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Amazônia em transe

Além do povo Yanomâmi, outras seis etnias estão ameaçadas pelo garimpo e demais atividades ilícitas

Invasões. Os Xikrins também padecem com obras de infraestrutura, a exemplo da Usina de Belo Monte. Barroso, do STF, ordenou a desintrusão de sete territórios - Imagem: Romério Cunha/VPR e Carlos Alves Moura/STF
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Não trocamos ouro pela vida de nossos filhos e nossos netos. O garimpo destrói nossa cultura, nossas florestas, envenena nossos rios, cria conflitos com nossos parentes e acaba com os nossos locais sagrados”, afirmam, em carta datada de 2021, as lideranças dos povos Ye’Kwana, ­Yanomâmi, Xikrin, Kayapó e Munduruku, que habitam algumas das terras indígenas mencionadas por Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal, no despacho em que ele determina ao governo federal a expulsão dos garimpeiros ilegais que invadiram sete áreas demarcadas. Se o apelo dos indígenas tivesse sido respeitado, talvez o mundo não estaria assistindo estarrecido à tragédia humanitária que se abateu sobre os Yanomâmis.

As etnias Ye’Kwana e Yanomâmi dividem o mesmo território, em Roraima, e se unem aos Kayapós e Mundurukus, no Pará, numa luta antiga contra o avanço da mineração clandestina. O segundo estado, por sinal, abriga a maior concentração de garimpos ilegais em terras indígenas do País, até mais que na TI ­Yanomâmi. Segundo o MapBiomas, em 2021, a TI ­Kayapó tinha 11.542 hectares de área degradada pela atividade, seguida pela Munduruku, com 4.743 hectares de destruição. “Vemos a consequência disso na nossa saúde, na nossa cultura, na floresta. O garimpo interfere diretamente em nossa sobrevivência. É triste observar o que que está acontecendo”, lamenta Maial Paiakan, filha de Paulinho Paiakan, um dos grandes líderes da etnia Kayapó, que morreu em 2020 vítima da Covid-19.

As TIs Kayapó, Munduruku e ­Yanomâmi abrigam o maior número de garimpeiros ilegais e têm sido palco das maiores atrocidades contra a população indígena. A tragédia humanitária dos Yanomâmis, que escandalizou o mundo com imagens de crianças, adultos e idosos morrendo por desnutrição severa e doenças tratáveis, como a malária, pode repetir-se nas outras duas áreas demarcadas, caso a decisão de Barroso não seja cumprida. Na TI Trincheira Bacajá, também no Pará, onde vivem os Xikrins, o maior problema não é o garimpo, e sim o estrago provocado pela ação de ruralistas. Posseiros e grileiros adentram o território para extrair madeira ilegalmente. Os Xikrins também padecem com grandes obras de infraestrutura, como a hidrelétrica de Belo Monte e a abertura de estradas. Para fazer a usina, o Rio Bacajá, que deságua no Xingu, teve seu fluxo abalado, impedindo a navegação e matando os peixes que abasteciam os indígenas. A Trincheira Bacajá é apontada como uma das TIs mais desmatadas do Brasil.

Enquanto o governo Lula aperta o cerco, os criminosos da floresta buscam se vingar dos indígenas

Na ação do STF também figuram os territórios Karipuna e Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, e Arariboia, no Maranhão, todos no interior da Amazônia Legal e abalados por sangrentos conflitos fundiários, decorrentes da ação ilegal de invasores brancos. A decisão de Barroso, assinada em 30 de janeiro, é uma resposta à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de autoria da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, conhecida pela sigla Apib, em parceria com as bancadas do PSB, Rede, PSOL, PT, PDT e PCdoB. A ação remonta a 2020, fase mais aguda da pandemia de Covid-19, e cobra a proteção do Estado aos povos indígenas contra o Coronavírus e ao “sagrado direito de existir e de não ser exterminado”. Como parte do processo, a Apib enumera estes sete territórios, todos com grande quantidade de povos isolados e de contato recente, sob permanente ameaça de violência praticada pelos criminosos da floresta.

À época, o STF determinou que a União tomasse medidas para conter e isolar os invasores, o que não aconteceu. Ao contrário, durante a pandemia, o desmatamento das TIs, em vez de diminuir, aumentou com a escalada das invasões. “Em dado momento, Barroso obrigou a União a assegurar a vida, a segurança e a saúde dos indígenas da Terra ­Munduruku, uma das TIs mais ameaçadas pela atuação de criminosos”, comenta Juliana De ­Paula Batista, assessora jurídica do Instituto Socioambiental (ISA). Em resposta à Suprema Corte, o governo Bolsonaro maquiava alguma proteção aos indígenas, ao mesmo tempo que fazia vista grossa para a atuação dos invasores.

As ações do novo governo para expulsar os garimpeiros da TI Yanomâmi e a recente decisão do ministro do STF para ampliar a desintrusão para os outros seis territórios têm deixado a comunidade indígena apreensiva, com medo de retaliações das máfias que atuam na Amazônia. No domingo 5, três indígenas foram assassinados e os corpos encontrados dentro de uma das aldeias Yanomâmis. Suspeita-se do envolvimento de garimpeiros na chacina. O Ministério da Justiça deu um prazo de duas semanas para os invasores deixarem a TI e alguns começaram a fugir pelos rios. O ministro da Justiça, Flávio Dino, negou ajuda aos criminosos para a remoção do maquinário de mineração. Eles podem deixar o local de forma pacífica, mas isso não significa que serão anistiados pelos crimes, tratou de esclarecer.

Impacto. O garimpo costuma inaugurar os primeiros vetores de desmatamento nas áreas demarcadas para os indígenas – Imagem: Felipe Werneck/Ibama

Segundo Dino, as investigações prosseguem e todos serão responsabilizados. “O foco prioritário são os financiadores, os donos dos garimpos. Claro que temos os executores de crimes ambientais. Esses estão sendo identificados por imagens e também serão alvo do inquérito policial”, assegurou. Mais de 500 servidores estão envolvidos na tarefa de retirada dos garimpeiros da TI Yanomâmi, entre policiais federais, militares das Forças Armadas e homens da Força Nacional. “Vivemos um período de transição e esses momentos costumam ser muito violentos no Brasil, sempre foram. Os criminosos vão tentar se vingar de quem puderem. É uma reação à ação do governo. Antes, eles tinham uma impunidade garantida por Bolsonaro”, analisa o antropólogo Felipe Milanez, professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano e estudioso das questões indígenas.

A onda de violência contra os indígenas, acrescenta o pesquisador, intensificou-se nos últimos quatro anos, mas ganhou força ainda maior em 2022, ano eleitoral, sobretudo após a confirmação da derrota de Bolsonaro. “Mesmo sem essa ação de Lula agora, existia um clima muito tenso desde o ano passado. Houve várias ameaças de morte e tentativas de assassinatos em outubro, novembro e dezembro. O próprio assassinato de Bruno Pereira e Dom Philips foi nesse clima. O raciocínio desses criminosos vai nessa linha, de tentar se livrar dos inimigos antes que não seja mais possível.”

Professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), o geó­grafo Bruno Malheiros conhece bem a atuação dos garimpeiros nas TIs do estado. Ele lembra que a mineração ilegal sempre esteve presente na região, mas nunca de forma isolada, e acrescenta que a atividade, historicamente, antecipa as frentes econômicas na Amazônia. “O garimpo inaugura, de certa maneira, a abertura de algumas estradas e a expansão da pecuária. Existe uma complexa teia de relações de um capitalismo de morte, a reunir diversas atividades ilegais, como grilagem de terras, extração de madeira e pesca ilegal. É preciso entender a genea­logia dessas atividades, que funcionam matando gente ou a natureza”, denuncia.

“Existe uma complexa teia de relações de um capitalismo de morte”, denuncia o geógrafo Bruno Malheiros

Um dos casos de grande repercussão da violenta ação de garimpeiros no Pará aconteceu em 2021, durante o governo Bolsonaro, quando a casa da líder indígena e coordenadora da associação Wakoborũn, Maria Leusa Munduruku, foi incendiada. O ataque foi em resposta a uma operação da Polícia Federal e da Força Nacional para combater a prática clandestina.

Em Rondônia, na TI Uru-Eu-Wau-Wau, os indígenas, muitos deles isolados, vivem em constante conflito com posseiros e pecuaristas. Em geral, os criminosos tentam cooptar alguns indígenas, trazendo-os para o seu lado, e se instalam em áreas na fronteira das TIs para facilitar a atividade ilegal que pretendem instalar no local. Nesse contato, apresentam aos povos originários as mazelas ilícitas presentes nas cidades. “O tráfico de madeira funciona muito parecido com o garimpo. Aí você vê o uso de drogas por parte dos indígenas, prostituição, tudo isso que vem com os invasores”, destaca Pietra Perez, doutoranda do curso de Geografia Humana da Durham ­University, na Inglaterra, e estudiosa da situação indígena no sul do Pará.

Os indígenas da TI Karipuna são vítimas de violência desde o ciclo da borracha, no início do século XX, com a inauguração das primeiras ferrovias da região. Atualmente, esse povo luta contra posseiros, madeireiros, caçadores e pescadores ilegais. “Algumas TIs enfrentam ainda o narcotráfico. Muitos dos invasores usam o território para cultivar drogas. E a presença desses invasores não é pacífica. Nunca foi”, salienta Gilderlan Rodrigues, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

O medo é uma marca registrada da TI Arariboia, no Maranhão. Só em janeiro deste ano foram três assassinatos e duas tentativas de homicídio. O último, em 31 de janeiro, teve como vítima um motorista da Secretaria Especial de Saúde Indígena, Raimundo Ribeiro. Casado com a líder indígena Marta Guajajara, Ribeiro foi morto em serviço, quando dirigia uma caminhonete da própria Sesai e foi abordado por dois homens em uma motocicleta que atiraram nele. Amigos e familiares da vítima estão assustados e preferem não comentar sobre o crime, atribuído à ação de madeireiros.

Dias antes do assassinato de Ribeiro,­ foi registrada a morte de José ­Inácio ­Guajajara e de Valdemar ­Marciano ­Guajajara. Valdemar, inclusive, fazia parte do grupo de Guardiões da Floresta, responsável por monitorar e denunciar invasões no território. A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, reuniu-se com o governador do Maranhão, Carlos Brandão, para definir um plano para conter a violência na região e apurar os crimes. “Além do garimpo, da derrubada de madeira e da floresta, temos denúncias de violência física, cultural e sexual, e de arrendamento ilegal de terras indígenas, que flexibiliza o usufruto exclusivo fixado no texto constitucional. Já denunciamos em ambientes internacionais, na Sexta Câmara, no próprio Judiciário brasileiro, temos demandas levadas à Defensoria Pública, aos órgãos de governo”, enumera Rafael Modesto, advogado do Cimi. “Com o novo governo, esperamos que esses problemas sejam sanados.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Amazônia em transe “

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