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Antes das ucranianas, Arthur do Val tentou colocar as garras em secundaristas paranaenses

Caso ocorreu em 2016, quando o movimento estudantil ocupou mais de 800 escolas públicas no Paraná em protesto contra a reforma do ensino médio do governo Michel Temer

Antes das ucranianas, Arthur do Val tentou colocar as garras em secundaristas paranaenses
Antes das ucranianas, Arthur do Val tentou colocar as garras em secundaristas paranaenses
O deputado e youtuber, antes de ficar famoso mundialmente, foi acusado de assediar uma menor, cliente de Mandarino - Imagem: Carol Jacob/ALESP e Arquivo pessoal
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Quem acompanhou com certo interesse antropológico a meteórica carreira de youtuber e político de Arthur do Val, o “agitador” Mamãe Falei, sabia que um dia o peixe morreria pela boca. Ninguém imaginava, no entanto, que o boquirroto seria fisgado a milhares e milhares de quilômetros, quase do outro lado do planeta, diante dos olhos do mundo e em meio a uma guerra de proporções ainda indefinidas. As ucranianas são fáceis por serem pobres, afirmou em linhas gerais no áudio vazado, depois de “colar em dois grupos de minas” em um momento, quem sabe, de merecido descanso do guerreiro, após o esforço humanitário de fabricar coquetéis molotov a serem lançados contra os blindados russos.

O que era para ser uma viagem heroica, repleta de dividendos eleitorais, transformou-se em uma ridícula, mas didática exibição do machismo brazuca e sul-americano, que, entre tantas bizarrices, reproduz a subalternidade em relação ao Hemisfério Norte. Misto de chauvinismo, recalque adolescente e autoengano, as declarações do deputado estadual conseguiram, não se pode negar, o feito inédito de possibilitar uma verdadeira frente ampla contra a barbárie. Até o fechamento desta edição, 12 pedidos de cassação tramitavam na Assembleia Legislativa de São Paulo, assinados por 26 parlamentares de distintos partidos. As diferenças ideológicas foram postas de lado: defensoras e defensores da perda de mandato vão de Janaína Paschoal, que assinou a peça do impeachment de Dilma Rousseff e foi tomada por um espírito aparentemente cívico que a fez girar freneticamente uma toalha durante um evento a favor do golpe contra a petista, à psolista Isa Penna, ela mesma vítima de um assédio no Parlamento paulista. O Podemos, partido ao qual o deputado garanhão se filiou recentemente para concorrer ao governo do estado e dar palanque ao ex-juiz Sergio Moro, aceitou sua desfiliação. A candidatura foi para o brejo. E, humilhação das humilhações, Arthur do Val serviu de escada para Bolsonaro posar de civilizado. “Tão asquerosa que não merece comentário”, disparou o ex-capitão sobre a gravação vazada. Tempos estranhos.

Em inúmeras entrevistas, cujo conteúdo foi confirmado por e-mail em resposta às perguntas de CartaCapital, o deputado anunciou ainda o seu desligamento do MBL, o movimento juvenil apoiador do lavajatismo, bolsonarista por conveniência no passado, hoje rompido com Bolsonaro. Repetiu também que sua maior preocupação é recuperar a confiança da ex-noiva, abalada pelos fatos, e disse que as frases lamentáveis foram proferidas em “um momento de empolgação” e não refletem seu pensamento. É bem provável que o grupo de “minas” ucranianas não tenha entendido exatamente o que se passava, mas secundaristas paranaenses conhecem de experiência própria o “momento de empolgação” do parlamentar youtuber.

Em 2016, o movimento estudantil ocupou mais de 800 escolas públicas no Paraná em protesto contra a reforma do ensino médio do governo Michel Temer. No papel de Mamãe Falei, Do Val decidiu viajar a Curitiba para provocar os estudantes. Foi além. A universitária Isabele Moro, sem nenhum parentesco com o ex-juiz, à época aluna de Filosofia na PUC e voluntária nos protestos, denunciou que o youtuber chegou às manifestações com uma câmera e, sem pedir permissão, começou a gravar e a entrevistar. “Suas perguntas eram sarcásticas, com tons provocativos”, lembra. A primeira providência da organização foi acessar o canal do youtuber. Perceberam que não se tratava de um veículo sério e responsável. “Pedimos que saísse, mas ele permanecia no local. Passou a fazer piadas sexistas. Disse que tinha me achado uma gracinha e perguntou se não tinha interesse em ficar com ele.” A universitária respondeu que era noiva e exigia respeito. “Ele debochou e riu. Voltou a perguntar se, caso fosse solteira, ‘ficava comigo’.” Insistia em dizer, de maneira pejorativa: “Vocês são gostosas. Se me acharem bonito é só chegar. Posso beijar todas as meninas”.

Tânia Mandarino, advogada da adolescente assediada, se coloca à disposição da Assembleia Legislativa

Mamãe Falei não conhecia limites. Segundo a advogada Tânia Mandarino, sem enquadrar as imagens, o youtuber, na sequência das provocações verbais, passou a mão no seio e na cintura de “Karol”, nome fictício de sua cliente, que à época tinha 17 anos. Os colegas reagiram. Afastaram o youtuber e o colocaram para fora do colégio. Visivelmente assustada e constrangida, a estudante, na companhia da irmã e de um advogado, registrou a ocorrência na Delegacia da Mulher. Para surpresa geral, o futuro deputado também se dirigiu à delegacia e exigiu o direito de registrar um B.O. Enquanto permaneceu na delegacia, manteve a transmissão dos acontecimentos em seu canal. “Ele fez uso de palavras desrespeitosas, distorcia os fatos e debochava da própria instituição policial, por ser a Delegacia da Mulher”, diz Mandarino.

O assédio resultou em processo encaminhado pela Promotoria à Vara de Infrações Penais Contra Crianças e Adolescentes de Curitiba. A ação acabou arquivada, por se tratar, segundo o juiz do caso, de uma contravenção penal chamada “importunação ofensiva”. O Ministério Público recorreu ao Juizado Especial Criminal e novamente o processo foi encerrado por insuficiência de provas. Dois anos mais tarde, Do Val ingressou com uma ação por danos morais contra a estudante, na qual pedia 15 mil reais. Alegou ter sido vítima de “enorme preocupação e angústia”. Antes da audiência, o deputado publicou fake news sobre o processo. Em uma delas, abaixo da foto de Mandarino, postou a seguinte legenda: “A advogada da estuprada é do PT”. A ­juíza responsável negou a indenização ao youtuber e, por decisão da cliente, ­Mandarino desistiu de pedir uma reversão do pagamento a favor da estudante.

Passados quase seis anos, a advogada conta que, ao ouvir as gravações dos áudios na Ucrânia, veio à mente os episódios de 2016. “Era o mesmo tom de voz debochado, desrespeitoso, sarcástico. O que as pessoas precisam saber é que não se trata de um fato isolado, mas são traços do caráter, do modus operandi de alguém que não tem respeito pelo seu semelhante, notadamente quando se trata de mulheres.” Relembra que sua cliente foi alvo de ameaças e bullying que deixaram profundas marcas em sua vida. ­Atualmente “Karol”, 23 anos, está casada e tem um filho. Mandarino coloca-se à disposição dos parlamentares paulistas. Ela espera que a Assembleia Legislativa de São Paulo casse o mandato do assediador. “Vou conversar com a minha cliente e outras testemunhas, para uma possível eventualidade de serem ouvidas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1199 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Ficha corrida”

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