Opinião
Viajar não é para qualquer um
O desafio desta era parece ser o ‘estar’. As pessoas não estão mais, na melhor das hipóteses ficam parcialmente, com seus celulares sempre alertas
Por
Milton Rondó
14.02.2024 11h57 | Atualizado há 2 meses
“Sou um homem complicado em busca da simplificação.”
Vinicius de Moraes
Os agricultores e agricultoras na Índia também saíram às ruas, a exemplo do que fizeram os homólogos europeus.
Na Europa, os protestos abarcaram vários países, incluindo França, Alemanha, Itália, Espanha, Portugal, Bélgica e Polônia, entre outros.
Entretanto, por suas dimensões, os protestos na Índia não encontram paralelo em amplitude e número de agricultores e agricultoras envolvidos.
As mudanças climáticas fazem sentir seus aspectos mais nefastos, em todo o Globo: as incertezas climáticas vieram adicionar maior insegurança a uma atividade de tanto risco – caso da agricultura – como o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães sempre recordava.
Pior, muitos dos trabalhadores na terra não contam sequer com uma mísera gleba, sendo explorados por rentistas, os mesmos que irão sugar, novamente, o fruto de seu trabalho na etapa da comercialização, praticamente monopolística.
Interessante notar que, no século XV, São Francisco de Assis, ao prescrever regras austeras para que os religiosos não traíssem a “dama pobreza”, autorizava na Regra 1221, Capítulo VII: “Em retorno pelo trabalho que tenham feito, os irmãos poderão receber o tudo o que precisarem, exceto dinheiro. E quando a necessidade surgir, eles poderão pedir esmolas como outras pessoas. E poderão ter os instrumentos e utensílios necessários para seu trabalho.”
Ou seja, até para frades de uma ordem de mendigantes estava autorizado e previsto que deveriam ter acesso aos instrumentos de trabalho, que a selvageria do capitalismo iria posteriormente retirar dos trabalhadores, surgindo agricultores sem terra e artesãos sem bodega.
Enquanto isso, o primeiro-ministro da Alemanha acaba de instar a Europa a produzir mais armas…
Se a extrema direita vencer as eleições por lá, o que não é de todo impossível, teremos o terrível cenário do século XX, cuspido e escarrado…
Pior, o que não falta à velha Europa é racismo: a correspondente da TV “France 24 Heures”, no Rio de Janeiro, encerrou sua matéria sobre a ação da Polícia Federal contra os golpistas com um clássico estereótipo racista: “Os brasileiros estão cansados da montanha russa da política nacional e o que querem é relaxar no Carnaval.” E o contribuinte francês ainda paga para manter essa senhora no Rio, quando, para reproduzir chavões e imagens tão simplórios, melhor e mais barato seria que ficasse em Paris, de onde sua visão parece nunca ter saído.
Essa gafe confirma a minha impressão: viajar não é para qualquer um. Algumas pessoas (a maioria) apenas se desloca no espaço, não consegue estar com o outro, buscar entendê-lo, nutrir empatia e, caso raríssimo, amor.
Na verdade, o desafio desta era digital parece ser o “estar”. As pessoas não estão mais, na melhor das hipóteses ficam parcialmente, com seus celulares sempre alertas, com o sentido de que tempo é dinheiro, de que cuidar de si é o que mais importa.
Com efeito, até mesmo estar em sintonia com a humanidade transformou-se em algo perigoso.
Recentemente, foi introduzida no Congresso estadunidense moção para que as relações do país com a África do Sul sejam revistas, em função do acionamento da Corte Internacional de Justiça pela África do Sul contra o genocídio que Israel perpetra em Gaza.
Vivemos tempos nebulosos.
Por outro lado, a Corte de Apelação da Holanda deu ganho de causa para humanistas daqueles Países Baixos, impedindo a exportação para Israel de partes do jato F 35, usado pelos genocidas da extrema direita israelense para massacrar a população em Gaza.
Aliás, a insanidade ao norte do Equador é tal que até a extrema direita termina por soar razoável: o primeiro ministro da Hungria propôs que a Ucrânia tenha o ‘status’ de neutralidade, como única forma de por fim à guerra, o que era a solução óbvia que se delineava desde o início do conflito.
Que a proposta venha de um país que integrara o Império Austro-Húngaro não é acaso, nem coincidência. Essa foi a solução encontrada pela Áustria para sobreviver durante a guerra fria, com resultados extraordinários (embora pouco percebidos) para a paz e a segurança internacionais. Por essa razão, foi escolhida para ser a sede da Agência Internacional de Energia Atômica da ONU, a qual trouxe enormes contribuições ao controle e desarmamento nuclear.
Nesse sentido, caberia perguntar por que o direito à paz não constitui o direito humano o mais fundamental? Por que não o inserimos no artigo 5 da Constituição Federal? Isso daria à diplomacia um sentido vertebrante: sendo um direito fundamental é portanto universal, cabendo ser protegido, promovido e provido em qualquer latitude ou longitude, sem estar limitado por fronteiras de qualquer sorte, inclusive nacionais.
Baixando aos âmbitos municipais, onde estamos, somos, vivemos: que bacanas as iniciativas de resistência nos centros das cidades, abandonados em proveito dos shoppings centers (não por acaso, a lista das lojas corresponde quase ‘ipsis litteris’ aos financiadores do golpe de 2016).
Em São Paulo, um desses lugares é o Café Flor no térreo do Museu da Língua Portuguesa. A comida é deliciosa, acessível e com várias opções veganas. O serviço é agradável, simpático e empático. Recomendo.
Uma boa Quaresma de conversão ao bem, a todas, todos e todes.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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