Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Existe voto envergonhado?

Quando suprimimos a expressão pública de nossas opiniões, não o fazemos por vergonha. Fazemos por medo

Existe voto envergonhado?
Existe voto envergonhado?
Lula e Jair Bolsonaro. Fotos: Ricardo Stuckert e Evaristo Sá/AFP
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Segundo o Dicionário Oxford, vergonha se define como “desonra que ultraja, humilha; opróbio”. Há ainda outra acepção para o substantivo, segundo o mesmo dicionário: “o sentimento desse ultraje, dessa desonra ou humilhação”. A vergonha, vulgarmente falando, é um sentimento que funciona como um mecanismo de defesa social contra algo do qual, no mínimo, não nos orgulhamos de termos feito, pensado, desejado, realizado. 

Esse substantivo feminino ganhou forma adjetiva para qualificar o substantivo “voto” e invadir o debate eleitoral nas últimas semanas. O tal (ou famigerado) “voto envergonhado” se tornou uma expressão recorrente nas falas e discussões envolvendo sócios de institutos de pesquisa de opinião, pesquisadores, jornalistas e comentaristas de redes sociais com o intuito de especularem sobre um voto que não se mostraria publicamente em Jair Bolsonaro ou em Lula. Mas existe mesmo o tal “voto envergonhado”? 

Bem, tudo nesse mundo pode ser inventado, logo, é plausível que alguém queira ou mesmo invente essa espécie de categoria analítica para tentar explicar certos comportamentos eleitorais. Contudo, de onde dizem que esse conceito parte, é lá que ele não existe mesmo.

Não há algo que se possa chamar de voto envergonhado, segundo Noelle-Neumann. Há um voto silencioso

Leitores e leitoras desta coluna já devem estar familiarizados com as contribuições dadas pela cientista política alemã Elizabeth Nolle-Neumman para a compreensão de fenômenos relativos à opinião pública e a disputas eleitorais. Pois é a ela que têm sido atribuída a criação desse conceito.

No entanto, a informação não procede. 

A cientista política alemã nos prestou um indispensável serviço científico ao desenvolver a tese de que nós tendemos a manifestar ou a suprimir nossas opiniões sobre assuntos (moralmente) controversos diante da avaliação que nós fazemos sobre se essas opiniões são majoritárias ou minoritárias nos ambientes sociais que todos nós monitoramos em nossas incursões cotidianas. Trocando em miúdos, tendemos a suprimir certas opiniões que temos a impressão de ser minoritárias, ainda que, empiricamente, elas talvez não o sejam. O contrário é verdadeiro: tendemos a vocalizar aquelas nossas opiniões que julgamos ser compartilhadas pela maioria. Esse é o fundamento da espiral do silêncio. 

Contudo, quando suprimimos a expressão pública de alguma dessas nossas opiniões, não o fazemos por vergonha, segundo Noelle-Neumann. Fazemos por medo. Por temor. Isso porque, na concepção psicossocial de opinião pública da cientista alemã, nós tendemos a calcular nossos atos e ações de acordo com o risco de nos isolarmos socialmente. Em outras palavras, nós tememos o isolamento social. Cultivamos o receio de que a manifestação de uma opinião que julgamos não serem bem-vindas em nossos ambientes sociais nos isole socialmente. 

Portanto, é sobre medo. É sobre temor. Não é sobre vergonha.  Não se trata de um ato, ideia ou opinião que nos envergonha, que nos cause desconforto, que conote um sentimento de desonra. É, simplesmente, por medo dos julgamentos sociais negativos e sua consequência precípua: o isolamento social. Ou seja, não há algo que se possa chamar de voto envergonhado, segundo Noelle-Neumann. Há um voto silencioso, não expresso publicamente, em razão de temores sobre suas prováveis consequências sociais. 

Mas é preciso salientar um detalhe contextual importante: Elizabeth Noell-Neumann fala de medo, de receio, de temor das consequências simbólicas de manifestar opiniões (que pode ser, plenamente, uma declaração de voto). No Brasil de 2022, o Brasil do Bolsonarismo eleitoralmente claudicante, mas aguerrido no engajamento, não estamos falando apenas da violência simbólica, mas da violência política e física. O temor não é apenas do isolamento social, mas o da agressão física, da covardia, da morte. 

É exatamente o que o Datafolha identificou em pesquisa recente: a maioria do eleitorado brasileiro, em 2022, têm medo de sofrer agressões por motivos políticos, afinal, vivemos em um país que já coleciona assassinos bolsonaristas motivados pelo ódio político contra eleitores de Lula. São nada menos que 67,5% dos entrevistados colocando-se nessa condição de medo e silenciamento por temerem a violência física. O murro. A bala. A covardia, uma vez mais. 

Não é sobre vergonha, portanto. É sobre medo. O que Noelle-Neumann talvez não imaginasse é que sua teoria precisaria ser atualizada em pleno século XXI para incorporar o medo de ser vítima de violências físicas por razões políticas e eleitorais. Ou talvez não tanto, afinal, Noelle-Neumman, como alemã, conhecia muito bem as características e os meandros do fascismo. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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