Opinião

A reação ao que disse Lula sobre a Ucrânia fala mais da mídia do que dele

Sobra ao ex-presidente autoridade para expor suas posições. E é bom que o tenha feito, sem rodeios e sem medo, agora, não depois. O resto é picuinha

(Foto: Luisa Dorr/TIME)
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Primeiro o aborto. Agora a invasão da Rússia pela Ucrânia. Muita gente e gente de respeito, entre elas a socióloga Esther Solano, colunista de CartaCapital, sente calafrios quando o ex-presidente Lula toca em assuntos considerados “sensíveis”. Temem os efeitos na eleição, recomendam moderação, rogam para o candidato se concentrar em outros temas.

Entendo a preocupação, a angústia, mas pergunto: o que Lula deveria fazer quando instado a comentar este ou aquele ponto? Fugir em desabalada carreira dos repórteres como aquela funcionária fantasma da Assembleia Legislativa de Goiás? Agredir os jornalistas como Bolsonaro e seus seguidores? Responder bugalhos quando lhe perguntarem sobre alho, à moda de Paulo Maluf? Recusar entrevistas, ele que lidera as pesquisas, mas é o representante da oposição e precisa convencer a maioria do eleitorado a apear o ex-capitão do Palácio do Planalto?

O cálculo político tem limites e a mediação não responde à vontade do interlocutor. Nos debates e entrevistas ao longo da campanha, Lula e os demais candidatos serão confrontados com assuntos espinhosos. As cascas de banana estarão espalhadas pelo caminho. O melhor a fazer, como, aliás, fez o ex-presidente nos dois episódios é responder com clareza e ponderação. Se não for o aborto e a Ucrânia, será a Lava Jato, José Dirceu, o governo Dilma Rousseff, o suposto radicalismo do PT, a “ideologia de gênero”.

Os petistas podem e devem até querer falar de inflação, desemprego, miséria, fome, mas a agenda pública não é definida pelo diretório do partido. Só os inocentes acreditam que os meios de comunicação tradicional, o autodenominado “jornalismo profissional”, estão genuinamente interessados em tratar dos problemas reais do País na campanha. Um clique a mais, uma curtida, a polêmica… Quanta tentação. Somos o que somos. Vale a máxima do Chacrinha, potencializada pelas redes sociais: eles estão aqui para confundir, não para explicar. De resto, a reação à entrevista diz mais sobre a imprensa do que sobre o próprio Lula.

O ex-presidente, diante das perguntas da jornalista da revista Time, a quem aceitou conceder a entrevista, fez o que se espera de um entrevistado. Deu respostas articuladas que fogem da visão maniqueísta da mídia ocidental, da batalha entre o Bem e o Mal. O ex-presidente condenou in limine Vladimir Putin pela invasão da Ucrânia, mas não evitou apontar as responsabilidades dos demais envolvidos. Ou não as há?

Lembremos alguns trechos.

Sobre a má vontade das partes em negociar:

“As conversas foram muito poucas. Se você quer paz, você tem que ter paciência. Eles poderiam ter sentado numa mesa de negociação e passado 10 dias, 15 dias, 20 dias, um mês discutindo para tentar encontrar a solução. Então eu acho que o diálogo só dá certo quando ele é levado a sério.”

Sobre a atuação de Zelensky:

“E agora, às vezes fico vendo o presidente da Ucrânia na televisão como se estivesse festejando, sendo aplaudido em pé por todos os parlamentos, sabe? Esse cara é tão responsável quanto o Putin. Ele é tão responsável quanto o Putin. Porque numa guerra não tem apenas um culpado. O Saddam Hussein era tão culpado quanto o Bush. Porque o Saddam Hussein poderia ter dito: ‘Pode vir aqui visitar e eu vou provar que eu não tenho armas’. Ele ficou mentindo para o seu povo. Agora, esse presidente da Ucrânia poderia ter dito: ‘Olha, vamos deixar para discutir esse negócio da OTAN e esse negócio da Europa mais para frente. Vamos primeiro conversar um pouco mais.”

A respeito da perda de influência e da necessária reforma da ONU:

“É urgente e é preciso a gente criar uma nova governança mundial. A ONU de hoje não representa mais nada. A ONU de hoje não é levada a sério pelos governantes. Porque cada um toma decisão sem respeitar a ONU. O Putin invadiu a Ucrânia de forma unilateral, sem consultar a ONU. Os Estados Unidos costumam invadir os países sem conversar com ninguém e sem respeitar o Conselho de Segurança. Então é preciso que a gente reconstrua a ONU, coloque mais países, envolva mais pessoas. Se a gente fizer isso, a gente começa a melhorar o mundo”.

Sob a batuta do então chanceler Celso Amorim, Lula implantou uma política externa reconhecida no mundo. O Brasil era uma liderança regional em ascensão, não um pária internacional. O petista sentava-se à mesa principal, ao contrário do ex-capitão, a quem resta, quando convidado para os eventos, incomodar os garçons no canto da sala. Sobra ao ex-presidente, portanto, autoridade para expor suas posições. E é bom que o tenha feito, sem rodeios e sem medo, agora, não depois. O resto é picuinha.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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