Justiça

Não é possível alterar a presunção de inocência por PEC

Na última semana, o STF restabeleceu a conformidade constitucional do processo penal

Ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal
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No dia 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães declarou promulgada a Constituição e arrematou: “O documento da liberdade… da dignidade… da democracia… da justiça social… do Brasil!”.  

Mais de trinta e um anos depois, a promessa da Carta Magna brasileira permanece irrealizada. A República que fundamos com ela se encontra abalada em seus alicerces, por força da tentação autoritária que tem comprometido, nos últimos anos, o funcionamento das nossas instituições, muitas vezes movidas por propósitos alheios aos interesses públicos para os quais foram concebidas.

Na última semana, o STF restabeleceu a conformidade constitucional do processo penal, reafirmando o direito fundamental consagrado no Art. 5º LVII, cuja redação diz de forma clara que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A literalidade de um dispositivo constitucional era novamente restabelecida com toda a força normativa que lhe é inerente. O Supremo Tribunal Federal aparentemente encontrava coragem para fazer valer a Constituição, como se espera dele.

Mas o voto do presidente do STF, Dias Toffoli, flertou perigosamente com uma alternativa: a de que o Legislativo, por iniciativa própria, poderia consolidar a execução antecipada da pena.

Uma vez que o artigo 283 do Código de Processo Penal foi considerado constitucional, parece vencida qualquer hipótese de constitucionalidade de legislação infraconstitucional que venha a contrariar o que está disposto no Art. 5º LVII, da CF/88, de modo que a única alternativa remanescente seria a de uma Proposta de Emenda Constitucional, como alguns parlamentares estão ativamente perseguindo. Ocorre que os nossos constituintes foram cautelosos e instalaram uma série de limites para os futuros legisladores, proibindo que seja objeto de deliberação qualquer proposta de emenda que possa vir a abolir direitos e garantias individuais. 

É neste ponto que uma racionalidade ardilosa tentará se valer de hermenêuticas desonestas para argumentar que não haveria abolição do direito em questão, a presunção de inocência, mas somente uma restrição. Em um primeiro momento, cumpre destacar, como apontou o professor Lenio Streck, que direitos e garantias fundamentais também não podem ser restringidos, uma vez que, em suas palavras, “restrição é também, para efeito do disposto no art. 60, § 4º, IV da Constituição, abolição violadora do princípio constitucional de proibição de retrocesso”. Eu estou inteiramente de acordo com o professor Lenio.

Direitos fundamentais estabelecem cláusulas pétreas, que não são passíveis sequer de restrição.

Mas há ainda uma outra questão que merece ser pontuada. No que consiste, afinal, o direito fundamental estabelecido no Art. 5º LVII, da CF/88? A boa hermenêutica, no que diz respeito a direitos fundamentais, forçosamente terá que ser aquela que considera de modo integrado o texto constitucional e não aquela que o mutila para dele extrair outro significado. Em outras palavras, a presunção de inocência está ligada de modo indissolúvel ao trânsito em julgado como direito fundamental.

O trânsito em julgado não é uma mera dilação temporal estabelecida pelos constituintes, mas o reconhecimento de um conceito com carga semântica definida e assentada na doutrina processual, ao qual foi feita uma escolha explícita de adesão na Carta Magna.

Dito de outro modo, romper o vínculo entre presunção de inocência e trânsito em julgado, para possibilitar a execução antecipada de pena com recurso pendente de julgamento, equivale a abolir o próprio direito fundamental estabelecido pelos constituintes, o que a Constituição expressamente impossibilita. Há situações de prisão processual e elas tem seus requisitos específicos, que não se confundem com execução antecipada da pena e envolvem outro tipo de debate.

 

Somente uma Assembleia Constituinte teria condições de consolidar a execução antecipada da pena, uma vez que o chamado poder constituinte originário não está sujeito a nenhum limite, salvo, talvez – e para o desespero de muitos – aqueles que irradiam de direitos humanos. Felizmente, não está em nosso horizonte imediato uma proposta de nova Constituição e é bom que assim permaneça. 

Mas essa é uma discussão que não nos interessa enfrentar aqui, embora outra mereça ponderação. O que causa mais espanto é o expressivo fato político com o qual nos deparamos. Parlamentares estão efetivamente discutindo a possibilidade de uma PEC que aboliria ou restringiria um direito fundamental única e exclusivamente para atingir uma pessoa específica: um certo ex-presidente da República, que subitamente encontra-se em liberdade, uma vez que foi restabelecida a legalidade. Para ele e para todos, por sinal: é disso que se trata, que fique bem claro. 

Há um exemplo clássico de Direito Penal que muito bem ilustra a situação. Ele esclarece de modo didático, para alunos da graduação em Direito, no que consiste o dolo de 1º grau e o dolo de 2º grau. Alguém deseja eliminar o desafeto e, para essa finalidade, coloca uma bomba no ônibus intermunicipal no qual ele viajará no dia seguinte. Quando o ônibus sai da rodoviária, a bomba explode. Morre o desafeto. Morrem os demais passageiros. Dolo de 1º grau em relação ao desafeto, dolo de 2º grau em relação aos demais passageiros. Entram na conta do dano colateral. 

Qual o ponto? Milhares de pessoas seriam imediatamente afetadas por uma Emenda Constitucional levada a cabo para atingir uma pessoa específica.

Milhares continuaram a ser afetadas nos anos que se seguiriam. É assim que pretendemos conduzir a nação? É esse o Estado Democrático de Direito que gostaríamos de ver consolidado? Conduzido ao sabor dos ventos de ocasião? Conforme julgarem conveniente os detentores do poder político em um dado momento, para utilizarem contra aqueles que considerarem indesejáveis?

Eu acho que não. E você?

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