Carla Jimenez

Jornalista há mais de 30 anos, foi diretora e editora chefa do EL PAÍS no Brasil e co-fundou o portal Sumaúma

Opinião

Vozes famosas, dores anônimas

Os episódios de violência contra Ana Hickmann e Patrícia Ramos são somente os mais recentes de uma avalanche machista. Mas a coragem de denunciar só aumenta a rede solidária de mulheres

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Já faz praticamente uma década que o Brasil vive com força uma primavera feminista. Nas ruas, nas redes sociais, nos debates nas escolas, com ações contínuas para chamar a atenção sobre os ataques sistemáticos às mulheres provocados, muitas vezes, por parceiros. 

Não que as mulheres não reivindicassem antes seus direitos. É que as redes sociais amplificaram suas vozes e a rede de apoio e empatia só fez crescer, a níveis nunca vistos pela minha geração. O lema “Mexeu com uma, mexeu com todas” pegou de vez – ao menos entre as mulheres que não reproduzem machismo. E é com esta força coletiva que o Brasil vem tirando as máscaras de instituições poderosas, de grandes empresas, dos políticos, e da bolha glamourosa das celebridades. 

Os casos mais recentes envolvem uma influencer e uma apresentadora de TV. No final de outubro, tornou-se pública a denúncia da influencer Patricia Ramos, de 23 anos, contra o agora ex-marido, Diogo Vitório. Fotos de hematomas e machucados provocados por Vitório tomaram as redes sociais. “Começou com um grito, e aí depois um empurrão, depois um puxão de cabelo, depois um soco na cara”, lembrou ela no programa Encontro, da TV Globo, no último dia 10. É o clássico ciclo da violência doméstica. Homeopaticamente, as agressões se repetem, cada vez mais fortes.

Mas foi a notícia de que a modelo e apresentadora Ana Hickmann também havia denunciado o marido por agressão física que tomou o Brasil desde o último domingo. Ana está há mais de 25 anos na mídia, tem produtos licenciados, marcas de cosméticos, e 16,7 milhões de seguidores no Instagram. Patrícia, por sua vez, ganhou fama como apresentadora da Rede BBB em 2021 e hoje soma 4,2 milhões de seguidores. 

Foi preciso que mulheres famosas agredidas virassem notícia para trazer o bode para a sala

Patricia é negra, enquanto Ana é branca, de olhos azuis – características tidas como um troféu em um Brasil que sonha em ser europeu. Assim como Patrícia, Ana não deixou de se somar às estatísticas de violência. Ela também foi agredida pelo marido e empresário, Alexandre Corrêa, conforme consta no boletim de ocorrência lavrado por ela mesma. 

O assunto é gravíssimo, como mostram os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número de denúncias feitas ao telefone 190 sobre violência doméstica subiu de 596.721 em 2019 para 899.485 no ano passado, revelando as consequências reais e diretas da misoginia e do machismo distorcido que vem varrendo o país, especialmente com a extrema direita. Em seu relatório anual, o Fórum destaca as hipóteses que levaram a essa explosão: a pandemia da Covid-19, o crescimento dos movimentos ultraconservadores, e o enxugamento de verbas públicas nos anos de Jair B. no poder para ações de combate à violência doméstica.

Essa soma de fatores e suas consequências podem ser confirmadas através de noticiário dos últimos 20 dias que alcançaram outros ‘famosos’. Só nesse período, ficamos sabendo da prisão do ex-senador Telmário Mota, de Roraima, no dia 30 de outubro, acusado de mandar matar a ex-mulher Antônia Araújo de Souza. Antônia foi executada com um tiro na cabeça no dia 29 de setembro. Telmário ainda é acusado por uma das filhas de tentativa de estupro. 

Outra notícia estarrecedora veio do mundo gospel também no final de outubro. A pastora e cantora Sara Mariano foi assassinada pelo marido, Ederlan Mariano por motivo fútil. 

As redes sociais amplificaram vozes e a rede de apoio e empatia só fez crescer, a níveis nunca vistos pela minha geração

O machismo mata e não enxerga cor, classe social ou religião. O assunto parece passar despercebido em meio a um noticiário que anda para lá de triste, com guerras, pobreza e conflitos políticos. Foi preciso que mulheres famosas agredidas virassem notícia para trazer o bode para a sala dos homens brasileiros violentos. Não são todos, obviamente, e não cabe generalização. Mas aqueles que não aceitam a mulher independente se tornaram ainda mais violentos nos últimos anos.

Há milhares de anônimas que precisam lutar duas vezes para serem ouvidas. A primeira, vencendo o medo de admitir que o companheiro ou pai de seus filhos está cometendo um crime. A segunda, de ir à delegacia e não ser desacreditada pela denúncia. 

Números são dados concretos e ao mesmo tempo intangíveis de entender. Precisamos ver uma Luiza Brunet, uma Patricia Ramos, uma Ana Hickmann para colocar o espelho de frente. Ana, a mais recente a denunciar, é vista como o sinônimo da mulher bem-sucedida, num casamento estável com o namorado que virou empresário de sua próspera carreira. 

Ela ainda não deu detalhes ao público sobre o que aconteceu no desentendimento com o marido,  e essa expectativa aumenta as especulações a respeito. Parece óbvio que esta agressão recente não é pontual. A apresentadora deveria estar silenciando sobre uma relação com nuances de violências há muito tempo. Sabe-se que a agressão física é o ápice de um movimento que começa nas palavras ditas, nas expressões de impaciência ou de desprezo, ou em supostas brincadeiras de chamar de “burra” e “louca”. 

É um gatilho que sempre nos volta. Pouquíssimas mulheres passaram ilesas nesta vida de serem atingidas por algum tipo de agressão. 

As notícias de que rostos conhecidos encabeçam casos de polícia fez o machismo passar a ser entendido de outra forma. Não é só o feio malvado de aparência assustadora na esquina escura que é capaz de molestar e agredir uma mulher. São galãs globais, como José Mayer, denunciado por assédio sexual pela então maquiadora da rede Globo Su Tonani, em 2017. 

As mulheres que venceram o medo de se expor derrubaram o mito místico de João de Deus, por exemplo. Pais de família, como os jogadores Daniel Alves ou Robinho — ambos pais de meninas —, também foram denunciados por estupro. E seguimos assim, aumentando a lupa para estas dinâmicas recorrentes. 

 É um caminho duro, e nós, mulheres, já demos a partida para furar o bloqueio. Começamos a reconhecer a dor da outra, silenciada por um mundo moldado por homens. Nem sempre as redes sociais foram os esgotos de fake news que vemos hoje. Foram elas que encorajaram mulheres a expor relatos de violência, e estimularam outras a contar alguma passagem abusiva vinculada à violência sexual ou psicológica.  

Muitos homens hoje temem perder a prerrogativa de exercer essa masculinidade arcaica e violenta. E aí vão ter de lidar com esse elemento novo no século 21, que é a coragem feminina aflorada no mundo todo.

Você, homem, pergunte às mulheres da sua vida. Vai se surpreender (ou não) com a quantidade de avôs, primos, irmãos, amigos dos pais que as molestaram na infância ou adolescência. Vai se chocar ao saber que várias estão presas a casamentos de aparência, silenciando os beliscões, os “cala boca”, os xingamentos, que depois são seguidos de pedidos de desculpa, até declarações de amor, que alimentam a ilusão de que aquilo foi pontual. Esteja do lado certo dessa história. A única razão de lutar de muitas mulheres é continuar existindo, sem ser agredida por isso. Apoie.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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