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Pauta menosprezada

Os partidos progressistas não podem se furtar a apresentar propostas de reforma do sistema de Justiça, contaminado por desvios estruturais

Imagem: iStock
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Em seus planos de governo, os partidos progressistas se apressam, corretamente, em elencar programas para áreas essenciais como Economia, Saúde e Educação. No entanto, nos chama atenção a ausência de propostas claras, definidas e aprofundadas para o sistema de Justiça. O tema é abordado apenas por platitudes e generalidades, o que nos traz uma perspectiva preocupante em face de problemas que vêm sendo enfrentados pelo País em suas esferas de poder e que estão diretamente relacionados a esse tópico.

O que vimos na Lava Jato, na prisão de Lula e em condenações injustas de líderes de esquerda, como José Dirceu, decorre, inclusive, de legislações produzidas durante os próprios governos do PT. Isso nos mostra que, se não estruturarmos programas que contemplem adequações para o sistema brasileiro de Justiça, os eventuais abusos desse sistema na disputa pelo poder, no campo político, continuarão a nos atingir.

Ilustra essa situação também um caso mais recente, no qual os ministros Nunes Marques e André Mendonça, do STF, solicitaram vistas a processos envolvendo a cassação do mandato do deputado Fernando Francischini, a fim, evidentemente, de criar uma situação para impor a manutenção do mandato. Ora, trata-se de uma postura estranha à democracia, em que ministros usam de suas prerrogativas não para aplicar as leis, mas para interferir nos processos de conquista de poder. Em um plano filosófico-político, é o que podemos chamar de modelo clássico de autoritarismo. Portanto, objetivar melhorias para o nosso sistema de Justiça passa pela necessidade de adaptá-lo a princípios e valores próprios da democracia constitucional, combatendo desvios estruturais em seu funcionamento.

Questões dessa natureza remontam aos termos da Constituição de 1988, que, ao estabelecer o controle das leis, valeu-se de um modelo misto e atípico que incorporou características do regime norte-americano de judicial review e do regime das Cortes Constitucionais europeias. Em essência, os norte-americanos realizam esse controle em casos concretos, enquanto os europeus o fazem em abstrato, apontando inconstitucionalidades de forma política, sem precisar de ocorrências práticas para tanto.

Dessa maneira, no modelo americano, o Poder Judiciário não anula atos do Legislativo em abstrato, tomando decisões sobre episódios efetivos que, pelo sistema de precedentes, acabam se transformando em parâmetros gerais. A Corte Constitucional europeia, por sua vez, anula em abstrato tanto atos do Legislativo quanto do Executivo e do Judiciário, visto que não é um órgão desse último, mas da sociedade, a latere dos Três Poderes.

No Brasil, contudo, o sistema misto coloca o Judiciário em uma posição de certa superioridade em relação aos demais poderes, uma vez que lhe permite anular em abstrato leis do Legislativo e atos regulamentares do Executivo. Essa disparidade não se restringe aos aspectos da constitucionalidade, espalhando-se para itens de natureza semelhante.

Da mesma forma, a figura do relator no sistema de Justiça brasileiro é inadequadamente empoderada. Esse processo de fortalecimento dos relatores nos tribunais é antigo – teve início na década de 1940 e foi se acentuando paulatinamente, atingindo hoje um nível incomparável em relação a outros países do mundo. Um único ministro relator pode suspender a eficácia de uma emenda constitucional decidida por uma maioria qualificada do Legislativo, o que evidencia o poder exacerbado desse agente, determinando uma situação incomum no plano das democracias.

Tais reflexões nos levam a recomendar uma futura reforma da Constituição, para que seja criada uma Corte Constitucional, cujos ministros tenham mandato certo. Por sinal, essa discussão se estende para os critérios de admissão na carreira e de nomeação de ministros e desembargadores, e também dos mecanismos de controle externo sobre as atividades do Judiciário, do Ministério Público e da polícia, além do nível de interferência da soberania popular no funcionamento dessas instâncias e poderes.

Os partidos progressistas têm de ter programas, tanto no âmbito federal quanto no das candidaturas estaduais, para enfrentar essas questões. A curto e médio prazos, precisam definir metas para critérios de nomeações e de estruturação de carreiras e órgãos de controle. A longo prazo, cabem objetivos como a reforma estrutural do sistema constitucional e da própria jurisdição. Urge a coragem de trazer esse debate à sociedade, legitimando seu desejo de reformar e mitigar as mazelas do sistema de Justiça sob o qual vive. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pauta menosprezada “

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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