Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Os desfiles de carnaval e a saudade da minha irmã

Salgueirense roxa, todos os anos, engrossava a audiência da Globo ao assistir às transmissões diretamente da Apoteose

Rio de Janeiro - A escola de samba Salgueiro se apresenta no Desfile das Campeãs do Carnaval do Rio, na Sapucaí, em 2018 (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
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Após dois anos de vida em suspenso por causa da Covid-19, finalmente as escolas de samba do Rio e de São Paulo puderam voltar a desfilar. Tenho acompanhado pouco. Vez por outra, dou uma espiada na internet e descubro o que se passa na Marquês de Sapucaí e no Anhembi. Foi em uma dessas espiadas que soube do acidente que, na quarta-feira 20, deixou a garota Raquel Antunes da Silva em estado grave. Ao subir em um carro alegórico, a menina de 11 anos foi prensada em um poste. Raquel faleceu pouco antes da publicação deste texto.

 Na noite de ontem, Wallace Palhares, presidente da Liga-RJ, entidade responsável por organizar os desfiles da “segunda divisão” do carnaval carioca, afirmou que “não tem que dar suporte” para a família de Raquel. Como se pode ver, a declaração do carnavalesco é mais uma prova do estado de barbárie que se instalou no País.

Os desfiles fora de época me fizeram lembrar da Miriam, minha irmã, que nos deixou em julho de 2013, aos 32 anos, vitimada por um câncer. Miriam era apaixonada pelos desfiles das escolas do Rio. Salgueirense roxa, todos os anos, engrossava a audiência da Globo ao assistir às transmissões diretamente da Apoteose. Havia todo um ritual: Miriam fazia café, comprava salgadinhos, cerveja e guaraná em pó para ficar na frente da TV até o dia amanhecer e não perder nenhum detalhe do “maior espetáculo da terra”. 

Em outra oportunidade, escrevi que a paixão pelo Clube Atlético Mineiro, nosso time do coração, era o que nos unia, uma vez que sempre fomos completamente diferentes. Em tudo. Mas pouco antes de escrever este texto, lembrei que as agremiações cariocas alimentavam um sentimento de irmandade entre nós. Por muitos anos, aos domingos e às segundas de carnaval, juntei-me a ela para ver Salgueiro, Mangueira, Beija-Flor, Portela, Grande Rio, Viradouro e tantas outras escolas encantarem a Sapucaí. 

É bem verdade que eu nunca consegui varar a madrugada como ela fazia. Na segunda ou terceira escola, eu dizia: “Miriam, não estou aguentando mais… Já vou dormir…”. Com um sorriso carregado de sarcasmo, ela dizia: “Ah, Luana! Você é fraca demais! Vai dormir!”. Na quarta-feira de cinzas, lá estávamos, ansiosas com a apuração. Miriam vibrava cada vez que Jorge Perlingeiro, voz inconfundível da divulgação das notas dos jurados, anunciava: “Acaaadêmicos do Salgueirooo: dezzzzz!”.

Assim foi em boa parte da nossa adolescência. Na casa dos vinte anos, descobri o carnaval de Salvador, o carnaval de Belo Horizonte. Deixei de ser a companhia da minha irmã nas transmissões da TV, assim como ela nunca me acompanhou nos blocos de rua. Miriam não gostava de multidões. Ou melhor: abria algumas exceções. Ela adorava ver o Galo jogar no Mineirão com um público de 80, 90 mil pessoas. Adorava também estar nos shows lotados do Molejo, Exaltasamba, Katinguelê e demais grupos de pagode que fizeram sucesso nos anos de 1990.

Nestes dias em que os desfiles de carnaval mobilizam paixões e ganham destaque no noticiário, penso em como a Miriam estaria hoje. Quase nove anos se passaram desde que ela foi fazer morada onde os meus “olhos não conseguem perceber, minhas mãos não ousam tocar, meus pés recusam pisar”, conforme escreveu Paulinho da Viola no samba em homenagem à Mangueira. 

Miriam ainda seria devota fervorosa do Salgueiro? Para ela, os desfiles das escolas de samba continuariam sendo eventos imensamente aguardados, memoráveis? Não sei responder. Perder alguém que a gente ama, quando ainda é jovem, tem dessas coisas. Jamais saber como tudo teria sido. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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