Daniel Dourado
[email protected]Médico e advogado sanitarista, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP e do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris.
O Brasil precisa de um comitê nacional de crise para coordenar o monitoramento da epidemia e as medidas de confinamento em todo o País
O general da ativa Eduardo Pazuello termina sua gestão provavelmente como o pior ministro da Saúde da história. Mas é importante lembrar que ele foi um mero cumpridor das desordens de Jair Bolsonaro, como ambos fizeram questão de ressaltar em diversas oportunidades.
O novo ministro, Marcelo Queiroga, assumiu a pasta dizendo que pretende fazer uma gestão de continuidade, deixando claro que a intenção é manter tudo como está.
Então, qual é o sentido dessa troca?
Para entender isso, é preciso reconhecer que a atuação do governo Bolsonaro na pandemia está baseada em duas frentes.
A primeira é incentivar a exposição ao vírus. Até o final do ano passado, o presidente e seus ministros negavam a possibilidade de segunda onda. Sempre venderam a ideia de que as pessoas estariam naturalmente imunizadas e que a economia logo voltaria a funcionar. Isso é o que explica também o boicote ao uso de máscaras e ao distanciamento físico. O estímulo ao inexistente tratamento precoce teve o propósito de criar a falsa sensação de segurança na sociedade — e lamentavelmente, contou com a colaboração de parte relevante da comunidade médica.
A segunda frente é desresponsabilizar o próprio governo federal, com o intuito de empurrar o desgaste para governos estaduais e municipais. Aqui entra o discurso contra as medidas de confinamento. Mesmo diante da calamidade sanitária, o presidente continua mentindo que lockdown não funciona, apesar das inúmeras experiências internacionais como de cidades brasileiras.
Ao não assumir sua função de coordenação do enfrentamento da pandemia no nível nacional, a omissão deliberada do ministério da Saúde tem cumprido a dupla função de contribuir para a maior propagação do vírus e colocar a culpa das medidas impopulares nos governadores e prefeitos, especialmente aqueles que são vistos como adversários de Bolsonaro e seu grupo político.
Acelerar a vacinação, embora imprescindível, não é suficiente para responder à crise atual
Nas últimas semanas, houve mudança em um elemento dessa estratégia. Aparentemente convencido pelo grupo de empresários do seu entorno, Bolsonaro passou a aceitar que há necessidade de vacinação para atingir a imunidade coletiva e que a retomada da atividade econômica depende disso.
Só que essa volta atrás tem sido bastante difícil. O Brasil entrou muito atrasado na corrida pelas vacinas num cenário de escassez no mercado global. O cronograma traçado no começo de 2021 não tinha condição de ser cumprido e teve que ser alterado várias vezes. Resultado: Pazuello, que já vinha com a imagem bastante deteriorada pela tragédia de Manaus, acabou perdendo completamente a confiança dos secretários de saúde.
Nesse contexto, a substituição de ministro atende a pressões políticas. Busca esvaziar a CPI da Covid no Senado, até então muito focada na figura de Pazuello. E tenta aliviar a insatisfação de setores do Congresso e mesmo da ala militar do governo, preocupados com a péssima impressão passada pelo desempenho do general, agora ex-ministro. Tudo isso quando a oposição começa a se organizar em torno do ex-presidente Lula.
O problema é que acelerar a vacinação, embora imprescindível, não é suficiente para responder à crise atual. O Brasil está diante do maior colapso sanitário de que se tem registro, com saturação hospitalar praticamente em todo o país. É fundamental constituir um comitê nacional com autoridades e cientistas para monitorar a situação epidemiológica das diferentes regiões e coordenar medidas rigorosas de restrição de circulação e confinamento. Não há outro caminho para frear a catástrofe humanitária em curso neste momento.
Esse é o papel que cabe ao ministro da Saúde, como gestor do SUS no nível federal. Resta saber se Marcelo Queiroga estará à altura desse desafio. Infelizmente, um médico que persiste identificado com Bolsonaro depois de um ano de pandemia traz uma expectativa bem baixa.
A troca que o Brasil precisa é de presidente.
O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.
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