Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Quem daria um livro?

Ao saber de uma história de Ruy Castro, comecei a pensar em quem da minha família mereceria uma biografia

Tia Lili e Tio Carlinhos. Foto: Arquivo Pessoal
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Ao iniciar uma palestra sobre biografias, um craque no assunto foi logo dizendo que é bobagem essa coisa de achar que a vida de um avô daria um livro, por se tratar de uma figuraça.

Ruy Castro foi surpreendido por uma garota na plateia que levantou a mão e disse:

– Olha, eu tenho certeza de que o meu avô daria, sim, um livro!

Surpreso, o escritor e jornalista foi logo perguntando:

– Ah, é? Quem era, como se chamava o seu avô?

E a garota disse:

– O meu avô se chamava Dorival Caymmi.

Algum tempo depois, fomos presenteados por uma biografia maravilhosa do autor de Maracangalha, chamada O Mar e o Tempo, assinada por Stella Caymmi, neta de Dorival, aquela garota da plateia.

Ao saber dessa história, comecei a pensar quem da minha família daria um livro.

MINHA TIA LILI, por exemplo, daria. Ela era aquela que tinha um relógio cuco na parede da sala, com um defeito há anos. Treze horas e treze minutos, se alguém não puxasse o pêndulo, o pêndulo cairia no chão e, quem sabe, o cuco nunca mais funcionaria.

Com isso, durante décadas, minha tia tinha de estar em casa precisamente às treze horas e treze minutos, todos os dias, para puxar o pêndulo do cuco.

Quantas vezes ela não estava almoçando na minha casa, engoliu a comida voando porque estava dando a hora de puxar o pêndulo do cuco?

É a mesma tia Lili que quando soube que pessoas com mais de 60 anos não pagavam mais transporte urbano, passava o dia andando de ônibus pelas ruas de Belo Horizonte para, no final do dia, fazer as contas de quanto economizou.

MEU TIO ZEZÉ também daria um livro. Foi aquele que, ao ver sua mulher, minha Tia Lourdes, ameaçar ir embora de casa e deixar pra trás os seis filhos pequenos, aproveitou que ela deu uma saída pra ir na padaria e se lambuzou todo de ketchup, deitou no chão da sala e ficou esperando ela voltar.

Meu tio Zezé quase matou minha tia de susto, mas o casamento deles nunca acabou, durou mais de cinquenta anos, graças ao ketchup, talvez.

MEU TIO CARLINHOS, o marido de tia Lili, também daria um livro. Ele conviveu com ela, diz a lenda, vinte e cinco anos, sem abrir a boca, sem sequer dar bom dia a ela. Tio Carlinhos era conhecido por ser sistemático, tinha um Renault Traction 1950 e a única foto que foi feita dele, foi logo depois da sua lua de mel, ele e minha tia, desfilando pela Avenida Afonso Pena.

MINHA TIA LILITA, ah… essa daria um belo livro! Separada do meu tio Ivo, foi apaixonada por ele durante toda a vida, mas jurava de pés juntos que não queria nada com ele, que o Seu Ivo havia virado um velho caquético, um bucho!

Aos setenta e tantos anos, sonhava com namorados imaginários e tardes de puro prazer em discretos motéis de uma Belo Horizonte ainda provinciana. Nunca vimos os seus namorados, mas ela jurava que eles existiam.

MEU TIO JOÃO, irmão do meu pai, daria um livro também. Solteirão, era uma espécie de ovelha negra da família. Amante de Piquitita, que todos da família torciam o nariz, tio João era uma fera. Minha mãe conseguiu criar os cinco filhos comportados porque ela sempre ameaçava, caso continuasse a bagunça, ia chamar tio João para dar um jeito na gente.

Tio João morava em Juiz de Fora e foi quando passou uma temporada na capital mineira, na nossa casa, que espalhou o terror. Ele tinha uma técnica de buscar cada filho desobediente escondido debaixo da cama, de medo, com uma vassoura de piaçava Horizontina, que até hoje tenho horror só de pensar.

MEU OUTRO TIO ZEZÉ, esse de Juiz de Fora –  desculpe, Ruy Castro – era uma figuraça que certamente daria um livro. Ele era advogado, tinha uma verruga na cabeça e o seu maior prazer na vida era soltar pum. Toda vez que ia soltar um pum, imitava uma arminha com a mão e soltava um petardo. Foi ele que, na lua de mel, rasgou a saia justa da minha tia Helena, que não conseguia subir no bonde. Não pensou duas vezes, pegou uma tesourinha e abriu a saia de cima a baixo. Minha tia subiu no bonde e, muito envergonhada, só foi descer no ponto final.

Só para lembrar que SEU DIDI, caminhoneiro, pai do sociólogo José Henrique Bortoluci, que eu nunca poderia imaginar que daria um livro, deu um dos livros mais sensacionais dos últimos tempos. Chama-se O que é meu e já está nas livrarias.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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