Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Tio Paulo

Só se fala nisso pelos becos e nas alcovas. As imagens são repetidas a cada telejornal. E assustam, sempre

Foto: Reprodução
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Quando bati os olhos no título da matéria, assim de soslaio, sem muito interesse, acreditei que se tratava um protesto. Alguém que, por culpa da burocracia, não conseguiu liberar a pensão do aposentado, levou o morto para o banco. Mas não.

Não era nada disso. Era uma mulher que estava ali no banco, ao lado do Tio Paulo morto, tentando reanimá-lo para que assinasse um empréstimo de dezessete mil reais. Sem a assinatura dele, nada feito.

O caso é macabro.

Ninguém sabe ainda se tio Paulo entrou no banco numa cadeira de rodas, empurrado por sua sobrinha, já morto. Ou se morreu dentro da agência, minutos antes de assinar a papelada do empréstimo.

Hoje, é possível fazer um empréstimo bancário com apenas um enter no celular. Sinceramente, ainda não entendi por que exigiam tanto do tio Paulo, inclusive que ele estivesse vivo.

Mas foi assim.

A cada dia, os telejornais vão injetando pequenas novidades, novas imagens, tentando decifrar o quebra-cabeça. A televisão foi sensata em borrar o rosto do tio Paulo, mas nas redes sociais ele apareceu de cara limpa, muito magro, muito pálido, completamente calvo e com a cabeça balançando pra frente e pra trás. Claro, estava morto.

O diálogo é inacreditável.

– Tio Paulo, o senhor está me ouvindo?

– Tio Paulo, o senhor tem de assinar aqui, como está na carteira de identidade.

– Tio Paulo, aperta forte a caneta!

– Tio Paulo, o senhor não está bem? Quer voltar pro AMA?

Só se fala nisso pelos becos e nas alcovas. As imagens são repetidas a cada telejornal. E assustam, sempre.

A cena aconteceu em Bangu, o bairro mais quente do Rio de Janeiro. E Tio Paulo ali, sentado naquela cadeira de rodas, frio, morto.

O assunto correu mundo. Foi parar no New York Post, no Guardian de Londres, no Vanguardia de Barcelona.

Memes explodiram nas redes sociais. O brasileiro não queria perder a piada, já pronta.

Até agora, não sei se acho engraçado, certamente não, ou se eu tento não acreditar na notícia, que não foi fake news, todos sabem.

Por aqui, muita gente comentou que coisas assim só acontecem no Rio de Janeiro. Não é verdade, Em São Paulo, acontecem coisas também inacreditáveis. Morto no banco nunca vimos, mas já vimos até pais jogando criança pela janela. Mas essa é outra história.

Termino, lembrando uma velha canção de Jards Macalé chamada Hotel das Estrelas e que termina assim: Rio e também posso chorar.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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