Renato Vieira

Diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e sócio do Kehdi & Vieira Advogados

Opinião

 PEC do Centrão, a nova cara do golpe

O judiciário é o menos perigoso dos Poderes, porque não tem nem a chave do cofre e nem a espada (em tempos atuais: arma). E é da essência da jurisdição constitucional atuar de forma contramajoritária

Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados
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Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), que tramita no Congresso Nacional, tem o propósito de submeter à revisão do Poder Legislativo decisões tomadas pelo STF, em acintosa ofensa à cláusula pétrea que proíbe emenda constitucional tendente a abolir a separação dos Poderes (art. 60, § 4º, III). Esse é o xeque que se quer dar à democracia brasileira.

A PEC quer alterar o art. 49 da Constituição Federal de 1988, acrescentando inciso XIX, com o seguinte teor: “deliberar, por três quintos dos membros de cada Casa legislativa, em dois turnos, sobre projeto de Decreto Legislativo do Congresso Nacional, apresentado pela maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que proponha sustar decisão do Supremo Tribunal Federal que tenha transitado em julgado sem aprovação unânime dos seus membros, e que extrapole os limites constitucionais. Parágrafo único. O Decreto Legislativo a que se refere o inciso XIX será promulgado pelo presidente do Congresso Nacional e comunicado ao Supremo Tribunal Federal, com vigência imediata.”

É preciso dar atenção ao caráter golpista da presente PEC, afrontosa à noção de convivência harmônica entre os Poderes e à lição mais basilar do exercício de jurisdição constitucional. Sintomaticamente, para nós brasileiros, é a cara do que foi feito na Constituição de 1937, conhecida por seu autoritarismo. 

Os fortes se defendem com palavras e argumentos convincentes. Os fracos e os covardes, com as alterações da regra do jogo

Basta lembrar o artigo 96, parágrafo único, da chamada Constituição Polaca, para ver o propósito similar que houve naqueles tempos de triste memória, com o que testemunhamos hoje. Dizia aquele artigo constitucional, com a capciosa situação de que, então, o Poder Legislativo já se encontrava dissolvido (art. 178): “Artigo 96. Parágrafo único. No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interêsse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento; se êste a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do tribunal.”

Lembremo-nos inclusive que o artífice daquela Constituição, Francisco Campos, chegou a publicizar o entendimento de que ela nunca existiu, tamanho o poder ditatorial do presidente da República da época, enganando a quem se deixou enganar que haveria – como não houve – um plebiscito futuro a validar suas decisões autoritárias. 

É urgente olharmos para o passado para ver no que deu. Se por um lado há um aparente verniz para disfarçar a tinta gasta já que o Congresso Nacional (ainda) está em funcionamento, por outro se chegou ainda mais longe do que no passado. Em 1937 a afronta às decisões do STF era específica em matéria de controle de constitucionalidade, mas hoje se vai mais longe: basta que a decisão, seja qual for, não seja unânime, e que inclusive se enquadre na porosa noção de “extrapolar limites constitucionais”. Fácil ver que, com a composição integrada pelos dois recentes detentores de curioso saber jurídico à Corte, a não-unanimidade de decisões pode ser gratuita moeda de troca para que o Congresso anule efeitos de decisões do Supremo Tribunal Federal. 

Zeno Veloso asseriu sobre aquele maldito dispositivo constitucional, que o sistema de então era “marcado por um caudilhismo incontrolável, um clientelismo avassalador, exercendo o Presidente da República um poder babilônico, que decorre menos da Constituição e das leis do que de um subdesenvolvimento cultural e político do qual não estamos conseguindo nos libertar, ao lado de práticas eleitorais equivocadas.” (Controle jurisdicional de constitucionalidade, 3. Ed. pp. 32/3). Alguma coincidência com o que temos hoje, tirante os incontáveis crimes de responsabilidade noticiados e não apurados e a voz do Centrão como alto falante do Presidente da República? 

O judiciário é o menos perigoso dos Poderes, porque não tem nem a chave do cofre e nem a espada (em tempos atuais: arma). E é da essência da jurisdição constitucional, além da proteção de direitos fundamentais, atuar de forma contramajoritária. 

Os fortes se defendem com palavras e argumentos convincentes expostos em arena pública. Os fracos e os covardes, além de se esconderem no autoritarismo, defendem-se com as alterações da regra do jogo democrático em favor próprio e costumam ver os discordantes como inimigos. A tibieza dá as mãos à miopia. 

Voltando para hoje: o que esperar? Quanto vale a democracia brasileira?

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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