Justiça

Reação contra decisão do STF pode gerar desastre político-criminal

Proposta para acabar com recursos no STJ e STF terá impacto direto na população mais pobre do país

Congresso Nacional promulga reforma da Previdência. (Foto: Geraldo Magela/Agência Senado)
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O texto do Art.5º, inc. LVII refere que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Como discuti anteriormente, sentença transitada em julgado é aquela da qual não cabe mais recurso. O direito fundamental em questão efetivamente assegura que a presunção de inocência prevalece até que todos os recursos tenham sido esgotados. O trânsito em julgado não é apenas um marco temporal; está unido de modo indissolúvel à presunção de inocência, de modo que se o texto é alterado para possibilitar a execução da pena após condenação em segunda instância, isso equivale a abolir o direito fundamental, o que a Constituição expressamente proíbe.

Trata-se de uma cláusula pétrea da Constituição, insuscetível de alteração por Emenda Constitucional.

Do mesmo modo, uma mudança na legislação infraconstitucional que pretenda autorizar a execução antecipada da pena entraria imediatamente em contradição com o direito fundamental que assegura a presunção de inocência até o trânsito em julgado e, logo, seria completamente inconstitucional e não teria como prosperar.

No entanto, outra estratégia está sendo cogitada. Uma vez que existe resistência no próprio Congresso contra a PEC que visa alterar o direito fundamental consolidado no Art.5º, inc. LVII, uma nova opção ganha força: a mutilação do sistema recursal estabelecido com a Constituição de 1988. A nova PEC, apresentada por Alex Manente (Cidadania-SP) modifica os artigos 102 e 105 da Constituição: acaba com o recurso extraordinário, usado para recorrer de uma condenação ao Supremo Tribunal Federal (STF), e o recurso especial, no caso de uma condenação no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Não só essa proposta viola o princípio do retrocesso, uma vez que suprime garantias fundamentais do acusado, como o seu impacto político-criminal seria desastroso.

Estados desejam transformar presídios que antes eram “depósitos de gente” em fonte de renda. Crédito: Luiz Silveira/CNJ

São muitos os mitos que circulam em torno do sistema penal brasileiro. A retórica da “impunidade” transformou-se em um expediente ardiloso que contraria a real operacionalidade do sistema, que hoje conta com mais de 800 mil presos. Igualmente falaciosos são os argumentos salvacionistas que sustentam que somente clientes abastados de grandes escritórios de advocacia se beneficiariam dos recursos dirigidos a cortes superiores. A Defensoria Pública é responsável por quase metade dos recursos em tais casos.

Os índices de reversibilidade apontam que os réus mais pobres dependem muito mais dos recursos nos tribunais superiores para corrigir erros nas duas primeiras instâncias.

Os índices de sucesso da Defensoria são inclusive superiores aos dos advogados privados, o que não demonstra que o trabalho dos defensores é superior ao da advocacia privada, mas sim que os acusados em situação de vulnerabilidade social sofrem mais ilegalidades. Jurisprudência e súmulas das instâncias superiores muitas vezes não são seguidas e, não raro, o princípio da insignificância é completamente ignorado, o que faz com que o STF tenha que se ocupar de irrelevantes penais, como furtos de boné e sucata.

Como parece óbvio, uma reforma assim atingiria de forma esmagadora a população vulnerável e maximizaria a ocupação de um sistema penitenciário que já se encontra superlotado. Aumentaria ainda mais a seletividade do sistema penal, sob pretexto de combater a criminalidade dos “mais ricos”.

A ideia de um Tribunal Constitucional que se pronuncie somente sobre grandes questões povoa o imaginário de muitos ministros do STF. Não se pode dizer que ela não seria desejável em muitos sentidos. Mas para que isso entrasse em pauta, uma reforma acusatória do processo penal seria necessária. Diferentemente de outros países da América Latina, ainda não fomos capazes de consolidar o devido processo penal, com todos os atributos que lhe são peculiares: contraditório, ampla defesa, paridade de armas, oralidade, publicidade e acima, de tudo, gestão da prova nas mãos das partes.

Por força do sistema autoritário consolidado no Código de Processo Penal de 1941, juízes ainda atuam como inquisidores e não como garantidores das regras do jogo, papel que a Constituição estabelece. Tratam os acusados como inimigos e objetos do processo, não como sujeitos de direito.

Abolir o sistema recursal fundado com a Constituição violaria o princípio do retrocesso, suprimiria garantias e seria uma solução equivocada. Uma reforma de fundo normativo é necessária, mas ela deve ser de fundo infraconstitucional. Não é na Constituição que estão os problemas. Por outro lado, as alegações de morosidade tem fundamento e a prescrição talvez não tenha sido suficiente para possibilitar não só a eventual condenação, como o próprio direito a ser julgado no prazo razoável.

Mas este é um problema infraestrutural, que não deve ser resolvido com uma reforma normativa que suprime garantias e mutila o sistema recursal estabelecido pelos constituintes, seja a pretexto de combater a “impunidade” em sentido macro, ou para enjaular uma pessoa específica, simplesmente porque não conta com a simpatia de parlamentares que ocupam posição oposta no espectro político. Além disso, aparentemente os parlamentares não perceberam que o impacto para a Fazenda Pública e para o setor privado será igualmente devastador, uma vez que a esfera civil também será atingida.

Como se vê, reformas são necessárias, mas exigem maturação e debate.

Não podem ser feitas no calor do momento, poucas semanas após uma decisão na qual os ministros do STF tiveram a coragem de fazer valer o texto constitucional. Os efeitos são globais e abrangentes. Exigem muito cuidado e ponderação. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou ontem, por 50 votos a 12, relatório que indica supressão do sistema recursal estabelecido pelos constituintes. O texto segue para uma comissão especial, antes de chegar ao plenário.

Que os demais parlamentares tenham a serenidade e a maturidade que se espera deles.

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