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Alta voltagem

A batalha de Lula para reaver o comando da Eletrobras contra o mercado e Arthur Lira

Aliança. Lira, à frente de uma Câmara dos Deputados “liberal”, promete fazer de tudo para impedir a reestatização da companhia, promessa de campanha de Lula – Imagem: Fernando Frazão/ABR e Bruno Spada/Ag. Câmara
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Em 16 de dezembro do ano passado, a Agência Nacional de Energia Elétrica realizou um leilão para encontrar empresas dispostas a investir em linhas de transmissão. A maior companhia do setor na América Latina não estava entre as escolhidas para tirar do bolso 3,5 bilhões de reais em cinco anos. Fazia seis meses que a ­Eletrobras havia sido privatizada, e uma das justificativas usadas pelo governo Jair Bolsonaro para a venda era que, sob comando estatal, a holding perdera capacidade de investimento. Duas semanas após a desestatização, em junho, a Aneel promovera um leilão parecido, e dos 15 bilhões em investimentos, a ­Eletrobras tinha aportado meros 134 milhões, a fim de pôr de pé, em Rondônia, uma linha de transmissão de 11 quilômetros, pouco menos do que os 13 quilômetros da ponte Rio-Niterói.

Apesar da justificativa da administração Bolsonaro, dinheiro em caixa não é exatamente o problema da empresa. De 2011 a 2022, a Eletrobras acumulou lucros de 14 bilhões de reais. Em 30 de dezembro passado, duas semanas depois de ter ficado de fora do último leilão da Aneel, os acionistas reuniram-se em uma assembleia extraordinária e decidiram distribuir a si próprios 863 milhões em dividendos, seis vezes o valor da obra em Rondônia (o lucro anual foi de 3,6 bilhões). Aproveitaram o embalo e aumentaram o salário de diretores e integrantes do conselho de administração. Os ganhos dos primeiros saltaram de 50 mil para 348 mil por mês. Aqueles dos segundos, convocados esporadicamente, ficou em 26 mil. “O objetivo da Eletrobras agora é, acima de tudo, lucrar e distribuir dividendos. E seus novos controladores não hesitarão em remunerar bem aqueles que se mostrarem alinhados e dispostos a passar por cima de tudo, até mesmo dos compromissos com a população brasileira, para alcançar lucros cada vez maiores”, afirmou na assembleia o representante da associação dos trabalhadores da empresa, a Aeel, uma das acionistas.

O governo recorreu ao Supremo para derrubar cláusulas que limitam a voz da União no conselho

No mês passado, outra assembleia extraordinária retirou a Aeel do conselho de administração. Em uma reunião posterior, ordinária, que sempre ocorre em abril, os acionistas voltaram a elevar o salário da cúpula. A remuneração de cada um dos 12 diretores pulou para 578 mil mensais e a dos nove conselheiros, para 188 mil. Nas duas assembleias, o maior acionista foi derrotado. O governo Lula era contra encher o bolso da ­cúpula e chutar a Aeel para fora do conselho. Apesar de ter 43% da companhia, a União detém apenas 10% dos votos. A camisa de força foi imposta pela lei da privatização, de 2021. A desestatização da Eletrobras não seguiu um modelo clássico, em um leilão. Deu-se da seguinte maneira: a companhia lançou ações novas no mercado, o governo ficou proibido de comprá-las e sua fatia caiu abaixo de 50%. Desde então, quem manda é um bloco de acionistas formado por bancos e fundos, inclusive estrangeiros.

Para tentar anular o limite legal de 10% dos votos, o presidente Lula, por meio da Advocacia-Geral da União, entrou no Supremo Tribunal Federal em 5 de maio. Em caso de vitória, o governo poderá retomar o controle da ­Eletrobras. Teria de fazer acordo com um acionista minoritário para montar um bloco com mais de 50% dos votos. Nos bastidores, comenta-se que Nelson Hubner, ministro de Minas e Energia de Lula de 2007 a 2008, estaria em contato com fundos estrangeiros. A batalha do governo pela companhia não será fácil. Na outra trincheira há gente poderosa. É o caso do trio de bilionários Jorge ­Paulo Lemann, Carlos ­Alberto Sicupira­ e ­Marcel Telles, do fundo 3G, um dos acionistas que agora dão as cartas na elétrica. E do deputado Arthur Lira, o presidente da Câmara que adora uma causa patronal e acaba de liderar a derrubada de decretos de Lula sobre saneamento (o Senado ainda votará o assunto). De quebra, quem cuidará da ação do governo no Supremo será um juiz nomeado por Bolsonaro com as bênçãos do “Centrão” de Lira: Kassio Nunes Marques.

Tubarões. Enrolado na Americanas, o trio Lemann, Sicupira e Telles é um daqueles que mandam na Eletrobras – Imagem: Redes sociais

A AGU alega que o teto de 10% dos votos é uma “grave lesão ao patrimônio e ao interesse públicos”. E que, por baixo dos panos, o limite tem sido violado pelos sócios minoritários, que fazem acordos às escondidas. Pela lei de 2021, o teto vale não só para um sócio isolado, mas para alianças entre grupos de acionistas. “Confiamos que o ministro Nunes Marques vai ter uma análise técnica da ação, a tese é forte”, diz Flávio ­Roman, número 2 da AGU. O governo pediu ao Supremo uma liminar, ou seja, uma decisão individual e rápida, que independa de um julgamento no plenário após os ritos de praxe. Marques não tem prazo para tomar uma decisão sobre o pedido, mas, assim que o fizer, os demais ministros terão 90 dias para julgá-la. “A liminar é importante. O setor elétrico tem passado por transformações, há a transição energética, e o governo quer ser o condutor, não o passageiro desse processo”, afirma Roman.

Desde a campanha, Lula deixara claro ao “mercado” que, se vencesse a eleição, tentaria reaver o controle da Eletrobras, considerada estratégica (foi graças à empresa que nos mandatos anteriores o petista levou adiante o programa Luz para Todos). Em um café da manhã com jornalistas, em 7 de fevereiro, o presidente tinha anunciado que a AGU recorreria aos tribunais para “rever esse contrato leonino contra o governo”. Chamara de “bandidagem” cláusulas na lei da privatização que limitam o poder de intervenção da União. Não se referia só ao teto de 10% dos votos, mas à regra que fixa um ágio de 200% no preço das ações, caso o comprador seja o governo. “Se a gente conseguir fazer a economia crescer, e a gente puder (ter dinheiro para) comprar mais ações, a gente vai comprar”, declarou no café. Sobre o ágio, a AGU considera ser tema complexo, pendente de mais estudos.

Em viagem a Londres para a coroação do rei Charles III, o presidente comentou que a ação da AGU não é reestatização: “Eu não entrei (na Justiça) contra a privatização da Eletrobras. Eu ainda pretendo entrar”. Jogo retórico ao qual aderiu até o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, que não é do PT. O governo quer voltar a comandar a companhia sem dizer que é reestatização. Uma aposta de que haveria mais chance de vitória no Supremo, caso o debate seja jurídico, não ideológico.

Como pano de fundo desponta uma batalha entre bilionários: de um lado, Lemann e Cia., do outro, André Esteves

Lira, que também estava no exterior, atacou publicamente a iniciativa. “Essas questões de rever privatização preocupam, você pode até não privatizar mais, mas mudar um quadro que já está jogado definido e com muitas pessoas, e com muitos grupos e com muitos países investindo, realmente causa ao Brasil uma preocupação muito forte.” Disse mais: o Congresso passado “acertou” ao aprovar a lei da privatização e o atual é “bem conservador, liberal”, o que dará trabalho ao Palácio do Planalto. Merecido, portanto, o prêmio de “o homem do ano” que Lira acaba de receber em Nova York da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos. É de se esperar que o deputado pressione Marques.

Espera-se ainda pressão por parte dos bem remunerados advogados da ­Eletrobras e de seus acionistas sobre o magistrado. Em comunicado, a companhia afirma que a iniciativa do governo Lula “contraria as premissas legais e econômicas” que embasaram decisões empresariais desde a privatização e que levaram cidadãos comuns a comprarem ações da companhia de lá para cá. A propósito, uma ação da Eletrobras custava 39 reais às vésperas da privatização, 40 reais na posse de Lula e 39 reais na quarta-feira 10. O comunicado foi assinado pela vice-presidente-financeira e de relações com investidores, ­Elvira Cavalcanti Presta, uma das faces de Lemann, Sicupira e Telles na diretoria.

Os três bilionários estão enrascados no escândalo da Lojas Americanas, controlada pelo 3G. A rede varejista está desde janeiro em recuperação judicial, situação pré-falimentar que lhe permite, com aval de um juiz, dar calote temporário em credores, por exemplo, a fim de ganhar tempo para tentar sobreviver. A recuperação foi autorizada pela Justiça após a descoberta de um rombo de 20 bilhões de reais nas contas da varejista. No dito “mercado”, acredita-se que a turma do 3G sabia do rombo há tempos, mas escondeu o jogo para seguir a embolsar, na forma de dividendos, dinheiro que deveria ter tapado o buraco. Sugar dividendos ao máximo parece o caminho trilhado pela Eletrobras pós-privatização. Modelo by Lemann e cia.

Obstáculo? Nunes Marques, nomeado por Bolsonaro com apoio do Centrão, vai analisar no STF a queixa do governo – Imagem: Fellipe Sampaio/STF

O rolo da Americanas levou a uma guerra entre o 3G e o banco BTG, de André Esteves, bilionário de quem Lula tem falado mal a portas fechadas. O BTG é credor de 3,5 bilhões de reais da Americanas. Às vésperas da decretação da recuperação judicial, bloqueou 1,2 bilhão que deveria ter repassado à rede. O destino da bolada detonou a guerra. “Os três homens mais ricos do Brasil (com patrimônio avaliado em 180 bilhões de reais), ungidos como uma espécie de semideuses do capitalismo mundial ‘do bem’, são pegos com a mão no caixa daquela que, desde 1982, é uma das principais companhias do trio”, diz um documento enviado pelo BTG em janeiro ao juiz da recuperação, Paulo Assad, da 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro.

A Câmara dos Deputados logo terá uma CPI da Americanas, para emparedar o 3G e a auditoria que teria feito vista grossa ao rombo, a ­PricewaterhouseCoopers. A proposta partiu do líder do PP, ­André Fufuca, soldado e correligionário de ­Lira, por sua vez aliadíssimo de ­Esteves. Em um evento do BTG, em fevereiro, foi chamado por Esteves de “querido ­Arthur” e comentou, a propósito da Americanas: “Esse assunto momentaneamente, aparentemente, saiu das páginas dos jornais, mas não está esquecido. É importante que a credibilidade na atuação do mercado, nas informações para os investidores, permaneça incólume no Brasil”. Na ocasião, também criticou os planos de Lula para a Eletrobras.

De Nova York, Lira anunciou: a principal luta dos parlamentares será defender tudo aquilo que o Congresso fez nos últimos tempos para deixar o Brasil “mais liberal”. A derrota imposta a Lula na área de saneamento foi um capítulo da batalha, segundo ele. A situação do ministro da articulação política, Alexandre Padilha, não está fácil. •

Publicado na edição n° 1259 de CartaCapital, em 17 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Alta voltagem’

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