governo

Foto: Casa Rosada/Presidência da Argetina e iStockphoto
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O Brasil é o lugar mais perigoso do planeta para quem tenta defender o meio ambiente. Nos últimos 11 anos, foram assassinados 368 ativistas ambientais no País, crimes em sua maioria sem mandantes identificados e cometidos de forma indiscriminada contra ambientalistas, servidores públicos, indígenas, quilombolas e defensores da terra. Os dados constam dos relatórios anuais elaborados pela ONG Global ­Witness e foram inúmeras vezes mencionados durante a segunda conferência internacional sobre o Acordo de Escazú, encerrada no domingo 23, em Buenos Aires.

Em vigor desde 2021, o documento que leva o nome da cidade costa-riquenha visa envolver os países de América do Sul, América Central e Caribe em um novo marco legal, capaz de tornar mais ágeis os mecanismos de prevenção e julgamento de crimes contra defensores do meio ambiente, bem como aumentar a transparência e a participação da sociedade civil nos processos criminais ambientais. Mas o pacto foi validado por apenas 15 países, o que dificulta a sua real implementação. Embora seja signatário, o Brasil é um dos que não ratificaram o acordo, trâmite que ­depende da aprovação do Congresso Nacional.

A excessiva demora para ratificar o Acordo de Escazú também constrange o País no exterior

Tudo estava preparado para o País chegar à conferência com o acordo ratificado, cenário fortalecido pela presença da ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, na capital argentina. O redivivo protagonismo brasileiro nas questões ambientais globais seria concretizado com a escolha do experiente ambientalista Rubens Born para o comitê internacional de sete pessoas da sociedade civil que monitorará o cumprimento dos termos acordados, mas isso não aconteceu. Apesar dos esforços de Marina, a Casa Civil não enviou a tempo o texto do Acordo de Escazú para a aprovação do Congresso, o que transformou a participação brasileira no encontro em uma enorme frustração. “Foi um constrangimento muito grande. A quantidade de assassinatos de populações indígenas, lideranças de comunidades tradicionais e ambientalistas demonstra a necessidade de o Brasil ter ratificado esse acordo. Deveria ter sido um dos primeiros, mas, infelizmente, isso não aconteceu”, lamentou a ministra, ao falar com CartaCapital.

Marina Silva coloca, porém, o constrangimento na conta de Jair Bolsonaro. “O governo anterior era contra a ratificação e, portanto, o Brasil ficou de fora. Agora vamos trabalhar para que ele seja aprovado, para que possamos fazer o enfrentamento das ameaças e violências, além de trabalhar com transparência as informações na área ambiental.”

De acordo com uma fonte do Palácio do Planalto, o Acordo de Escazú não foi enviado por conta das “dúvidas ainda existentes” sobre a real base de sustentação do governo na Câmara. Born avalia que a não ratificação influenciou a votação que acabou preterindo seu nome, considerado um dos favoritos, para o Comitê de Apoio à Implementação do Acordo: “Para além das articulações políticas regionais, o Brasil não ter ainda ratificado o acordo muito possivelmente contribuiu para a minha não escolha”, diz o dirigente do Fórum Brasileiro de ONGs do Meio Ambiente. Em todo caso, o episódio foi um inequívoco sinal de que ainda é grande a distância entre as intenções ambientais do governo Lula e a realidade política num Parlamento dominado pelo fisiologismo.

Sinais contraditórios também são emitidos pelo Brasil no que diz respeito ao desmatamento. De um lado, o anúncio feito por Joe Biden, de que os EUA doarão nos próximos cinco anos 500 milhões de dólares ao Fundo Amazônia e se empenharão em buscar outros doadores, aumenta as possibilidades de novas políticas públicas para a região. Por outro lado, ecoou pelo mundo a notícia de que o desmatamento, seguindo a tendência observada em 2022, continuou a aumentar nos primeiros meses do novo governo, mostrando que a meta anunciada por Lula e Marina não será cumprida facilmente. Segundo o sistema Deter, utilizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, a devastação atingiu 322 quilômetros quadrados em fevereiro, a maior marca para o mês. Já os dados de satélite divulgados pelo instituto Imazon, que não fazem parte da estimativa oficial do governo, mostram que, em março, o desmatamento triplicou em relação ao ano passado, com 867 quilômetros quadrados derrubados, a segunda maior marca histórica, atrás somente de 2021 (1.185 quilômetros quadrados).

Marina Silva aponta como prioridades de aplicação dos recursos do Fundo Amazônia o investimento no combate às ilegalidades e o apoio à regularização e ordenamento territorial dentro das Terras Indígenas, além de projetos relativos à segurança alimentar, sem prejuí­zo de outros planos sobre economia ou pesquisa, tecnologia e inovação. A expectativa é pela retomada de investimentos em 14 projetos que estavam aprovados, mas foram suspensos pelo governo Bolsonaro. “Esses projetos serão retomados mediante um pedido de seus proponentes. Estamos fazendo uma discussão para acelerar a tramitação e implementação dos projetos. Desde que o Fundo foi criado, em 2008, há morosidade na sua implementação, mas estamos trabalhando para acelerar o processo”, afiança a ministra.

Morte e vida. Um jabuti incluído na MP 1150/2022 ameaça o que sobrou da Mata Atlântica. O ecoturismo pode ajudar a revitalizar as unidades de conservação – Imagem: Bruno Kelly/Amazônia Real e iStockphoto

No setor ambiental, o balanço das ações do governo federal segue positivo e as dificuldades em frear o desmatamento são consideradas naturais para o início de uma gestão de reconstrução, sobretudo após o desmonte bolsonarista. Existem, porém, cobranças para que os resultados apareçam logo. “A redução do desmatamento só ocorrerá quando houver uma reversão consciente da fragilização das instituições responsáveis pela fiscalização e quando o discurso do novo governo ganhar mais materialidade”, observa a WWF Brasil. Enquanto os efeitos do desbloqueio do Fundo Amazônia ainda não se fazem sentir, os ambientalistas pedem para o quanto antes o desbloqueio de outras fontes de recursos. “Esperamos que os diferentes mecanismos financeiros de engajamento de projetos da sociedade civil e de governos subnacionais, como o Fundo Amazônia, o Fundo Nacional do Meio Ambiente e o Fundo Nacional de Mudanças do Clima, tenham recursos disponibilizados não só para ações emergenciais, mas para projetos estruturantes. E que outros fundos como o Funbio, e inclusive fundos privados, possam ter sinergia com os fundos de caráter público”, afirma Rubens Born, a cobrar ainda o apoio financeiro de instituições como Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES.

O medo da rejeição ao Acordo de ­Escazú não é o único obstáculo ambiental do governo Lula no Congresso. Um exemplo disso é o jabuti inserido na Medida Provisória 1150/2022, que altera a Lei da Mata Atlântica e flexibiliza as regras de desmatamento do bioma que hoje só tem como remanescente pouco mais de 12% de sua cobertura original. Aprovada na Câmara com a bênção do deputado Arthur Lira, presidente da Casa, a matéria aguarda a apreciação do Senado, onde a bancada governista pretende derrubá-la. Em todo caso, os ambientalistas esperam o veto de Lula. “Se o texto for confirmado pelo Senado e sancionado pelo presidente da República, representará retrocesso histórico nas normas de proteção ambiental. A MP permite que um proprietário que tenha derrubado a floresta além do permitido por lei, inclusive no entorno de rios e nascentes, não tenha mais prazo para recuperar aquela vegetação e não seja punido nesse período indeterminado”, resume a organização SOS Mata Atlântica.

Além disso, pode esbarrar no Congresso o desejo do Ministério do Meio Ambiente de retirar as Unidades de Conservação da lista de privatizações proposta pelo governo Bolsonaro. Ao todo, 14 delas estão incluídas no Programa Nacional de Desestatização, mas o governo promete reavaliar até junho as áreas anunciadas. Servidor do ICMBio e ex-superintendente do Ibama no Rio de Janeiro, Rogério Rocco diz que, em primeiro lugar, é preciso alterar a concepção do plano de privatização: “Ele não representa as possibilidades legais relacionadas a eventuais parcerias com setores privados na oferta de serviços. A gestão de um Parque Nacional ou de uma das 12 categorias do Sistema Nacional de Meio Ambiente é do Poder Público, do ente que criou a Unidade de Conservação. Então, não há privatização de nada”.

O advogado acrescenta que o modelo de concessão existente permite que a iniciativa privada incremente serviços que promovam maior bem-estar do visitante ou maior interação dele com a natureza. “A iniciativa privada é importante aliada em várias estratégias de conservação. Precisamos dialogar com as instâncias privadas que podem oferecer serviços cobrados aos visitantes e também com setores sem fins lucrativos. As instituições de ensino também são parceiras importantes, assim como as representações de populações tradicionais e de trabalhadores rurais que dialogam com a conservação. Estes são os parceiros que precisamos na gestão das UCs.”

Muita gente pensa diferente no Congresso, como provam os 19 projetos em trâmite nas duas Casas Legislativas e que pretendem modificar a legislação relativa às UCs. A maioria deles, todos da bancada ruralista, pretende alterar os limites ou regras de unidades importantes e muito visitadas, como os parques nacionais do Iguaçu, dos Lençóis Maranhenses e da Chapada dos Veadeiros, entre outros, sempre em privilégio do lucro privado. “O Congresso é fruto de um sistema eleitoral ultrapassado, somado ao governo passado e seus quatro anos de negacionismo e desmonte do Estado”, diz Pedro Ivo Batista, do Instituto Terrazul e também dirigente do Fórum Brasileiro de ONGs do Meio Ambiente. O ambientalista avalia que as dificuldades serão grandes, mas não intransponíveis: “É um governo dirigido pela esquerda, mas é amplo e deve reunir todos os democratas, mesmo os que não são de esquerda. O que está em jogo é ter um país soberano e, no caso do Brasil, também sustentável e que garanta nossa diversidade cultural, étnica, social e biológica”.

Sem proteger as florestas, o acordo do Mercosul com a União Europeia não avança, alerta Marina Silva

Marina Silva afirma não haver dúvidas de que “existe dificuldade com a parte do Congresso que trabalha para manter a lógica bolsonarista e sua agenda contrária ao meio ambiente, aos direitos humanos e aos povos indígenas”. Segundo a ministra, é preciso que se crie um espaço de diálogo com o conjunto do Parlamento. “Para mostrar que mesmo aqueles que são oposição ao governo, mas não têm uma agenda de ódio contra as políticas ambientais, podem separar o estratégico daquilo que é o ordinário da ação parlamentar.” Não tardará para a agenda ambiental do governo ser novamente posta à prova. “Teremos, por exemplo, de fechar o acordo entre a Europa e o Mercosul. Se a mensagem que o Congresso passar for a de que vai alterar a lei em prejuízo da proteção da Amazônia e dos povos indígenas, o acordo não fecha. É preciso pensar uma agenda estratégica, na qual governo e oposição priorizem o interesse maior do Brasil.” •

Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.

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