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À própria sorte

As mulheres representam 15% da população em situação de rua, mas foram vítimas de 40% das violações notificadas pelo Poder Público

Transformação. Após a pandemia, o perfil da população de rua mudou, com uma presença feminina cada vez maior – Imagem: iStockphoto
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“A mulher que mora na rua precisa escolher seu estuprador, seu agressor, que vai defendê-la de outros agressores e estupradores.” O devastador depoimento, feito por uma mulher que pernoita debaixo das marquises paulistanas, figura na abertura de um relatório apresentado pela Comissão Arns às Nações Unidas. Signatário da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw, na sigla em inglês), o Brasil passa, neste ano, por um processo de revisão do cumprimento das obrigações assumidas no tratado. No fim de maio, uma delegação do governo federal viajará a Genebra para prestar contas sobre eventuais violações aos direitos das brasileiras e as providências adotadas.

A sabatina será conduzida por especialistas do Comitê Cedaw, também encarregado de propor recomendações ao Estado brasileiro. Em 15 de abril, esgotou-se o prazo para as autoridades nacionais e organizações da sociedade civil enviarem relatórios sobre a situação das mulheres no País. “Decidimos chamar atenção para as brasileiras em situação de rua por entender que elas estão em situação de vulnerabilidade extrema, enfrentando violações de direitos ainda mais graves do que os homens nessa mesma condição”, afirma o advogado Paulo Lugon, assessor internacional da Comissão Arns.

Elaborado em parceria com movimentos sociais, o relatório da Comissão Arns expõe com crueza a dimensão do problema. Embora representem entre 13% e 15% da população em situação de rua, segundo diferentes estimativas, as mulheres foram vítimas de 40% das violações notificadas pelo Poder Público. O dado foi extraído do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), que reúne registros de violências sofridas por pessoas que buscam o sistema de saúde.

Esta é uma das poucas informações disponíveis sobre as mulheres em situação de rua, também vítimas de um apagão estatístico. Na verdade, não existe sequer um dado oficial sobre a quantidade­ de brasileiros que dormem nas calçadas ou pernoitam em abrigos. Apesar dos insistentes apelos de entidades civis e da Defensoria Pública da União, o Censo de 2022 seguiu o método tradicional de contagem, incluindo apenas a população domiciliada.

“Tal realidade implica prejuízos para a correta avaliação da demanda por políticas públicas por parte desse segmento, como foi evidenciado pela recente dificuldade, por parte do Ministério da Saúde, em alocar um número adequado de vacinas contra a Covid-19 para a população em situação de rua”, observou o pesquisador do Ipea Marco Antônio Carvalho Natalino, em um estudo que estimou o contingente de brasileiros sem-teto a partir do Censo Suas, base de dados alimentada pelas secretarias estaduais e municipais de Assistência Social, e do Cadastro Único para Programas Sociais do governo federal, o CadÚnico. O estudo de Natalino indica que a população de rua mais que dobrou no intervalo de dez anos. Cresceu 211%, atingindo 281,4 mil pessoas em 2022.

Algumas delas optam por conviver com um único agressor que as proteja de outros, denuncia relatório da Comissão Arns encaminhado à ONU

Em São Paulo, o porcentual de mulheres em situação de rua passou de 14,8% do total, em 2019, para 16,6% em 2021, segundo uma pesquisa censitária encomendada pela Secretaria Municipal de Assistência Social. Outras cidades enfrentam o mesmo fenômeno. “O perfil da população de rua mudou com a pandemia. Tornou-se mais que evidente a maior presença das mulheres vivendo nessa situação, sozinhas ou levando consigo filhos, crianças e adolescentes, e idosos”, ressalta o relatório da Comissão Arns.

Como forma de contornar o apagão estatístico, a entidade optou por apresentar depoimentos dados por mulheres às organizações que atuam na ponta, prestando assistência à população de rua. É um show de horrores. Como destacado na abertura da reportagem, uma vítima relatou preferir se submeter a abusos de um único agressor do que de vários. Outra procurou uma Delegacia da Mulher para denunciar um incidente de violência, mas foi informada que “nada poderia ser feito, pois não haveria meios de se instaurar uma medida protetiva, uma vez que ela não possuía endereço fixo”.

De acordo com Laura Greenhalgh, secretária-executiva da Comissão Arns, esses relatos podem chocar os leigos, mas são lamentavelmente corriqueiros. “Recentemente, durante um seminário rea­lizado no salão nobre da Fiesp, várias mulheres relataram situações como essa, mas a subnotificação é enorme. Muitas preferem nem procurar as autoridades policiais, porque acreditam que a situação pode piorar ainda mais.”

A desconfiança não é apenas de quem vive nas ruas. Seis em cada dez brasileiras vítimas de violência praticada por homens não procuram a polícia para registrar o crime, segundo recente pesquisa do Instituto DataSenado. “Se o temor de ser maltratada numa delegacia é generalizado, imagine a situação das mulheres em situação de rua, com todos os estigmas que carregam. Frequentemente, elas são insultadas, chamadas de ‘vadias’, ‘sujas’, ‘arrombadas’. Esses são os termos que elas próprias relatam ouvir.”

Realizado no início de abril, o seminário “Repense e Reconstrua”, mencionado por Greenhalgh, reuniu especialistas e representantes da sociedade civil para reexaminar as políticas públicas para a população de rua. Presente na mesma mesa do industrial Josué Gomes, dono da Coteminas, a ativista Laura Dias, do Movimento Nacional de Luta pelos Direitos das Pessoas em Situação de Rua, lamentou as violentas abordagens policiais e as precárias condições dos centros de acolhida da capital paulista, alguns deles flagrados em fiscalizações com comida estragada e camas infestadas por percevejos. “Não adianta dar equipamento, nós precisamos e merecemos ser tratados com dignidade”, desabafou. “Estamos falando de pessoas fragilizadas, como uma mulher que foi estuprada e só queria dormir num lugar seguro, pessoas que foram queimadas por não terem sido acolhidas.”

Entre as recomendações propostas pela Comissão Arns, figura a realização de um censo nacional da população em situação de rua, com dados desagregados por gênero e raça, e a formulação de políticas voltadas à saúde integral das mulheres que dormem nas calçadas ou em albergues. “A situação atual é deplorável”, lamenta Greenhalgh. “Essas mulheres não têm acesso a absorventes, a métodos de contracepção e tampouco conseguem fazer acompanhamento médico de sua saúde sexual e reprodutiva. Elas nem sequer têm a garantia de acesso ao aborto legal, quando são vítimas de estupro.” •

Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘À própria sorte’

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