Opinião
Por que as forças armadas brasileiras se deixaram associar à patacoada bolsonarista?
Como de praxe, a questão recai sobre poder e dinheiro, sob a moldura de uma anacrônica subserviência aos EUA
As forças armadas são um pilar do Estado Nacional, atuando como garantidor básico da soberania no sistema interestatal consagrado pelo Tratado de Westfália
Mas, se já não cabe a Exército, Marinha e Aeronáutica cuidarem, ao menos ordinariamente, da segurança pública, muito menos é seu papel o de governar. Em nenhuma democracia madura do mundo isso acontece. Pelo contrário, em países sérios, são muito bem definidas as linhas que separam as forças armadas e o governo de plantão, uma vez que se tratam de instituições de Estado.
No ano passado, o chefe do Estado Maior dos EUA, general Mark Milley, foi a público pedir desculpas após ter participado de caminhada com Donald Trump para posar para uma foto em frente a uma igreja, num ato político do presidente norte-americano em meio a protestos contra o racismo no país.
“Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna”, declarou Miley na ocasião.
Apesar do exemplo que vem da grande referência civilizatória do bolsonarismo, o presidente brasileiro abriu as portas para mais de 6 mil militares assumirem cargos no governo federal, desde assessorias de comunicação e jurídicas a chefias de ministérios, órgãos ambientais, agências reguladoras e empresas estatais, entre outros postos que nada tem a ver com suas especialidades.
Com frequência, Jair Bolsonaro se refere às forças armadas como sua propriedade, explorando as supostas “costas quentes” para, implícita e explicitamente, ameaçar outros poderes da república sempre que estes o contrariam.
Em uma democracia séria, os comandantes das três forças teriam publicamente cortado as asas do presidente em qualquer referência feita por ele a possíveis manobras “fora das quatro linhas da Constituição”, ainda que no plano mais delirante das ideias para agitar seu “cercadinho” e base ideológica.
Por aqui, contudo, não satisfeitos em terem embarcado em uma aventura política que deixará mais uma vexatória marca na história das FFAA brasileiras, altos quadros militares da ativa e reserva seguem apoiando arroubos autoritários de Bolsonaro, inclusive se manifestando em searas que absolutamente não lhe dizem respeito, como a tresloucada discussão sobre o voto impresso.
E tudo isso a troco de quê?
Em governos democráticos anteriores, os militares brasileiros tiveram protagonismo na política externa do país, participando de iniciativas conjuntas com o Itamaraty visando à projeção geopolítica do Brasil na América Latina e no Oeste Africano, enquanto elevavam seu status junto à ONU ao liderarem missões internacionais de paz.
Durante as gestões federais de Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer, o orçamento total do Ministério da Defesa subiu anualmente, sem exceções, passando de R$ 25,7 bilhões em 2003 para R$ 102,9 bilhões em 2017. Em 2020, pela primeira vez na série histórica, o orçamento caiu, de aproximadamente R$ 112 bilhões para R$ 111,1 bilhões.
Hoje, as FFAA brasileiras estão diretamente associadas a um governo que conduz uma diplomacia medíocre e subserviente, de início automaticamente alinhada a um presidente norte-americano que abalou a democracia local, e que, posteriormente – já gozando da condição de pária internacional – vê seu isolamento geopolítico aumentar ainda mais com a chegada de Joe Biden ao poder.
Para além de possíveis reflexos da guerra híbrida manejada pelos próprios EUA, na qual buscam desestabilizar outras nações conforme seus interesses, ou do ressentimento e temor gerados pela criação da Comissão da Verdade no governo de Dilma Rousseff, só podemos imaginar que a resposta a tal posicionamento das FFAA sejam os generosos vencimentos obtidos por militares que aceitaram fazer parte desta patacoada – alguns deles superando a casa dos 100 mil reais mensais, como nos casos dos generais Hamilton Mourão, Luiz Eduardo Ramos, Braga Netto e Augusto Heleno.
Ou seja, como de praxe, a questão recai sobre poder e dinheiro, sob a moldura de uma anacrônica subserviência aos EUA que ainda reflete o maniqueísmo do general e geopolítico brasileiro Golbery do Couto e Silva (1911-1987), o qual dividia o mundo entre “Ocidente cristão” e “Oriente ateu” no contexto da Guerra Fria.
Cumpre notar, porém, que havia realpolitik na diplomacia do regime militar brasileiro. Mesmo Couto e Silva, do alto de seu conservadorismo, era contrário à presença dos “irmãos” norte-americanos na Base de Alcântara, no Maranhão, ao passo que Ernesto Geisel se relacionou com o bloco comunista em nome do interesse nacional, conduzindo uma política externa conhecida como “pragmatismo ecumênico e responsável”.
O fato é que a versão de uma “necessária” luta contra o comunismo, que teria justificado as duas décadas de autoritarismo impostas pelas forças armadas brasileiras no país, tem ainda menos cabimento três décadas após a dissolução da União Soviética e 13 anos depois de um governo de esquerda na presidência do Brasil que sequer reforma agrária foi capaz de fazer.
Resta-nos esperar que os militares, ao menos, irão assegurar a realização do pleito eleitoral de 2022, bem como o respeito ao seu resultado, seja ele qual for, haja vista a criminosa agitação já iniciada pelo presidente e seus correligionários para tumultuar as próximas eleições.
Do contrário, estarão jogando a pá de cal sobre o que resta da imagem brasileira nas relações internacionais, minando, inclusive, a meta do próprio governo Bolsonaro de conquistar o ingresso do país na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.
Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.