Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Artigo: Quantas mulheres permanecem em relações violentas para não “escandalizar o nome de Deus?”

‘Que as evangélicas vilipendiadas pelas Flordelis entendam que Deus jamais ficaria escandalizado caso deixem um relacionamento violento’

Créditos: EBC
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Quem não ficou chocado com a história da Flordelis que atire a primeira pedra.

Não que eu acreditasse na imagem cândida e angelical da pastora de “coração grande” que criou 55 filhos, o que contribuiu para que ela fosse a deputada federal mais votada do Rio de Janeiro. Também nunca acreditei na imagem de família perfeita que ela construiu e encantou multidões, inclusive famosos. Gosto de uma frase da Constancia, uma amiga muito querida: “Problema toda família tem. A diferença é que umas fingem melhor do que as outras”.

Acompanhando o caso, fiquei zonza ao saber que Flordelis é mãe, ex-sogra, viúva e, segundo investigações da Polícia Civil e do Ministério Público, mentora do assassinato do pastor Anderson, morto no ano passado com 30 tiros. Ainda segundo a investigação, os disparos foram feitos por Flávio dos Santos, filho biológico da pastora. Misericórdia! – diria minha saudosa vó Brasilina.

Nesse enredo policialesco digno de série da Netflix, não sai da minha cabeça as palavras registradas por Flordelis em uma troca de mensagens dias antes de Anderson ser executado: “Fazer o quê? Separar dele não posso, porque senão ia escandalizar o nome de Deus”. Diante dessa assertiva carregada de frieza e indiferença, que em nada lembra a figura caridosa e pudica que a parlamentar fazia questão de ostentar, questiono: quantas mulheres, entorpecidas por “líderes religiosos” como Flordelis, permanecem em relações marcadas por ameaças, humilhações e violências de toda ordem?

No Brasil, em geral, os levantamentos a respeito da violência doméstica, levam em consideração apenas as categorias faixa etária, raça e classe, deixando de fora a religião que as vítimas professam. De autoria da teóloga Valéria Cristina Vilhena, um dos poucos estudos sobre esse tema revelou que, das mulheres atendidas pela Casa Sofia em 2016, espaço de acolhida que mantém convênio com a Prefeitura de São Paulo, 40% eram evangélicas.

De acordo com pesquisa divulgada pelo Datafolha em janeiro deste ano, do total de entrevistados que frequentam igrejas evangélicas no país, 58% eram mulheres, em sua maioria, negras e pobres. Mulheres desassistidas, que as políticas públicas não alcançam. Mulheres ignoradas por movimentos feministas e de esquerda, que de forma preconceituosa as denominam “pobres de direita”, em vez de questionar as condições socioeconômicas que as empurram para esses espaços religiosos.

Mulheres que procuram as igrejas em busca de amparo, de uma cesta básica, de oportunidades de lazer, de soluções para a precariedade da vida e para o sentimento de abandono. Mulheres que veem nos discursos de pastores e pastoras, muitos deles verdadeiros mercadores da fé, a possibilidade de redenção, de alcançar o reino dos céus.

Em grande medida, são nessas igrejas que elas encontram conforto quando estão desempregadas, quando familiares são consumidos pelos vícios ou quando seus filhos são assassinados por policiais e o Estado não lhes dá qualquer resposta.

Em meio a essa teia de negligências e negação de direitos, são bombardeadas por discursos fundamentalistas, que ao fazer leituras equivocadas da Bíblia, pregam a submissão das mulheres nas relações com os homens. Do mesmo modo que a “família Doriana” é vista como uma “bênção” concedida às que oram, jejuam e mantêm o dízimo em dia, os desenlaces matrimoniais são tidos como resultado da incapacidade das mulheres de “edificar” o lar.

Assim, cria-se uma série de mecanismos de convencimento, que incluem pregações, louvores, visitas de membros da igreja aos lares e encontros de casais, de modo a fazer com que permaneçam em relações que as oprimem, subjugam e, muitas vezes, matam. Enquanto escrevia esse texto, deparei-me com o Atlas da Violência. Em 2018, uma mulher foi assassinada a cada duas horas. Quantas mortes poderiam ser evitadas caso não sentissem medo de “encandalizar o nome de Deus” e colocassem fim na relação ao primeiro sinal de violência?

Outra questão que merece atenção é o fato de serem estimuladas a não denunciar, mas, sim perdoar o agressor, sob a máxima cristã: “E, quando estiverem orando, se tiverem alguma coisa contra alguém, perdoem-no, para que também o Pai celestial perdoe os seus pecados”. Além disso, muitas vezes a violência marital é creditada ao diabo.

Durante minha caminhada como professora de História da Educação Básica, sempre trabalhei em regiões de alta vulnerabilidade social, com forte presença de igrejas evangélicas. Vi mulheres envelhecidas pelo sofrimento e pela pobreza. Certa vez, ouvi um diálogo entre duas mães, uma delas falava sobre as agressões que sofria em casa. Como resposta, a amiga disse: “Isso é tentação do inimigo, falta de oração. Você precisa orar no Monte!”.

Os mercadores da fé, os que oprimem e silenciam as mulheres, contribuindo para a perpetuação da violência, avançam cada vez mais sobre o campo político, tendo sido determinantes para o resultado das últimas eleições. Não é à toa que hoje temos a dita bancada evangélica, que não deveria ter esse nome, uma vez que nem todo evangélico é fundamentalista. O pastor Henrique Vieira e os membros do grupo Evangélicos pelo Estado Democrático de Direito não me deixam mentir.

Os que desrespeitam a laicidade do Estado, e por trás de um discurso moralista escondem crimes como lavagem e desvio de dinheiro, têm influenciado fortemente e de maneira negativa a agenda que diz respeito ao combate das violências de gênero e às políticas educacionais. Os espaços e órgãos de proteção à vida das mulheres estão sendo esvaziados e/ou fechados. Uma matéria publicada pela Folha de S. Paulo nesta semana revelou que o Governo Federal excluiu do último relatório do Disque 100 os encaminhamentos e as respostas dadas às denúncias recebidas, inclusive as relativas à violência doméstica. Conforme mencionei em minha última coluna, os termos “gênero” e “orientação sexual” foram suprimidos da Base Comum Curricular Nacional (BNCC) após pressões de grupos neopentecostais.

Vivemos num momento em que não vejo saída. Pelo menos em um espaço curto de tempo. Isso não quer dizer que eu tenha perdido a esperança e minhas utopias. Olhar com clareza o inferno que se abate sobre nós é o que me faz crer que “vamos vencer, mesmo que não seja agora”, conforme lembrou a militante Graça Lago.

Enquanto isso não acontece, enquanto as políticas públicas que deveriam empoderar e garantir autonomia a essas mulheres não chegam às regiões mais pobres, torço para que as evangélicas que estão sendo vilipendiadas pelas Flordelis espalhadas pelo país entendam que Deus jamais ficaria escandalizado caso elas deixem um relacionamento em que são violentadas cotidianamente. Fiz primeira comunhão. Não aprendi muita coisa, mas um dos princípios básicos das religiões cristãs, eu conheço bem: Deus é amor e não abandona seus filhos e filhas.

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